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Divanilde Carvalho
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Lucas era alto e belo. Nunca havia reparado nele antes. Embora ele trabalhasse na mesma empresa, nossos olhares nunca haviam se cruzado. Geralmente, nós passávamos uma hora do expediente da tarde e umas duas horas do período da noite só operando a máquina de mineração da usina. Era uma máquina de 360 toneladas, onde ficávamos atentos às minhas mãos operando o minério das pepitas.

Um descuido, uma bobeada e já era. Por isso, acho que deixei passar das vistas aquele moço. A pedra usinada, como chamamos, sai da máquina que eu opero e é sempre um cabo de desandador de pino longo. Faço o esforço de fazer toda a correria e cumprir a meta de 600 mil toneladas de pepitas por dia. Mas veja bem: só 15 reais por hora para a mineradora vender cada tonelada por 15 reais. 

Faça as contas, é um absurdo! Temos até planejado organizar um protesto com o pessoal do movimento para mudar isso aí. Mês passado mesmo, na assembleia do sindicato, discutimos como enfrentar nossa gerência, Seu Marcelo Santos. Foi lá que vi pela primeira vez o Lucas. Porque nunca havia reparado nele antes?  Me perguntava enquanto passava as mãos levemente nos meus cabelos. Curiosa, sei que todos ficavam mais à vontade na solidão, mas se muitas vezes também enfrentou a multidão, não sei como não o vira antes.

O Lucas parece um jovem seguro de si, tão diferente de outros. Até finjo de morta quando quero e também quando não quero. O silêncio me encobre. Esse é meu jeito de estar no mundo. Às vezes deixo a solidão me tapear, mas no fundo, lá no fundo lamacento da alma, onde estão minhas emoções oceânicas, ninguém chega!

Para mim, falar é algo muito difícil. Me embaralho por completo, dou até um branco. Mas não sei por quê perco o foco. Logo a mim que treino sempre que possível minha concentração na máquina… no fundo queria ser mesmo era como Lucas, todo determinado, expressando todos os seus pontos de vista para a sala lotada. Tomando a palavra para si, chamando mais gente a participar. 

Sempre que quero me sentir bem, lembro do Lucas nesta assembleia. Observo-o caminhar em direção ao microfone, que o colega Tiago segurava e só entrega após falar bem baixinho no ouvido do seu companheiro Arthur alguma informação muito divertida. Tiago e Arthur trocam olhares e risinhos de canto de boca, enquanto Lucas bate suavemente os dedos por duas vezes no microfone, de onde sai um som seco sinalizando que está pronto para falar.

Começa a contar sua história como trabalhador e suas reivindicações. Me identifico. Mas ao virar ao meu redor percebo que seus gestos incorporam algo que aciona um grande incômodo coletivo… Não sei bem explicar de onde vem isso, acho que nem nossos companheiros sabem. Mas essa energia sutil vai contaminando o ambiente. A sala de reunião vai aos poucos se transformando em um verdadeiro absoluto silêncio que dá atenção a ruídos desrespeitosos.

A voz deste torneiro mecânico sai de sua boca diferente do jeito da maioria dos seus colegas de trabalho. Seus olhares se cruzam e se distinguem daqueles sentados à mesa da coordenação do sindicato trabalhista. Sua família não é a mesma do Arthur, ou mesmo do seu patrão Marcelo Santos. Talvez por isso, não importa o que Lucas diga, ninguém ali estava ouvindo.

A escuta de seus companheiros está dedicada e concentrada nos sons, enquanto de suas bocas saem brincadeiras que cortam como uma navalha afiada. 

Um colega próximo, nós não sabemos bem o que ele disse, mas conta que também não era momento. Queria voltar logo na pauta de reivindicações. Porque onde já se viu seu salário continuar ser menor do que o da sua parceira? Lucas não tinha esposa, mas tinha sua mãe e uma filha com seu marido. Sua filha não podia constar no plano de saúde odontológico nem de saúde da empresa, pois ela estava sobre a guarda apenas do Paulo, um verdadeiro companheiro.

Ele também contou que seus familiares não participavam de nenhuma confraternização promovida pelo seu Marcelo Santos . Vai saber. Isto é que Lucas, aquele simples humilde trabalhador, se retirou na ata da reunião, para mim importou muito o que ele disse. Conseguiu dizer de si e de mim falou de nós de coisas que nos unem enquanto coletividade, ainda que diferentes. Aquele corpo que não é o meu, sempre será uma superfície através do qual me reconheço. Só faltava a oportunidade. Não haveria antes?

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