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Máscara azul – Era maio de 2020, dois meses em isolamento por conta da pandemia de Covid-19. Marquei de encontrar minha amiga Maria Alice. No dia marcado levantei cedinho e fiz uma faxina na casa, com a intenção de bem recebê-la.

Ocorreu que fui surpreendida com uma ligação dela na qual pedia para que nos encontrássemos numa rua que fica a alguns quarteirões de minha casa. A preocupação era que sua visita poderia colocar em
risco a saúde de meus familiares.

Então me arrumei e coloquei minha máscara de couro preto com forro de cambraia as 11h15, exatamente quinze minutos antes do horário marcado com ela. Logo que atravessei o portão, senti que estava invadindo um espaço que já não me pertencia: a rua.

Máscara

Junto com esse sentimento também me invadia a sensação de estar sendo desonesta com as pessoas e principalmente comigo mesma. A hashtag “fique em casa” não saía da minha mente, mas não tinha jeito, eu já havia posto o pé fora dela.

Fiquei triste quando vi no caminho a primeira pessoa usando máscara e em seguida uma dúzia delas. Porém minha tristeza não era pelas máscaras, mas pela situação que nos levava a usá-las. Poucos meses antes, o coronavírus era a realidade chinesa, e agora estávamos aqui mascarados como num filme e nos olhando com desconfiança, como num cenário de guerra.

Pandemônio e máscara

No percurso até Maria Alice, cruzei com várias pessoas pela calçada. Algumas com máscara no queixo, outras com nariz de fora. Optei por desviar desses dois tipos de gente, tal como os personagens de videogames se esquivam de seus algozes.

Enfim cheguei à esquina da Rua Paraná e avistei minha amiga. Senti um misto de vontade de correr para abraçá-la e o medo de atravessar a rua. Esqueci-me de contar a você, prezado leitor, que Maria Alice é diabética, e que tinha cinquenta e seis anos na época, grupo de risco.

Encontro e máscara

Às 11h30 em ponto ela acenou e gesticulou me chamando para o outro lado da rua. Me aproximei a dois passos de distância e começamos a falar da vida. Alice estava com uma máscara azul daquelas bem reforçadas, dessas que médico usa em UTI. Nos pés calçava como de costume, suas belas e aparentemente confortáveis crocs azuis, e usava um vestido de algodão em cores discretas.

Assim como eu, ela segurava suas mãos uma na outra para evitar contato físico. Uma tarefa um tanto difícil e estranha para duas amigas de longa data.

Abraço mental

O horário se aproximava do meio dia, o sol se exibia sob nossas cabeças, e então nos despedimos com um forte abraço mental.

Depois de alguns passos no rumo de casa, como se combinado, demos meia volta e nos sorrimos com os olhos. Foi a primeira e última vez que nos vimos naquele difícil ano.

Chegando em casa, tirei meus trajes ainda na área e me banhei com a água que havia aparado num balde preto, antes de sair para meu encontro. A água me lavou de um possível vírus, mas não me livrou do peso de expor minha vida e principalmente a de Maria.

One thought on “CRÔNICA | Encontro no pandemônio”

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