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A professora da UFG, Luciana Dias, lança o livro “Saberes das Lutas do Movimento Negro Educador”, no qual ela é co-autora junto com outros pesquisadores em um trabalho coordenado pela professora Nilma Lino Gomes. 

O lançamento do livro na UFG aconteceu no 19ª Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão (CONPEEX), no dia 23 de novembro de 2022, e contou com a presença de duas coautoras do livro, a professora e Secretária de Inclusão Social da UFG (SIN/UFG), Luciana Dias, e a professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Regimeire Oliveira Macial. 

Fonte: SIN/UFG.

Na entrevista, a professora Luciana Dias relata sobre como foi a produção do livro e as temáticas pesquisadas, estudadas e abordadas no material. A obra evidencia o movimento negro como um movimento educador que requer, cotidianamente, mais espaço e valorização na sociedade brasileira. 

LN: Inicialmente, gostaria de saber como recebeu o convite da autora do livro, Nilma Lino, você já a conhecia antes? Tinha realizado algum trabalho com ela?

Sim, já tinha realizado alguns trabalhos com a professora Nilma Lino Gomes. Na verdade, esse livro “Saberes das Lutas do Movimento Negro Educador” resulta de um primeiro livro publicado em 2017 que é “O Movimento Negro Educador”, e nesse primeiro livro, ela faz reflexões importantes de como o movimento negro educa, e como é importante reconhecer esse perfil do movimento negro organizado enquanto segmento do movimento social que educa as pessoas se alinhando, de maneira muito potente, na luta anti-racista. Em 2021, no contexto da pandemia, nós participamos de uma atividade na Unicamp, em uma série que se chama “Clássicos”, onde nos reunimos para conversar sobre esse primeiro livro, em que ela discutia raça, diferença e educação. 

Eu e mais outras pessoas que também são co-autoras do livro nos reunimos na série “Clássicos”, uma mesa de discussão que aconteceu no formato online, nós decidimos começar um grupo de trabalho para escrever esse livro que é o “Saberes das Lutas do Movimento Negro Educador”. Nós somos sete pesquisadores de todo o país, mais especificamente, de São Paulo, Minas e Goiás e nos reunimos durante muito tempo em todo o ano de 2021 e escrevemos esse livro. Esse livro decorre de uma articulação de longa data de reuniões, pesquisas e trabalhos envolvendo a professora Nilma Lino Gomes, da UFMG, professora Regimeire, da UFABC, professora Regina Facchini, da Unicamp, e eu da UFG trabalhando na escrita.

LN: Você, como co-autora do livro, escreveu um capítulo específico. Gostaria de saber se foi você quem escolheu o tema para redigir? Foi um consenso das reuniões que vocês fizeram? 

Todos os capítulos escritos decorrem dessas discussões que aconteceram no grupo de trabalho. O capítulo ao qual eu escrevi chama “Negritando Esperança nas Encruzilhadas dos Saberes”, que também é resultado dessa articulação no grupo de trabalho com a professora Nilma Lino Gomes. Eu escrevo sobre a necessidade urgente que nós temos, contemporaneamente, de reconhecer que há ,sobretudo nos espaços acadêmicos, uma epistemologia negra, tenho a plena convicção de que o que temos hoje nas universidades, enquanto campos de produção do conhecimento, são pluri-epistemes. É errônea a concepção de que nós temos uma única episteme branca ocidental vigorando nas universidades. 

Poderíamos falar, por exemplo, em epistemologia indígena ou epistemologia de mulheres. Eu defendo a ideia de que para que a gente alcance essa pluri-epistemologia de maneira eficaz, há de se reconhecer a epistemologia negra. Esses saberes, ao qual eu chamo de saberes negros, são saberes de autoria de pessoas negras, que se engajam, inclusive na academia, em uma potente luta anti-racista. Eu sou diretora da Associação Brasileira de Antropologia e nesse capítulo o caso que eu estudo é exatamente a minha presença nessa associação, a comunidade científica no campo das ciências humanas mais antiga do Brasil, estamos com 68 anos de atividade, e eu sou a primeira diretora negra dessa associação. 

A ideia que eu defendo é a mesma que defende a professora Sueli Carneiro: de que há uma espécie de racismo epistêmico que tem deixado de fora das universidades pessoas negras, por conta da discriminação racial.  Eu defendo a ideia de que essa epistemologia negra, esse conjunto de saberes negros, precisam ser reconhecidos no campo acadêmico e depois precisamos nos engajar em uma luta por equidade dentro das universidades. 

LN: Você como docente de uma universidade, como você trabalha para fomentar essa equidade dentro da universidade? Mesmo com avanços, como por exemplo a lei de cotas, a universidade ainda é muito elitista, como a senhora trabalha para estimular essa equidade?

Nós ainda não vemos essa equidade nessa representação de múltiplos conhecimentos, exatamente porque os processos de desigualdade e discriminação são estruturais, no caso do racismo nós estamos lidando com um sistema de opressão que é absolutamente estrutural e institucional. Por mais que aconteçam esforços individuais, a instituição ainda reflete o racismo estrutural e a mudança que nós vemos é muito pouca, ela é insuficiente para reverter essa situação que é histórica e caracteriza a sociedade brasileira. 

Eu sou professora da UFG há 15 anos e nesse período que leciono, todas as minhas ações cotidianas dentro e fora da sala de aula, da pesquisa, da extensão e na gestão são guiadas por um interesse contínuo de promover o anti-racismo no contexto da universidade. No âmbito da pesquisa eu tenho desenvolvido trabalhos com uma forte carga anti-racista, o meu projeto aprovado na CNPQ ,por exemplo, é um projeto de combate ao racismo brasileiro e epistêmico. Eu pesquiso no âmbito da antropologia e procuro desenvolver pesquisas que tematizam o anti-racismo, no campo da educação e orientação da graduação e pós-graduação, procuro trazer para a bibliografia que vai sustentar as disciplinas que eu ofereço, ou as orientações do mestrado e doutorado, das extensões de pesquisa. 

Procuro uma bibliografia que não é convencional, branca e europeia por exemplo, as minhas disciplinas sempre tem presença de autores e autoras negros, mulheres negras, indígenas e pessoas trans. Essa polifonia que vem de lugares diferentes contribui para tornar mais plural o conhecimento que está sendo mobilizado nas disciplinas ou nas orientações que faço, essa é minha forma de atuar na universidade para combater o racismo e construir esse ambiente de pluri-epistemologias. Eu tenho uma atuação muito forte também na gestão, sou atual Secretária de Inclusão da UFG,(SIN/UFG),e na secretaria procuro atuar na Reitoria e junto às unidades acadêmicas de uma forma que a gente lute pelo reconhecimento das desigualdades e combate delas, sejam elas de raça, de gênero, classes e etárias, essas desigualdades precisam ser combatidas. 

LN: Você afirma que a produção do livro aconteceu em 2021. Esse foi um período em que o movimento negro e principalmente o movimento negro estudantil sofre muitos ataques de forma política e social. Como vocês trabalharam para trazer esse tema do racismo estrutural abordando também a contemporaneidade no livro?

É um trabalho de múltiplas frentes, é um trabalho que exige da pessoa que produz uma espécie de polivalência, de defesa em muitas frentes. Ao mesmo tempo que precisamos fazer um trabalho robusto, de produção de dados, de escrita qualificada, também precisamos fazer um trabalho de enfrentamento contra o racismo. Isso porque como o racismo é estrutural ele não dá descanso, são ataques cotidianos que precisam ser resolvidos, equacionados e enfrentados. 

Esses encontros que promovemos no grupo de trabalho, coordenado pela professora Nilma Lino Gomes, eram também momentos de auto fortalecimento, nós buscamos desenvolver atitudes de acolhimento para trazer a clarividência sobre os ataques que sofremos em âmbito nacional, mas também garantimos a produção do material. Enquanto se produz uma pesquisa, também escrevemos o livro e realizamos encontros de autocuidado e fortalecimento para garantir uma mesa de racionalidade para a produção científica. 

Quando somos mulheres negras que aceitam produzir conhecimento, somos muito desafiadas e testadas, nossa competência e intelectualidade são sempre colocadas em dúvida, enquanto vivemos essa falta de reconhecimento na sociedade também precisamos gerar produção. E essas condições de produção científica-acadêmico passam pela necessidade de um autocuidado e esse grupo acabou por oferecer um momento de troca de afeto e respeito mútuo para a produção deste livro.

LN: Essa afetividade que você afirma ser necessária para se continuar na luta, você acredita que ainda vigora dentre os jovens negros universitários? 

Há uma busca por construção desse espaço de afetividade, de respeito mútuo e valorização do conhecimento que parte desses estudantes negros, mulheres, pessoas trans e pessoas com deficiência. O que eu noto é um esforço e atenção na geração de espaços de autocuidado e afetividade, nem sempre há êxito, mas há um esforço de construir esses espaços. Pois eles são regeneradores e potentes, impulsionando para a continuidade na luta, o que eu vejo é um cuidado na geração desses espaços de afeto, solidariedade e respeito mútuo. Em alguns casos, não há êxito, afinal de contas estamos falando de um sistema monstruoso, cruel e muito estruturado. No entanto, também vemos alguns êxitos, as pessoas têm conseguido se articular e aproximar na promoção de autocuidado e afeto para garantir uma luta eficaz contra o racismo.

LN: Na produção do livro, vocês também buscaram incluir as pessoas que não estão mais dentro do âmbito acadêmico nesses saberes do movimento negro educador? 

Sim, como também pessoas que nunca entraram na universidade. O interesse é mostrar como a universidade é eficiente na produção de saberes e na formação dos indivíduos, mas não somente nas universidades. Há um destaque para que se reconheça o papel do movimento negro educador, nas lutas promovidas pelo movimento negro, saberes são articulados e são responsáveis pela formação do indivíduo. Dentre esses saberes, temos por exemplo o saber estético-corpóreo, que colabora muito para a recuperação da autoestima de pessoas negras, em que essas pessoas possam ver em seus corpos beleza, por exemplo, que não é vinculado ao padrão de beleza branco, mas que é beleza também. 

Não é uma intelectualidade branco ocidental, como diz a Lélia Gonzáles, mas que é uma intelectualidade a ser reconhecida. Eu vejo dentro do movimento negro uma mobilização de saberes que estão acessíveis a qualquer pessoa que se aproxime do movimento, sendo essa pessoa vinculada ou não às universidades. Nesse sentido, o movimento negro pode aprender muito com a universidade, mas a universidade também tem muito a aprender com o movimento negro. 

LN: Na produção do livro vocês tiveram alguma referência específica? Para quem queira se aprofundar no tema, quais referências você indica na temática? 

São múltiplas referências, a referência mais importante e que guia a nossa produção é o livro “O Movimento Negro Educador”, da professora Nilma Lino Gomes, sugiro a leitura da professora Nilma Lino. Há outras referências também muito importantes, que foram até esquecidas, como por exemplo, uma antropóloga norte-americana, Zora Hurston, que é uma referência importante para mim e escreve sobre as ciências sociais e as pessoas negras norte-americanas, ela guia toda a minha produção nesse livro. Como também, a professora Sueli Carneiro, que trata a questão do racismo epistêmico. 

Eu escrevi também bastante sobre políticas públicas de ações afirmativas para pessoas negras no Brasil e sugiro a leitura, tal como escrevi sobre como é a reprodução do racismo na antropologia brasileira, escrevi também sobre uma pedagogia transgressora, no material “Reflexos no Abebé de Oxum”, discutindo com a Bell Hooks, a importância dessa pedagogia transgressora para combater o racismo e promover uma justiça social a partir da equidade racial. Sugiro também a leitura do “Condenados da Terra”, “Pele Negra, Máscaras Brancas”, ambas do Frantz Fanon. Para quem quer entrar nesse assunto das relações raciais no Brasil, uma leitura muito basilar é a Lélia Gonzalez, discutindo cultura, etnicidade e categoria político-social de africanidade. Temos os indígenas também, como Ailton Krenak, e tantos outros que precisamos ler para melhor entender as relações sociais brasileiras e como o racismo segue operando e orientando essas relações sociais. 

LN: Por fim, deixo o espaço aberto para você pontuar o que deseja sobre o livro. 

Eu sugiro que as pessoas que leiam, acreditem na potência dos saberes que emergem das lutas do movimento negro que tem esse caráter educador. Leiam o livro, critiquem-o, enfatizo também a riqueza que está no prefácio do livro, inauguram espaços de interlocução conosco, nós seguimos unidos nessa produção de trabalho e quem sabe produzimos, futuramente, mais material para ser lido e explorado. 

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