Intolerância Religiosa: realidade no Brasil e as novas perspectivas de futuro com o governo Lula

Apesar do Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa ser marcado no calendário há mais de uma década, a luta nunca parou. Nos últimos quatro anos, os números de denúncias de quadros de violência religiosa cresceram em todo o país, mas esperanças se reacendem com a ascensão de um novo presidente da República
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Lula sanciona lei que tipifica injúria racial como racismo, 11/01 (Foto: Vinícius Schmidt)

Foi em uma sexta-feira, 21 de janeiro de 2000, com a saúde fragilizada por conta de ataques verbais e morais em decorrência de intolerância religiosa, que faleceu a ialorixá e ativista social conhecida como Mãe Gilda, na Bahia. Em 2007, seu caso voltou à tona: o presidente da República à época, Luiz Inácio da Silva, sancionou a Lei 11.635, adicionando o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa ao Calendário Cívico da União. Com 15 anos de existência da data, a falta de respeito ainda faz os índices de violência crescerem no Brasil.

Intolerância religiosa

Intolerância religiosa é o ato de discriminar, perseguir, ofender ou rechaçar indivíduos ou grupos sociais por causa de suas crenças, e geralmente se manifesta por meio de violência verbal ou física, além de profanação e depredação de templos, espaços e símbolos religiosos.  Em diversos casos, a intolerância é alimentada por um sentimento de superioridade referente a outra religião e/ou pelo desejo de impor suas próprias crenças a outras pessoas.

A histórica violência contra religiões de matriz africana no Brasil

Em um país com mais de 400 anos de história construídos sobre escravidão, tráfico negreiro, racismo e marginalização da população negra, ao longo dos séculos, a violência se direcionou a vários âmbitos. Trazidos para o país à força, grande parte dos africanos escravizados era separada de sua família, que jamais se reunia novamente. Muitas foram as árvores genealógicas destruídas, dada a inviabilidade de encontrar seus membros ancestrais, e com ela se foram culturas, costumes, histórias — identidades.

As religiões dos povos trazidos da África sofreram duras repressões, embaladas principalmente por missões iniciadas por Jesuítas. Um dos processos de apagamento da cultura africana e do povo nativo é o sincretismo religioso, caracterizado pela incorporação de elementos de determinada religião por uma outra. No Brasil, serviu como forma de resistência: por conta de todos os processos hostis aos quais foram consecutiva e simultaneamente submetidos, dentre eles a “conversão” ao cristianismo, muitos africanos que não aceitavam a nova religião que lhes era imposta, proibidos de celebrar e praticar seus próprios ritos, passaram a associar Orixás aos santos católicos numa tentativa de esconder sua fé.

Por conta do sincretismo religioso, São Jorge passou a ser associado a Ogum.
São Jorge e o Dragão, de Peter Paul Rubens (Foto: Galeria Santhatela)

Com o passar do tempo, o caráter fantasioso deixou de existir para dar lugar a uma outra crença, em que orixás e santos católicos de fato se misturam. Mas a violência não perdeu lugar. Até meados de 1930, Candomblé e Capoeira ainda eram considerados crimes passíveis de punição no Brasil. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, traz mudanças ao alegar que todo ser humano “tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, assim como o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que garante que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença”. Entretanto, uma mudança só começa a ocorrer, de fato, quando é sancionada a Lei n° 9.459, de 1997, que prevê punição para crimes motivados por discriminação de raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade. Ainda não é o suficiente.

Nos últimos quatro anos, a República Federativa do Brasil, constitucionalmente um Estado laico, enfrentou uma onda de aumento nos números de intolerância religiosa.

As maiores vítimas de intolerância no Brasil são praticantes de religiões de matriz africana. Segundo dados disponibilizados pelo Disque 100 – canal de denúncias de violações dos direitos humanos, e, portanto, por meio do qual a maior parte de denúncias de intolerância religiosa são feitas -, no primeiro semestre do ano de 2018 para o de 2019, o número de ocorrências registradas aumentou em 56%, de 211 para 354. Nos casos identificados e analisados, as religiões de matriz africana se destacam, com o triplo de quadros que espiritismo, a segunda colocada. De 2020 para 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou um aumento ainda maior, de 141%.

Alcançando 545 denúncias apenas nos seis primeiros meses de 2022, a média foi de 3 queixas por dia. (Foto: Roger Cipó)

“As crenças individuais são absolutamente importantes no processo de formação dos indivíduos, até porque essas crenças têm formação no coletivo, algumas no âmbito de uma religião, outras não, mas elas são coletivamente construídas e individualmente internalizadas. Essas crenças formam os indivíduos”, comenta a professora da Faculdade de Ciências Sociais da UFG Luciana de Oliveira Dias, antropóloga com estudos pós-doutorais em Direitos Humanos e Interculturalidades e com atuação na Secretaria de Inclusão (SIN/UFG). “Não tolerar essas crenças pode implicar na destruição do próprio indivíduo.”

Luciana Dias em ações da Secretaria de Inclusão (SIN/UFG) contra o preconceito (Foto: Reitoria UFG)

 “E a gente não precisa se preocupar muito com o aumento no número de denúncias de violências, de crimes, de racismo“, acrescenta a professora.

“Quando há um aumento no número de denúncias, significa que a população está mais consciente do que são crimes, do que são violências. Quando a gente vê uma alta, não significa que a violência está aumentando, mas pode significar o contrário: que as pessoas estão se encorajando, porque estão se sentindo mais seguras, em decorrência do aparato legal, a fazerem as denúncias.” Segundo ela, as denúncias são importantes porque, sem elas, o crime não ganha visibilidade, e então não pode ser combatido.

Intolerância religiosa ou racismo religioso?

Segundo balanço de dados nacionais, adeptos de religiões como candomblé, umbanda e outras de matriz africana, que representam um total de 1,6% da população brasileira, representam cerca de 25% dos denunciantes de todos os crimes ligados a ódio e intolerância religiosa

É por conta disso que diversos estudiosos se referem à intolerância religiosa como racismo religioso. Em seu livro “Intolerância Religiosa”, Sidnei Nogueira, babalorixá, mestre e doutor em Linguística e Semiótica, afirma que chamar o processo hostil e constante de perseguição às Comunidades Tradicionais de Terreiro de “intolerância religiosa”, da mesma forma que se refere a perseguição que outras religiões sofrem, é diminuir e invisibilizar as dimensões.

“Esses dados indicam que há uma preferência para o cometimento de violências contra pessoas de religiões de matriz africana; não é somente individual, mas coletivo. Não é somente um ‘não tolerar’, e sim uma discriminação concreta. Quando a gente está falando de discriminação concreta, a gente está falando de racismo”, aponta Luciana. “Por que é racismo religioso, e não intolerância religiosa? Porque atinge toda uma coletividade. A gente está falando de uma violência, de uma discriminação, de uma segregação que é direcionada a todo um coletivo, e não a um indivíduo isoladamente.

Políticas públicas

Em 2021, Goiânia se tornou o primeiro município do centro-oeste a ter no Calendário Cívico o Dia Municipal de Combate à Intolerância Religiosa. A lei foi sancionada com texto de Aava Santiago, vereadora, socióloga e evangélica.

Nascida no Rio de Janeiro, estado em que ficou por boa parte da infância, Aava se tornou consciente dos diferentes graus de intolerância cedo; mesmo quando seu pai era chamado de ladrão por ser pastor, sua família nunca foi impedida de realizar seus cultos e seus centros religiosos nunca foram depredados. A lei veio como reconhecimento desse problema, dessa diferença de tratamento, e como uma forma de colocar o tema em destaque para discuti-lo. Aava também defendeu, em 2022, a criação da Ouvidoria Antirracista na Câmara de Goiânia.

Para naturalizar uma coisa, é preciso desnaturalizar outra”, comentou ela durante a entrevista concedida, referindo-se ao projeto de mudança do nome da avenida Castelo Branco para Agrovia Iris Rezende. “Quando isso foi a público, recebemos muitas críticas: ‘Tanta coisa pra fazer e vocês estão mudando nome de rua?’

Aava Santiago, socióloga, vereadora e evangélica (Foto: divulgação)

A questão, segundo Aava, é mais profunda. Naturalizar homenagens a personagens tenebrosos de nossa história, como o caso de Castelo Branco, um ditador, é naturalizar a violência e tudo que vem com ela. Esculturas, nomes de ruas e obras cívicas dizem muito sobre a história de uma cidade e do que ela valoriza. “Não é você deixar de andar em uma rua que se chama Castelo Branco, mas é andar nela sabendo que é o nome de um ditador, sabendo que a homenagem poderia ser a uma Maria Firmina.” Aava também é responsável pela lei que institui, em Goiânia, a Campanha da ONU “Dia Laranja” em combate à violência contra mulheres e meninas, a Lei Raiana Ribeiro da Silva de combate à escravidão doméstica e a Lei de Combate ao Encarceramento da Juventude Negra, que institui o Dia Municipal de Combate ao Encarceramento da Juventude Negra.

E é buscando valorizar a cultura, a história e as influências negras que, em 2022, Aava realizou o grupo de trabalho “Afroletramento, Literatura e Atitudes Sociais Por Uma Educação Antirracista” para discutir uma forma de inserir obras de autores negros e análises históricas sob a perspectiva afro, capacitando professores para falar sobre isso. “Não é sobre parar de ler Sítio do Pica-Pau Amarelo porque foi escrito por Monteiro Lobato, mas fazer essa leitura sabendo que ele era racista e descobrindo o que isso implica”. O projeto se entremeia nas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que trata do ensino da história e cultura africanas e indígenas nas escolas, mas até hoje não são plenamente aplicadas. Em seu gabinete, Aava também abre espaço para a diversidade de forma efetiva: “É muito fácil juntar uma dúzia de  brancos e falar: ‘qual nossa agenda para o combate ao racismo hoje?’. É preciso colocar pessoas negras em posição de chefia.

Luta

Os casos de intolerância ainda se acumulam. Mesmo no primeiro mês do ano, o tema já se destaca, com a descoberta, por parte de Janja, a nova primeira-dama, da retirada do quadro Orixás, de Djanira da Motta e Silva, do Palácio do Planalto e da existência de um furo feito a caneta na obra durante os anos do governo Bolsonaro. Em Santa Catarina, na Praia de Cabeçudas, uma imagem de Iemanjá foi vandalizada e teve sua cabeça arrancada. Em Uberlândia, Minas Gerais, mãe e filhas foram atacadas com jatos de água dentro do próprio apartamento por uma vizinha, que gritava xingamentos por achar que a família estava praticando algum rito religioso. 

Mas enquanto as medidas tomadas na política ainda não chegam às ruas, o povo também se manifesta.

Ator Demeson D’alvaro como personagem Exu no desfile da Grande Rio (Foto: AF Assessoria)

A escola Grande Rio foi a campeã do carnaval do Rio de Janeiro, em 2022, com o enredo “Fale, Majeté! Sete Chaves de Exu”, responsável por reapresentar um dos principais orixás à população que desconhece sua história, desmistificar os estereótipos negativos associados a ele.

Também no ano passado, povo do axé foi às ruas baianas na 18º edição da Caminhada pelo Fim da Violência e da Intolerância Religiosa, contando com centenas de pessoas.

Em novembro de 2022, ativistas participaram de sessão solene da Câmara dos Deputados em homenagem ao Dia da Consciência Negra e aproveitaram a oportunidade para cobrar ações por parte do Congresso pela igualdade racial.

2023: o começo de uma nova caminhada

O novo governo Lula traz novas perspectivas para o futuro por conta de um histórico na luta pela igualdade.

dezembro 22, 2003

Sancionada Lei n° 10.825

O Estado está proibido de tomar qualquer decisão que proíba o funcionamento das entidades religiosas

dezembro 22, 2003
dezembro 27, 2007

Sancionada Lei n° 11.635

É adicionado ao Calendário Cívico o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa

dezembro 27, 2007
janeiro 5, 2023

Sancionada Lei n° 14.519

É adicionado ao Calendário Cívico o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.

janeiro 5, 2023
janeiro 11, 2023

Sancionada Lei n° 14.532

O crime de injúria racial é equiparado ao crime de racismo, inafiançável e imprescritível

janeiro 11, 2023

Quando questionada sobre suas expectativas sobre o governo Lula, a professora Luciana disse: “A expectativa que eu tenho é de que aconteça um enfrentamento a todas as violências e racismos religiosos que marcam o Brasil, sobretudo quando estamos falando de religiões de matriz africana, como é o caso da umbanda ou do candomblé.” Para ela, é necessário criar lugares e estratégias específicos para combater as violências, e esse combate pode ser feito por meio de dispositivos legais. “Todo tipo de legislação é absolutamente fundamental, desde aquelas que tipificam essa violência (que inicialmente era injúria racial) como racismo, até aquelas que valorizam elementos da cultura e das tradições africanas, passando, obviamente, por leis que criminalizem o racismo em todas as suas manifestações na sociedade como um todo.”

Presidente Lula e primeira-dama Janja, no dia de cerimônia de posse, no Palácio do Planalto (Foto: Marcelo Camargo)

“Do lado certo da história, enfrentando o sequestro de nossa fé; por um país mais justo e que defenda as infâncias e as possibilidades de futuro dignas, com menos desigualdades; sem temer perseguições, mas sempre ao lado dos perseguidos”, foi o que Aava disse em suas redes sociais após encontro com evangélicos, durante o período pré-eleitoral do ano passado. 

Ontem (11/01) foi um dia histórico, segundo Aava. Foi quando Anielly Franco, irmã de Mariele Franco, socióloga, ativista e política brasileira assassinada a tiros em 2018, assumiu o cargo de ministra da Igualdade Racial. “Nós ficamos próximas, as duas na Coordenação do Grupo Técnico de Mulheres do Gabinete de transição, e eu me emocionei muito ontem. É muito significativo, não apenas pelo simbolismo de ser uma mulher negra, periférica, alcançando um lugar desses, mas porque passamos por muita coisa para chegar até aqui”

“E não é o fim. É apenas o passo inicial”, finaliza a vereadora.

DENUNCIE!

Disque 100. Não se cale.

REFERÊNCIAS

NOGUEIRA, S. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2020. 

SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS (SDH). Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011 – 2015): resultados preliminares. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos; organização Alexandre Brasil Fonseca, Clara Jane Adad. – Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, SDH/PR, 2016.

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