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O Brasil tem cravado em sua história o título de último país da América Latina a abolir a escravatura. Com a abolição em 1888, todos que se encontravam na situação de escravidão foram deixados à própria sorte. O racismo existente na sociedade brasileira do século XXI é legado do desamparo que ocorreu e ocorre com a população negra desde os primórdios da nação. Assim como as raízes do racismo são históricas, os demais grupos marginalizados também enfrentam opressões que estão estritamente ligadas com a estrutura em que o país foi criado e solidificado.
Nos últimos anos, discursos políticos da extrema-direita tomaram força, aproveitando esse já existente desprezo por grupos historicamente desfavorecidos. Ao utilizar inimigos como a “ideologia de gênero”, percebe-se o discurso contra a comunidade LGBTQIA+, por exemplo. Porém, surge a dúvida: como é a extrema-direita brasileira?
A extrema-direita sob a visão da Ciência Política
Para esclarecer sobre como funciona a extrema-direita, convidamos a doutora em Ciências Políticas pela Universidade de Brasília e professora na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás Rayani Mariano dos Santos.
Lab Notícias: Quais são as bases da extrema direita e de onde elas surgem?
Dra. Rayani Mariano dos Santos: É difícil afirmar que existe uma base da extrema direita e sua origem. Penso que no Brasil temos movimentos diversos que foram convergindo e têm atuado conjuntamente formando essa extrema direita. Se pensarmos no governo Bolsonaro, por exemplo, que é um representante da extrema direita, sua origem pode ser encontrada nos militares, nas religiões – especialmente as evangélicas, e no neoliberalismo representado pelo mercado financeiro. Acredito que esses grupos se uniram em torno de alguns ideais, buscando combater a esquerda, as conquistas de direitos das mulheres, da população LGBTQIA+, dos negros, da população mais vulnerável.
Existe no Brasil uma brecha para que essas manifestações de repressão vindas da extrema-direita se perpetuem ou há, efetivamente, uma tentativa de reprimir seus preconceitos?
Penso que existe um espaço grande para que esse discurso de ódio e essa violência se perpetue. Por muito tempo o direito à liberdade de expressão tem sido usado como desculpa para esse discurso e não tem sido punido.
Com a ascensão do bolsonarismo, pode-se dizer que houve uma brecha para que as pessoas expressassem seus preconceitos mais abertamente?
Penso que sim. Quando temos uma pessoa com um discurso abertamente violento ocupando o cargo mais importante do país e legitimando posições misóginas, racistas, homofóbicas e violentas, a expressão desses discursos se torna algo naturalizado e é considerado aceitável.
O conservadorismo é uma justificativa para que se tenha o preconceito contra grupos historicamente marginalizados? O que explica o preconceito destinado a esses grupos?
O conservadorismo pode ser entendido de diferentes formas. Quando compreendemos como uma ideologia podemos identificar alguns pressupostos. O preconceito é um deles – o preconceito no sentido de que algo que já é conhecido é melhor do que algo novo. Então se tradicionalmente as mulheres desempenham as tarefas domésticas e de cuidado, o pensamento conservador tende a defender que esse arranjo seria o melhor para a sociedade porque ele já mostrou que dá certo. É uma ideologia que preza pela tradição. Nesse sentido, direitos de grupos que têm sido marginalizados e oprimidos não são aceitos muitas vezes. Então penso que é uma ideologia que pode servir a esse propósito sim.
Opressão contra grupos minoritários é algo exclusivo apenas da extrema-direita? Quais são as diferenças entre a opressão realizada pela extrema-direita e pelos demais espectros políticos?
Penso que o que caracteriza a extrema direita é a violência aberta tanto no discurso quanto na prática. Mas a opressão contra grupos minoritários não é exclusividade da extrema direita. No caso brasileiro, por exemplo, desde a redemocratização o governo Bolsonaro é um dos únicos que pode ser considerado de extrema direita. Ele prega a eliminação dos seus oponentes políticos. Mas mesmo assim, negros, mulheres, LGBTQIA têm tido seus direitos negados pelos governos que antecederam Bolsonaro também. Então é um problema mais profundo e estrutural. A diferença, na minha visão, é que o governo Bolsonaro intensifica a vulnerabilidade desses grupos e legítima a violência contra eles também.
Lidando com o preconceito
“Tudo que eu tenho foi por mim. Não tem nada que eu tenho que não consegui graças a mim”
Esses discursos de opressão afetam pessoas reais. O estudante de Letras Eduardo Cândido, 19, é um exemplo disso: lida com o preconceito desde muito jovem. Uma situação que o marcou aconteceu ainda no Ensino Fundamental, quando foi proibido de jogar futebol por seus colegas durante as aulas de Educação Física apenas pelo fato de ser gay. Ele tentou reportar o episódio para a coordenação do colégio, mas nenhuma medida foi tomada. Além da homofobia, também já teve que lidar com racismo:
Uma vez, fui ao mercado e uma senhora me pediu informação. Quando eu respondi que não trabalhava ali, ela disse ‘Não trabalha aqui com essa cara e essa cor?’
Já no Ensino Médio, em outro colégio, foi chamado de “macaco” durante o intervalo por um menino, que segundo Eduardo, também não era branco. O colega começou a agredi-lo verbalmente usando termos racistas e homofóbicos devido a uma discussão sobre o interclasse de vôlei, mas novamente a coordenação não tomou nenhuma medida.
Uma vez, estavámos eu e meus amigos na porta de casa. [Os policiais] Perguntaram se a gente tinha algo, quando respondemos que não, ele começou a agredir a gente. Só pararam após a mãe de um [dos meus amigos] chegar perguntando por que estavam fazendo aquilo e eles responderam que era uma vistoria de rotina.
Na adolescência, ele se converteu ao candomblé após ter um sonho em que ele conhecia uma mulher que nunca tinha visto antes, que o mandou ir a um lugar. Depois de acordar, ele decidiu ir nesse local que viu no sonho e era um terreiro. Naquele momento, decidiu entrar para a religião, o que não foi bem recebido pela sua família no começo, que é evangélica, mas que atualmente aceitam bem.
A primeira manifestação que ele participou foi a Parada do Orgulho LGBTQIA+ em 2017. Nesse momento, o estudante percebeu que era importante lutar pelos seus direitos. Em 2018, começou a militar, frequentando manifestações contra atos do governo, como os cortes que ocorreram na Educação.
“Eu comecei a não querer aceitar essas situações [de preconceito], então isso me fez mais próximo da militância. Querendo ou não, a gente evolui com as coisas que a gente sofre”.
Infográfico
Para ter uma amostra do pensamento que as pessoas tem de grupos historicamente marginalizados, foram coletados alguns dados através de um formulário com perguntas relacionadas ao tema, respondido por 52 pessoas.
As explicações na antropologia
Para entender a origem de manifestações de opressão, a doutora em Antropologia pela UnB e professora da Universidade Federal de Goiás Luciene de Oliveira Dias, explica:
A gente tem uma trajetória história que colocou algumas pessoas na condição de privilégio e essas pessoas passaram a reproduzir um modelo de acordo com essa condição. Elas imaginam que elas têm o privilégio da existência única, mas a gente não vive numa sociedade uniforme padronizada. Nós vivemos tentativas de padronização, mas a sociedade não é uniforme, ela é diversa. Ela é plural. Quando essas pessoas que ocupam o lugar de privilégio olham em torno e vem outras pessoas que não refletem o que elas são e elas se sentem profundamente ameaçadas e reagem. Essa reação costuma ser violenta.
A antropóloga explica que devem ser considerados os vários níveis de violência, como violência simbólica, violência física, violência que ocasiona a morte ou violência de invisibilização. Quando invisibilizam o outro que é diferente delas, seria uma tentativa dessas pessoas de garantir e manter esse lugar padronizado. Assim, o que se opera é uma sociedade muitas vezes racista, homofóbica, misógina e preconceituosa, porque nega a diferença e o que não é reflexo de si.
Tem uma máxima que vem sendo muito discutida hoje por diversas áreas do conhecimento, que é a seguinte: se você quer discutir racismo e você não é uma pessoa negra, discuta privilégio; Se você quer discutir etnocentrismo e você não é uma pessoa indígena, discuta privilégio; Se você quer discutir machismo e você não é uma mulher, discuta privilégio.
A docente esclarece que existe uma lugar de conforto que mantém pessoas privilegiadas seguras de onde elas ocupam. Ela cita uma experiência pessoal:
No prédio onde eu moro tem um oficial da polícia. Eu ouvi este oficial no elevador dizendo: ‘eu não vou abrir mão de nenhuma munição que eu comprei’. Por que que ele diz isso para mim? No dia 2 de janeiro, o Presidente da República resolveu modificar a lei de porte de armas, ele não se sentiu ameaçado. Por outro lado, eu, que sou uma mulher negra e professora, nem munição tenho em casa, eu nunca comprei munição. Então essa lei não me alcança, ela não me agride. A não ser por um armamento que me direciona a bala.
Por isso, ela reforça que para discutir esses preconceitos e esse enrijecimento do pensamento que leva uma pessoa a se posicionar de extrema-direita, é preciso discutir privilégio.
Um olhar da direita moderada
Todo extremo é nocivo independente do espectro político.
O produtor rural Cleberson Silva se considera de direita. Quando perguntado sobre a extrema-direita, o agricultor familiar concorda que todos os extremos são negativos. Entretanto, ele diz que não concorda com a forma que as invasões que ocorreram em 2013, no governo Dilma, não tiveram os manifestantes chamados de “terroristas”, enquanto esse termo está sendo usado para as manifestações atuais de 2023. Para ele, “o que deveria ser feito é ir ao Congresso e fazer investigações”.
O agricultor alega que a “direita não é bem-vinda no Brasil”. Segundo ele, muitos políticos foram eleitos na onda bolsonarista, mas que quando chegaram ao poder não se posicionaram à direita e nem irão se posicionar.
De acordo com o produtor: “Atualmente na cultura do cancelamento, as pessoas não podem fazer piadinhas que já são taxadas negativamente. A esquerda também fazia piadas com a cabeça do Bolsonaro, com a morte dele, enquanto se a direita faz uma piada já é considerada fascista”. Porém, ele também diz não gostar de piadas que ofendem outras pessoas, porque “o que é considerado ‘mimimi’, às vezes toca no coração do outro”.