- “Todo mundo vê o TCC como um Bicho de Sete Cabeças, mas na verdade para quem já fez o curso todo, o TCC não é nada, é muito simples” Diz Marina Veiga que acabou de passar pelo processo - 11 de fevereiro de 2023
- Como grandes corporações ajudam a propagar a hipersexualização infantil - 20 de janeiro de 2023
- “Os alunos têm que bater o pé e exigir esse espaço.” Ricardo Pavan fala sobre seu trabalho na Rádio Universitária e o futuro da Emissora. - 9 de dezembro de 2022
Criança namora? o conteúdo acessado pela criança deve ser monitorado? Sexualizar crianças é lucrativo? Essas perguntas me foram sugeridas no fim do ano passado quando me pediram para fazer uma reportagem sobre hipersexualização infantil. O questionamento surgiu do filme franco-senegalês, Mignonnes (no idioma original) ou Cuties (no restante do mundo) o filme acompanha Amy (Fathia Youssouf), que se muda com sua mãe para um novo conjunto habitacional. A essa novidade juntam-se as descobertas de adolescência de Amy, e a sexualização precoce.
Poderia ser apenas mais um filme comum, mas a sua distribuidora global do filme, a Netflix, utilizou como poster de anúncio do filme uma cena, que sem a devida contextualização é apenas uma imagem que propaga e perpetua a sexualização infantil (vale lembrar q a protagonista e sua trupe tem entre 10 e 11 anos no filme), justamente o que a diretora do longa, Maïmouna Doucouré queria discutir e combater.
Infelizmente não precisamos ir tão longe para encontrar célebres casos de hipersexualização. Lembremos do início da carreira de MC Melody, a garota, que ganhou notoriedade aos 8 anos de idade em vídeos em que aparecia excessivamente maquiada e com roupas inadequadas para a sua idade. O Ministério Público de São Paulo interveio abrindo um inquérito para investigar o “forte conteúdo erótico e de apelos sexuais” em músicas e coreografias da garota. Em 2019, outra polêmica: uma foto postada nas redes sociais de Melody, que tinha 12 anos na época, chamou a atenção pelo fato de a garota estar se vestindo ou maquiando como se já fosse uma garota maior de idade. Para a psicóloga Kamyla, parte da culpa é dos padrões impostos na sociedade atual.
“Na minha visão tem uma precocidade em relação à criança, no fato de mexer na tecnologia, no conhecimento, nas pesquisas, agora maturidade, eu acredito que não. A maturidade é uma coisa um pouquinho mais aprofundada, é acompanhada da questão de responsabilidade. Isso tem acontecido? Eu não saberia falar. As crianças estão sendo mais responsáveis hoje? Acredito que não. Elas talvez estejam mais ‘adultizadas’ (sic). Mas você nasceu em 1996, eu nasci em 1979. Quando eu tinha 15 anos, eu era uma ‘bocó’ (sic), eu brincava com as pessoas na rua. Hoje uma menina de 15 anos já tem uma outra visão, ela já sabe fazer maquiagem, tá mais atenta à aparência. Às vezes ela já tá atenta a um relacionamento amoroso, as vezes ela já está voltada para isso”.
A indústria da moda também tem sua parcela de culpa. Recentemente a Balenciaga, marca de artigos de luxo para adultos, anunciou alguns lançamentos de forma muito problemática. A marca colocou em seu anúncio, crianças segurando brinquedos de pelúcia que por sua vez usavam acessórios usados em BDSM, prática fetichista que busca o prazer por meios “violentos”. Além dessas fotos, outras peças da campanha tinham em seu background documentos da suprema corte estadunidense que tratavam sobre pornografia infantil, após a polêmica, alguns influenciadores conhecidos por usar a marca foram pressionados a tratar do assunto, mas a maioria desses influenciadores decidiram se calar. A psicóloga Kamyla também comentou o caso e falou sobre o impacto que as marcas têm na hipersexualização e se isso é financeira mente lucrativo.
“Por exemplo essa última propaganda da Balenciaga, eles colocaram crianças, a Balenciaga não faz roupa para criança, ela faz roupa para adultos e elas colocaram crianças segurando bolsinhas, com bichos de pelúcia, ursinhos, usando roupas e máscaras que remetiam a fetiches (BDSM). Por que você coloca a criança com aquilo? Você tá expondo-a algo que ela vai olhar e não vai entender, o urso com a boca amarrada, com um chicote na mão, isso é uma exploração da criança. O consumo é lucrativo. Eu não sei te responder isso, se é lucrativo sexualizar. Se vai vender para criança, o nicho vai vender. Agora, se eu vou vender uma sandalinha de salto, ou uma normal. Eu vou ganhar. É óbvio que a criança vai querer essa de salto, porque na moda, essas coisas são valorizadas, então acredito que se a gente analisar por aí, sim. É lucrativo, porque tem venda alguma coisa que vai deixar a criança mais alta, ela vai se sentir melhor, é um brilho, é um shortinho curtinho, ela vai se sentir parecida com a pessoa que ela viu no programa X. Mas esse consumo também precisa ser orientado, os pais têm que ter acesso a isso.”
Esse tipo de abordagem social traz um outro risco para as crianças, o abuso sexual, segundo a psicóloga esse processo não se inicia no abuso, mas essa é uma infeliz consequência de: falta de educação sexual, falta de percepção sobre as vontades da criança e suas restrições a determinadas figuras próximas e a normalização de uma cultura que insiste em objetificar as mulheres. Ainda sim segundo a psicóloga, é necessário ter cuidado sobre com tratar disso com a criança.
“Apesar de ter muita sexualização na sociedade, desse tema permear, ele ainda é um tabu. Fala-se pouco de sexo em casa, educa-se pouco para o sexo em casa. Esses dias eu estava vendo uma série, eu acho que chama Anne with an E. E ela fala sobre beijo, ela fala com os pais adotivos, e isso é uma coisa tão absurda para os pais que eles transformam aquilo quase que… nela ser uma criança safada. “Porque você não tem que se preocupar com isso…”. Ela só queria saber como é que é. O (perguntar sobre o) beijo era da idade, mas as pessoas, o pai e a mãe não estão preparados para falar sobre isso. […] A criança sofre se ela não tiver uma educação adequada. Além disso, se você incentiva a criança, por exemplo a ficar abraçando pessoas, tem gente que é assim: “dá um abraço no tio”. A criança não quer, para que que ela vai dar um abraço, e um beijo no tio? se ela não quer, não tem essa obrigação. É comum fazer isso, não tem intimidade, as vezes o corpo fala. A criança repele, e os pais ficam: “mas dá logo”, como se fosse uma questão de educação. Você entende aonde isso vai? “Eu não quero, mas eu tenho o quê”. Isso pode facilitar situações de abuso, em que fica normalizado para criança, que ela vai passar por situações que ela não quer, que ela não gosta.”
“Quando você coloca crianças para dançar funk por exemplo, essas danças de internet que são as danças mais famosinhas. Elas têm um lado “proibidão”, de uma cultura em que a mulher é objetificada. E que ela tá ali a serviço do homem, então tem linguagens como “soca, soca”, “senta, senta” e é uma música que não é feita criança, mas aí, a dancinha se populariza, as crianças assistem, as crianças repetem.”
Em um mundo ideal, todas as famílias teriam acesso um tipo de programação recomendada para as crianças por 24 horas por dia, mas sabemos que as mídias tradicionais não têm o tipo de conteúdo ideal para crianças, Reality shows, propagandas de bebidas alcoólicas, preservativos, catálogos de moda que mostram corpos semidesnudos, além de comportamentos sensuais serem destaque nas redes sociais. O acompanhamento do consumo midiático das crianças é essencial para não permitir que a criança chegue a conteúdos que não serão compreendidos e que o instigue a se comportar de determinada maneira.
‘As meninas elas têm mais essa característica de erotização mais cedo, precoce. Se a gente pegar, por exemplo a infância dos anos 90. você vai ver propagandas com a Carla Perez, tinha a dança da garrafa, e a criança não tem noção. Hoje, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os programas passam por uma revisão maior, hoje em dia não pode ter qualquer coisa. Mas em compensação a internet tá muito mais livre, se os pais não tiverem uma boa observação um bom acompanhamento, por mais que a criança não veja na TV aberta ou na TV fechada, ela pode ver no celular do coleguinha na escola, ela pode ver na dancinha do Tik Tok, que o pai fez o perfil para ela, no reels, no Instagram. Os pais não precisam proteger a criança, ao ponto dela ficar alienada, e chegar lá na escola sem saber do que que se trata, porque com a socialização, se ela não souber em casa, muito provavelmente, ela vai ter contato em outro lugar. A questão é como apresentar isso para criança.”
A hipersexualização traz também outros problemas para as crianças expostas a esse tipo de comportamento, embora muitas vezes, as pessoas afetadas não se lembrem do fato que gerou esse tipo de trauma, ele ainda pode gerar consequências graves, não estando apenas atreladas a gravidez na adolescência ou os transtornos alimentares ou de imagem. Como nos conta Kamyla
“Tem a questão dos transtornos alimentares, a depressão, a erotização, a ansiedade, problemas de autoestima da criança, de não se sentir aceita, ou se permite passar por situações incomodas para ela para satisfazer outras pessoas. Problemas relacionados à própria sexualidade, liberar demais, se trancar demais. […] Muitas coisas que a gente viveu na infância a gente esquece, mas isso não quer dizer que esse conteúdo não continue reverberando a nossa vida toda.”
A popularização das redes sociais traz para os pais da atual geração um problema novo e não experimentado anteriormente, a maioria delas não é pensada para o público infantil, logo, essas redes, seja por motivação financeira ou para expandir o número de usuários são flexíveis com a sexualidade, seja ela implícita ou explicita. A psicóloga acredita que os pais precisam acompanhar de perto esse acesso e acima de tudo conversar e orientar as crianças.
“Os pais precisam monitorar porque a internet, ela não tem um uma fronteira muito grande, então você pesquisa uma coisa, ele te dá um monte de coisa, você entra naquilo e os algoritmos pesquisam muito mais, eles vão mudando de acordo com o que você mexe, se você entra numa rede social, vê uma publicação, curte, ele vai te mandar mais coisas dessas, fica variando, ampliando, não é variável, fica ampliando. […] Se os pais não estiverem atentos a essa questão, a criança, pode ter acesso a conteúdos muito acima do que elas estão preparadas para receber. […] E acontecem conteúdos sobrepostos. Já outras redes sociais, Tik Tok, Instagram, que são mais famosas. A serviço do que? os pais têm que se perguntar isso, muitas vezes, eles dão esses aparelhos celulares para as crianças, é quando elas entram nessas redes sociais, para os pais poderem descansar um pouco, se eles estão acompanhando é uma situação A, se eles dão e falam “me dá um tempo”, é uma situação B.”
Os pais nessas situações são a única proteção das crianças contra esse tipo de conteúdo, por tanto eles devem estar atentos aos sinais e palavras dessas crianças. Mas como sabemos não são todos os pais que podem proteger essas crianças, alguns desses pais, seja por conivência ou por falta de informação expõe elas a situações que podem ser problemáticas, livrá-las dessa situação necessita atenção de toda a sociedade.
“criança, ela é protegida pelo estatuto da criança e do adolescente, pelos conselhos tutelares, e geralmente eles interferem tudo que se trata de criança, eles interferem no trabalho, em desfiles, uma participação em show, precisa ter autorização, se o pai e mãe vai deixar viajar com outra pessoa, precisa de ter autorização.”
Uma forma eficaz de livrar as crianças da hipersexualização é a informação, incentivá-la a falar com os pais sobre isso, ser honesto em relação a como ela nasceu e a como ela pode se relacionar com outras pessoas, deixando sempre claro que isso é coisa de adulto, mostrando para a criança também, que é ela que tem domínio do seu corpo, e ninguém pode tocá-la de forma que ela não queira, deseje ou entenda.
“É uma é uma leitura dos Pais devem fazer. O que que meu filho tá assistindo na televisão? O que que meu filho tá vendo no computador? o meu filho que tem acessado no celular? o que que ele tá vendo? que tipo de brincadeira? o que que ele tá conversando? Quando a criança chega na gente, fala isso, quando a criança chega e faz uma pergunta, pergunta para ela: “onde você viu isso?” “Do que você quer saber?” E tem que ter calma, para deixar a criança falar, o que que tá acontecendo. Porque, se de repente você explode, a criança cala, então é uma série de situações, nuances, para dar conta de orientar a criança na própria sexualidade, no desenvolvimento da própria sexualidade. […] As pessoas se preocupam muito com educação sexual, acham que vai incentivar filho ter relação mais cedo, a ser homossexual, não tem nada disso. […] A criança vê numa propaganda com uma mulher de biquíni, cheia de atenção e as outras mulheres querendo copiar, por que que as crianças não gostariam? A não ser que ela tenha ali uma boa orientação, “olha aquela moça tá de biquíni, mas não tem necessidade de ser assim”, “você é bonita assim mesmo” “Quando você crescer, vai poder usar uma roupa assim”. Orientar a criança do que que é da Criança e do que que é do adulto.”
Ainda sim, muitas famílias acham que as crianças devem namorar entre si, que não existe problema em se relacionar dessa maneira, desde que seja com crianças da mesma idade, porque elas são puras. Segundo Kamyla não é bem assim.
“Criança não namora. A criança se relaciona com os colegas, ela aprende por si só, ela não namora, ela pode ser incentivada. E aí é uma coisa complexa, porque as crianças precisam do amor dos pais, isso é uma coisa certa, elas precisam e elas querem o amor dos pais, e às vezes elas são influenciadas agir dessa e de outra maneira. Ela acredita que isso vai fazer o pai gostar mais dela, o pai ou a mãe, então se falar que tem um namoradinho na escola, ela pode ser incentivada a isso mesmo sem ela querer, agora qual que é a razão? […] Nessa fase a criança, ela tem que ser orientada, até por uma questão social, a estudar, buscar novos horizontes, para sair dessa visão de “eu preciso de um relacionamento”, “eu tenho que estar relacionado a algum homem”, “eu só vou ser feliz, se eu estiver namorando”. Que é uma ideia socialmente pregada para todo mundo. Qual que é a necessidade de ficar incentivando as crianças a pegar na mão do coleguinha, abraçar o coleguinha, dar um beijo na boca do coleguinha, o que é isso? É um desejo dos próprios pais que são imputados nessa criança, sem raciocínio, sem pensamento. Criança brinca, criança se diverte, criança aprende, criança socializa, criança sorri, criança come bem, criança se exercita, criança descobre, mais não, criança não namora.”