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Quando foi decretado o período de quarentena em vista da recém-declarada pandemia de um novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, e responsável por causar uma nova doença que a partir de então seria chamada de Covid-19, muitos diriam que eram inimagináveis as mudanças de hábitos que, apesar da retomada de uma suposta normalidade através das atividades presenciais, ainda estaríamos testemunhando mesmo quase três anos depois.

Algumas mudanças foram mais óbvias, como o uso de máscaras e o distanciamento social. Outras, como o aumento da produção de resíduos sólidos e o seu impacto nos sistemas de coleta pelo mundo como resultado dessas alterações, nem tanto. Uma consequência direta das medidas implementadas para refrear a contaminação, a geração de lixo no Brasil sofreu um aumento de 15 a 25% devido às medidas adotadas de isolamento social, de acordo com a Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). 

Geração de resíduos sólidos urbanos (RSU)  no Brasil e regiões – comparativo 2021 e 2022. Panorama 2022, Abrelpe.

Ainda, com o aumento do consumo de medicamentos e produtos hospitalares que foram gerados em massa com a eclosão do Covid-19, houve um aumento de dez a vinte vezes na produção desses tipos de resíduos em comparação com o período anterior à pandemia, conforme o Panorama 2020 da Abrelpe, um relatório elaborado anualmente para a mapeação da coleta e produção de resíduos sólidos no país.

Desse modo, o consumo e manejo dos materiais descartados pela população também teve um deslocamento dos centros de produção de lixo dos ambientes comerciais, como empresas, bares e restaurantes, para as residências e domicílios. Mas desde meados de 2021, com a adoção de modelos híbridos, seja no ensino ou no trabalho, e o retorno gradual das atividades aos padrões vigentes anteriores à pandemia, o cenário passou novamente por transformações importantes.

Coleta de RSU no Brasil e regiões – comparativo 2021 e 2022. Panorama 2022, Abrelpe.

Segundo o Panorama 2022 publicado pela Abrelpe em dezembro do ano passado, com essa retomada de boa parte das atividades ao modelo prevalente pré-pandemia, os centros de geração de resíduos foram sendo novamente deslocados dos domicílios para escritórios, escolas, centros comerciais, entre outros locais; embora as residências ainda sejam um ponto importante na criação de lixo. Tais dados são confirmados por Dulce Helena do Vale, funcionária da Cooper Rama, uma cooperativa de catadores de materiais atuante em Goiânia.

“Tivemos um aumento nos resíduos recicláveis nas residências e diminuição no comércio. Os hospitalares aumentaram também em grandes proporções, máscaras, luvas… Os quais deveriam ir para o rejeito, não nos recicláveis”, afirma Dulce. Assim, nota-se outra questão relativa à maior produção de lixo durante o período pandêmico, envolvendo o seu impacto direto no meio-ambiente.

Disposição final adequada x inadequada de RSU no Brasil (t/ano e %) – comparativo 2021 e 2022. Panorama 2022, Abrelpe.

O impacto no meio-ambiente

De acordo com estimativas da ISWA – International Solid Waste Association (Associação Internacional de Resíduos Sólidos, em tradução livre), o custo das políticas ineficientes na gestão de resíduos é de três a cinco vezes maior do que o valor necessário para investimento e custeio de soluções eficazes e ecologicamente corretas. Os impactos causados pela destinação inadequada de resíduos sólidos urbanos, depositados em lixões e aterros controlados, afetam não apenas as condições ambientais, uma vez que são fontes contínuas de poluição da água, solo, flora, fauna e de emissões de CO2; mas também influem diretamente na saúde da população como um todo.

“Estima-se que, em virtude da existência de lixões e aterros controlados, entre 2016 e 2021, o gasto total da saúde no Brasil para tratar dos problemas causados em decorrência da destinação inadequada de resíduos foi de 1,85 bilhão de dólares”, relata a ISWA em documentos oficiais. Mas quando se trata especificamente da pandemia do Covid-19, o relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) “Análise global do desperdício no sistema de saúde no contexto do COVID-19: status, impactos e recomendações”, deixa ainda mais evidente que as sequelas do coronavírus vão muito além da saúde e da economia. 

O documento apresenta o cenário em que “dezenas de milhares de toneladas” de resíduos médicos extras, como seringas, material hospitalar, máscaras e outros equipamentos de proteção individual (EPIs) colocaram uma pressão sem precedentes sobre o manejo de lixo, além de produtos e reagentes químicos utilizados nos tratamentos e higienização dos hospitais, que ameaçam “a saúde humana e ambiental”, e expõem uma necessidade urgente de melhorar as práticas de gerenciamento que concernem a produção de resíduos. 

Milhares de toneladas de produtos e equipamentos médicos produzidos durante a pandemia não estão tendo um descarte apropriado, afirma OMS. Foto: Flickr

No relatório destinado à imprensa, Anne Woolridge, presidente do Grupo de Trabalho de Resíduos de Serviços de Saúde da ISWA, afirmou que “Uma mudança sistêmica na forma como os serviços de saúde gerenciam seus resíduos incluiria um escrutínio maior e sistemático e melhores práticas de aquisição”.

Dr. Eguimar Felício, professor titular do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG), complementa: “Vale expor que há uma contradição: as gestões urbanas não possuem sensibilidade para enxergarem o efeito deletério do lixo na vida das pessoas. Todos esses elementos criam uma desordem na relação entre consumo-lixo-captação-tratamento. O ambiente passa a contar com bactérias, hospedeiros e reprodução de vírus que danificam a água, o solo e a saúde humana.”

Mas não apenas sobre os serviços de saúde e administrações urbanas recai essa responsabilidade. O descarte incorreto dos resíduos e EPIs utilizados pela própria população se mostra também uma preocupação de saúde pública e ambiental, com a pandemia tendo agravado um problema para o qual ainda há pouca conscientização do público.

Indagado sobre possíveis caminhos para reverter tal situação, Dr. Eguimar é categórico ao afirmar que fornecer a instrução adequada sobre o tema é a solução ideal. “A população, em geral, tem a consciência ambiental proveniente da descartabilidade. Uma solução é oferecer oficinas ativas e dinâmicas em igrejas, escolas ou outras instituições, às pessoas dos bairros. Esse é um papel central da Educação ambiental. Outra solução é aproximar três pontos: a geração do lixo nos espaços domésticos; a coleta e o seu tratamento. Isso exige uma ligação afetiva entre população, gestos e educadores ambientais”, finaliza.

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