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Após mais de dois anos de pandemia e isolamento social, a educação brasileira tem enfrentado desafios em um processo de readaptação dos alunos com as aulas presenciais. O retorno às salas de aulas tem exigido esforço e inovação dos professores que buscam a modernização da educação. A saúde mental das crianças, a convivência com o luto, a super exposição às telas e a falta de socialização infantil com as restrições sanitárias da pandemia transformaram a estrutura de ensino-aprendizagem do país.
Segundo a Fundação Getúlio Vargas, durante a pandemia o Brasil teve um retrocesso de 15 anos na alfabetização. A pedagoga especializada em neuropedagogia e psicanálise infantil, Janine Melo, conta suas vivências em sala de aula após a pandemia. A professora analisa o ensino no período e as consequências do ensino a distância para a educação brasileira.
LN: Janine, você atuou como pedagoga no período de isolamento social devido à pandemia da Covid-19? Se sim como foi essa experiência, quais desafios você enfrentou e como você vê, hoje em dia, o ensino que foi disponibilizado nesse período?
No isolamento social eu atuei como coordenadora pedagógica. Na pandemia eu vi o ensino muito mais para cumprir a carga horária exigida pelo MEC do que eficaz no objetivo de aprendizagem, já que não houve nenhum comunicado de flexibilização do MEC e tivemos que começar a atuar com uma nova modalidade de ensino. Quando as aulas estavam 100% online eu percebi uma maior eficácia no ensino comparando a forma híbrida que usamos em 2021. A forma híbrida foi para mim devastadora, eu atuei como coordenadora em 2021 e trabalhar com metade da turma presencial e a outra metade online era quase inviável, não havia aproveitamento de nenhuma das turmas.
Eu considero impossível, humanamente falando, que você fale duas línguas ao mesmo tempo. Como coordenadora, eu falava um dito para as professoras de que elas estavam “chupando cana e assobiando”, porque manter domínio e envolvimento em dois grupos que estão em lugares separados, sendo crianças, é muito difícil. Os professores tinham uma dificuldade muito grande de acompanhar de uma forma eficaz esses dois grupos de crianças. Eu considero que foi um aproveitamento abaixo de 50% nesse ensino híbrido.
LN: Muitas crianças viveram os primeiros anos escolares, que são cruciais para a alfabetização, através do ensino remoto. Como essas crianças estão lidando com o ensino presencial hoje e como está sendo o desempenho de ensino-aprendizagem delas?
O desempenho não é o mesmo de antes da pandemia. Nós trabalhamos sempre com uma orientação prévia de que são “crianças da pandemia”. Nós falamos do saldo da pandemia, hoje estamos com crianças chegando no terceiro ano que não estão familiarizadas com a decodificação. O ciclo de alfabetização, segundo nossa metodologia de ensino no Brasil, se fecha no terceiro ano do Ensino Fundamental. No primeiro ano a criança aprende a decodificar, aprende as letras e a formação de palavras, no segundo ano inserimos símbolos e acrescentamos frases e no terceiro ano estamos aparando arestas de erros ortográficos.
Nesse momento, pós-pandemia, estamos recebendo crianças no terceiro ano com o ciclo totalmente desregulado, nós nem dizemos que são crianças “atrasadas”, considerando esse saldo da pandemia. Estamos tendo uma aceitação e compreensão maior com crianças da pandemia, ou seja, nós, professores, iniciamos o ano letivo com matérias do ano anterior. Por exemplo, estou iniciando com uma turma de quarto ano não com o conteúdo do quarto ano regular: eu trabalho de 1 a 3 meses o conteúdo para fechar o ano anterior, buscando minimizar esse saldo da pandemia.
LN: No período da pandemia, as telas foram os únicos meios de comunicação viável entre professor e aluno. Essa exposição excessiva às telas ainda faz parte do cotidiano dessas crianças e como isso tem afetado o desempenho escolar delas?
O desempenho escolar dos alunos foi afetado indiretamente devido às suas mudanças comportamentais, eu acredito que uma consequência de as crianças ficarem muito tempo próximas à família. Infelizmente as escolas no Brasil ainda têm características muito tradicionais, por mais que a gente use mídias e outras metodologias, a criança ainda tem que ficar sentada por muitas horas na sala de aula.
Eu vi que a escola teve que se reinventar, pois as crianças estão chegando com mais excessos. Por exemplo, a família da criança antes da pandemia controlava mais o acesso dela às telas, hoje lidamos com crianças de quinto ano do Ensino Fundamental que estão com celular em sala de aula. Essa não era a realidade antes da pandemia. Então a gente se depara com situações em que estamos sendo filmados por um aluno, mudando, assim, toda a estrutura do ensino. Estamos nos reinventando, e quem não está acompanhando e inserindo propostas que incluam essas mídias estão ficando para trás.
LN: Em relação a saúde mental dessas crianças, você hoje como pedagoga percebe um maior adoecimento mental dessas crianças após a pandemia? Existe um acompanhamento psicológico com elas?
Eu percebo sim uma fragilidade maior das crianças: estão mais intolerantes, qualquer problema fica muito grande para elas. Ficaram muito tempo sem o convívio social, e esse convívio é muito importante até para a formação do caráter dessa criança. Estamos em um momento histórico em que as crianças estão (re)aprendendo a socializar e não é fácil, pois os professores ensinam essa socialização a partir de um processo, e de repente isso é interrompido por quase dois anos, e agora precisamos novamente ensinar a ter que compartilhar e socializar.
Algumas escolas, como a escola em que eu trabalho, têm um acompanhamento, temos a presença do psicólogo escolar, mas ela atua mais diretamente em orientação às professoras e acompanhantes terapêuticos, do que diretamente com os alunos. Com os alunos a intervenção é apenas quando fazemos relatório solicitando, quando identificamos algo grave. Por exemplo, no final do ano passado uma criança do quinto ano, ou seja, de 10 anos de idade, fez uma produção de texto falando que odiava a escola, que preferia ficar em casa e que se ela tivesse uma arma iria matar todo mundo. Nesse caso solicitamos a psicóloga para fazer uma intervenção com a criança, chamando a família e orientando-a.
LN: Você presenciou alguma criança que teve que conviver com o luto na pandemia, seja decorrente da covid-19 ou não? Como foi o tratamento com essa criança no período de luto e como está sendo o acompanhamento atualmente?
Nós temos na escola em que eu trabalho três crianças que perderam o pai decorrente da covid-19. Uma dessas crianças possui uma família bem estruturada, faz acompanhamento terapêutico desde o falecimento do pai e assim a criança tem lidado bem com o luto. Já as outras duas crianças não tem tanto acompanhamento psicológico, nós vivemos o primeiro dia dos pais, no ano passado, para essas crianças sem o pai e foi uma situação complexa em que as crianças tiveram crises de choro e se recusaram a ir na escola nesse período em que estávamos trabalhando nas comemorações aos pais.
Já para uma criança, que é da educação infantil, ela se apegou a um crachá que era do pai. O pai trabalhava em uma empresa que tinha o crachá e a criança fez desse objeto uma substituição pela presença do pai. Aconteceu um dia dessa criança perder o crachá na escola, em uma sexta-feira ,que é o dia que todos os alunos levam um brinquedo e ela opta sempre em levar esse crachá, e nessa perda nós tivemos que abrir a escola no final de semana, pois a criança não conseguiu ficar sem esse objeto.
LN: O que precisou ser mudado no planejamento de aula após a pandemia e quais caminhos você e demais profissionais da educação têm tomado para recuperar e fortalecer o ensino-aprendizado dessas crianças?
As crianças vieram desse pós-pandemia com alguns comportamentos alterados. Nós exploramos mais outros ambientes, como a sala de computação. Nós estamos fazendo jogos e recursos tecnológicos para as crianças de quarto e quinto ano. Tivemos que inserir mais a tecnologia e as mídias digitais dentro do planejamento. O conteúdo não mudou, mas a forma de ensinar, a metodologia, precisou ser mudada.
Aquela forma de professor, livro e quadro não funciona mais, especialmente após a pandemia, algumas escolas ainda conseguiam usar esse método ultrapassado antes da pandemia, mas agora a mudança na metodologia foi necessária em qualquer escola. Nós precisamos nos reinventar, pois as crianças têm cobrado de nós professores, as crianças estão mais críticas e autônomas no sentido de se posicionar mesmo. Na escola que trabalho até abaixo-assinado as crianças de quarto e quinto ano fizeram solicitando “aulas diferentes”.
LN: Em quanto tempo você acredita que as escolas consigam recuperar o que foi perdido na pandemia e como você vê os próximos anos de ensino-aprendizagem no Brasil ?
Eu acredito que a escola particular consiga diluir isso em um tempo menor, com uns 5 anos, já na escola pública eu acredito em 10 anos ou mais, pois ainda existe essa distância entre o ensino público e o ensino privado. O comportamento, a mentalidade do professor público é infelizmente diferente, falo dessa realidade pois trabalhei em escola pública por 4 anos. Por mais que nós professores se comprometam, o ambiente é diferente. Na escola pública sempre usamos o argumento de “deixa, vamos fazer assim mesmo”. Enquanto na escola particular é diferente: eu considero que o aluno do ensino privado é quase um cliente, e um cliente exige muito. Na escola pública quando você vai inovar, os colegas profissionais te cobram e pressionam para que você desista das mudanças. Sempre usam do argumento de que inovações geram mais trabalho, e quando um professor muda algo todos precisam mudar também.
LN: O espaço fica aberto caso você queira adicionar algo mais sobre o tema!
Eu espero que nós, professores, possamos correr atrás desse prejuízo gerado pela pandemia. Que estejamos conscientes de que realmente precisamos nos movimentar para que melhoremos a qualidade das aulas, buscando se reinventar na metodologia de ensino todos os dias.