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A advogada e diretora da ONG Mala de Histórias falou ao Lab Notícias sobre sua trajetória no empreendedorismo social, os desafios enfrentados e as ações desenvolvidas pelo grupo de voluntários que leva literatura e acesso a cultura a crianças em comunidades em vulnerabilidade social.
O Mapa das Organizações da Sociedade Civil, Iniciativa do IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, identificou que até 2020, no Brasil, haviam quase 820 mil organizações da sociedade civil formadas em diversos setores. A pandemia da Covid-19 contribuiu para o crescimento das ONGs e do trabalho voluntário no país. Ligada a área da cultura e atuando no incentivo à leitura entre crianças em comunidades em situação de vulnerabilidade social, a Mala de Histórias vem atuando desde 2019 na região metropolitana de Goiânia distribuindo livros e promovendo ações com o público infanto-juvenil. Bárbara Wendel, advogada, fundadora e diretora da ONG, fala sobre seu trabalho como empreendedora social, a importância do voluntariado, as ações com o público atendido pela Mala e as perspectivas do projeto para o futuro.
Lab Notícias: Bárbara, na sua rede social profissional você se apresenta como uma empreendedora social. Como você iniciou sua trajetória no empreendedorismo social?
Bárbara Wendel: Eu comecei a usar esse termo [empreendedora social] bem recentemente. No ano passado atuei como diretora executiva em outra ONG e foi a primeira vez que o ouvi. Sempre estive muito próxima ao voluntariado. Desde criança eu acompanhava minha mãe num trabalho voluntário que ela fazia num orfanato, então sempre estive fazendo trabalho social, e na verdade o que me fez ir por aí [para a criação da Mala de Histórias] é que eu sou muito apaixonada por literatura. Me formei no final de 2016 e atuo como advogada até hoje, mas já estava migrando para Letras.
No final de 2018, por causa de um voluntariado como anfitriã de um clube de leitores, fui convidada para fazer uma ação de leitura com o Grupo Partners [uma outra ONG] e fui. Nesse dia achei a ação muito desorganizada, muito sem propósito. Eles pegaram um monte de livros – muitos em inglês – e a gente foi ler para um monte de crianças de quatro ou cinco anos. Muitos voluntários não liam em Inglês e as crianças não entendiam. Mesmo assim eu achei muito bom fazer isso e fiquei com isso na cabeça pensando “acho que quero fazer isso de uma forma mais organizada”.
Assim resolvi fazer uma ação da Mala de Histórias e começamos em 2019. Chamei uns amigos e fomos levar livros e lanches para crianças de uma comunidade em vulnerabilidade social. Eu não sabia o que era uma organização social, não fui com o propósito de criar uma ONG, mas depois que a gente começa nisso aí não dá para sair. Toma uma proporção grande e a gente vê o quanto é gratificante ficar com as crianças. Quando se tem acesso a uma realidade diferente da nossa e se vê que esse acesso à cultura e à arte é para uma parcela pouca da população – ninguém consegue curtir arte passando fome – a gente acaba tomada por essas discussões e querendo migrar para isso. A ONG foi crescendo nesse sentido. Hoje somos três diretoras responsáveis legais pela ONG e eu estou à frente da parte mais criativa. A parte organizacional fica com minhas duas amigas, que são engenheiras. Já estamos indo para o quarto ano da Mala de Histórias e foi lindo.
LN: Sobre o projeto e suas especificidades, como ele acontece e que resultados vocês observam que ele têm trazido à população que vocês atendem?
BW: Cada vez mais eu acredito que nada na vida está posto. A gente vai vivendo e vai construindo. Quando começamos, nosso propósito era fazer rodas de leitura e ler com as crianças. O que fomos identificando no meio do caminho foi que a maioria deles não são alfabetizados, não sabem ler palavras, não conseguem pegar um livro e ler. A pandemia escancarou isso e mostrou que dois anos sem escola atrasou muito as crianças por causa da falta de acesso, o estudo ficou deficitário se comparado com quem tem condições. Então nós fomos percebendo que precisávamos fazer coisas que agregassem a atenção dessas crianças. Cada vez mais eu tenho certeza de que o que é revolucionário é o afeto. A gente se fixou, desde 2021, em três comunidades. As crianças primeiro criam um vínculo de acesso conosco, com a Mala de Histórias, com as ações que a gente promove, com o que a gente leva, e depois – quem sabe – elas começam a gostar dos livros.
Uma das histórias que eu mais gosto é a de um menino, o Igor, da comunidade Santa Rita, que foi a primeira comunidade que a gente foi com a Mala de Histórias, e eu fiquei com o grupo dele, que era um grupo de crianças de dez anos . Quando tirei os livros da sacola ele disse: “Vish, tia…livros? Não gosto disso não…”. Tinha um livro no grupo, que eu havia separado, que era um livro dos Piratas do Caribe em quadrinhos, um livro muito bonito, e ele se encantou por esse livro. Lembro do olhinho dele brilhando ao folhear as páginas. Ali ele criou um vínculo com a gente. Uma das últimas coisas que ele disse a nós foi pedindo para pegar dois livros porque queria levar um para a professora dele, com quem ele já tinha falado da gente.
Então o trabalho social de uma forma geral às vezes é um pouco frustrante porque até se traça um cronograma, uma meta, mas às vezes não se concretiza. O Igor é um “case” de sucesso porque a gente conseguiu levar afeto e mais oportunidade de acesso à arte e à cultura. O que eles vão fazer com isso eu não sei. Pode ser que a gente impacte sei lá, vinte deles, mas pode ser que a gente não impacte nenhum, mas eu quero mostrar que a arte e a cultura também fazem parte deles, também é para eles.
Eu não acredito em meritocracia, então acho que se a gente não oferecer oportunidades iguais essas crianças não vão conseguir chegar lá, mas a gente sabe que mesmo você tendo as mesmas oportunidades tem gente que consegue ter mais sucesso e outras não. Claro que tem o fator sorte, mas também tem o fator daquilo que eu quero fazer com a minha vida e eu acho que a literatura dá essa chance das pessoas pensarem ”eu posso ir por aqui, eu posso sonhar”. O que a gente percebeu nesse tempo também como a gente lê a vida de várias formas, então às vezes se você for numa ação com a gente, você pode achar desnecessário levar os livros, porque ninguém ali quase lê, mas elas estão desenhando, elas estão ouvindo a gente ler, elas estão ouvindo a gente contar histórias. Na verdade o mundo é feito por histórias, a gente está contando histórias o tempo inteiro, então é isso que nós tentamos levar.
LN: E como é o processo de chegada dos livros até vocês?
BW: Tudo o que a gente tem na Mala de Histórias é doação. Desde os lanches até os livros, kits de higiene bucal… então tudo é doação. Arrecadação de livros infantis e infanto-juvenis nós fazemos o ano inteiro, a gente tem quatro pontos de coletas de livros em Goiânia, que é a Criatto Fantasias, o Elegia Café, o Origini Pastifício e o Luís Café Conceito, que começou agora. Percebemos que de 100% dos livros, 60% precisam ter gravuras porque as crianças preferem por causa da ludicidade. Não aceitamos livros didáticos e livros adultos a gente não recebe por já termos um estoque e espaço limitado.
LN: Como você enxerga a influência do trabalho voluntário na vida das pessoas que participam da ONG?
BW: Eu tive uma virada de chave muito grande no final de 2021, quando a gente fez nosso primeiro espetáculo. Foi bem caótico, fizemos uma semana antes do dia das crianças e na comunidade estava acontecendo uma outra ação naquele dia com uma entrega de brinquedos. Então assim… a gente tinha a expectativa de um público de duzentas crianças assistindo e não conseguimos alcançar o público. Eu entendo muito elas, se eu fosse criança também iria até os brinquedos, mas para nós foi frustrante porque organizamos com um mês de antecedência e foi muito difícil fazer a montagem da estrutura.
Hoje eu fico vendo os vídeos dessa ação e eu sinto muito orgulho, mas no dia eu fiquei muito frustrada porque foi muito diferente do que eu esperava. Me lembro de um amigo meu, que antes era voluntário e na época, por estar fazendo um doutorado, só participou acompanhando, dizendo que tinha sido lindo e nos parabenizando. Só aí que minha chave virou. Quando a gente se candidata a um trabalho voluntário a gente acha que vai ajudar as crianças, que vai mudar a sociedade – e eu de fato acho que a gente está mudando a sociedade -, mas a gente está mudando a sociedade enquanto uma comunidade feita de voluntários. A gente aprende muito mais, a gente ganha muito mais do que a gente de fato dá. Claro que as ações são importantes para as crianças e a gente sabe que está fazendo um bom trabalho, mas não se passa por uma experiência de voluntariado sem mudar alguma coisa na sua vida. Eu acho que o que muda na vida de um voluntário é que você começa a se sentir parte de um todo, de uma coletividade, e ver a importância nisso. Hoje na nossa sociedade tão sem grupo, tão individualista, tão atrás das telas e das redes, fazer parte de fato de uma comunidade que você vê que está tentando mudar a sociedade – e eu não vou ser ousada de falar que estamos, acho que a gente tenta – te traz um senso de pertencimento, de encontrar seu lugar no mundo e saber que vale a pena fazer isso.
LN: Como você vê que a sua formação profissional como advogada e com um bacharelado em estudos literários quase concluído influenciou e influencia na sua trajetória como empreendedora social à frente da Mala?
BW: Eu diria que não foi um curso que eu fui apaixonada, que eu amei fazer [direito], mas hoje eu vejo o quão fundamental ele foi por toda a questão jurídica e legal. Desde o começo da ONG eu já tive cuidados que percebi que muitas organizações com muito tempo não tinham. Se eu não fosse advogada teria que ter pedido ajuda a alguém para escrever um estatuto social, coisa que eu fiz sozinha, redigir documentos, termos… Acabei guiando a parte legal e claro, muita coisa nós fomos aprendendo no processo.
O voluntariado te traz sempre uma oportunidade de aprender alguma coisa que às vezes você nem esperava. Hoje uma das grandes possibilidades de se adquirir recursos é por meio de editais e elaboração de projetos e a minha formação em Direito contribui bastante, para além de saber falar dos próprios direitos, claro. A Faculdade de Letras me dá sustentação para aquilo que eu sempre achei que gostaria de fazer mesmo, então eu acho muito interessante quando percebo na teoria coisas que eu já entendia na prática e não sabia como a teoria tratava. Eu sinto que assim, ouvindo e estudando literatura, estou realizada, principalmente quando vejo coisas da forma como eu compreendia que a literatura deveria ser.
LN: Como você enxerga o futuro da Mala nesse contexto sócio-político e cultural que o Brasil está vivenciando agora a partir desse ano de 2023?
BW: Eu, na verdade, já tinha um plano para caso estivéssemos em outro cenário, o que graças a Deus não estamos…Mas o plano para agora também é o mesmo: cada vez mais acessar aqueles locais que infelizmente não são acessados – e a gente sabe que há um projeto político para que eles não sejam acessados – porque população com conhecimento é população que reivindica direitos. Então é isso, é chegar onde, na teoria, a gente não pode chegar.
Eu tenho muita vontade de que cada vez mais essas crianças tenham acesso à arte e à cultura da forma como eu tive, de que ter um livro em casa não seja ter um objeto de luxo, mas ter o livro e ser delas. Fico contente quando, nas ações da Mala, cada criança leva um livro. As bibliotecas das escolas têm papel fundamental, mas o sentimento dos livros pertencerem às crianças é igualmente importante. Então é esse nosso objetivo: acessar os lugares que cada vez mais não são acessados.
A ONG está aberta a recebe cadastro de novos voluntários. Interessados devem preencher formulário online e esperar contato pela Diretoria para entrevista e assinatura de termo de compromisso.