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A prestação de contas da União e os gastos públicos do Governo Federal são pautas de discussões diárias na sociedade civil. No entanto, pouco se fala sobre essa prestação de contas e a transparência em pequenas prefeituras brasileiras. Pequenos municípios buscam atender a Lei de Acesso à Informação, mas com portais de transparência pouco alimentados, desatualizados e raramente divulgados pela administração. Além disso, a população em geral dificilmente conhece ou acessa tais informações e a desconfiança com o destino das verbas públicas permeiam a sociedade.
A legislação em torno da transparência pública
A legislação brasileira resguarda o direito de acesso a informações a partir de qualquer cidadão. A mais importante lei que rege a transparência pública é a Lei de Acesso à Informação (LAI). A LAI foi promulgada em 18 de novembro de 2011 e entrou em vigor a partir de 16 de maio de 2012, a partir dela, qualquer pessoa, jurídica ou física, tem direito de pedir e receber uma informação que seja de caráter público. Contudo, dificilmente, um cidadão conhece ou se informa com os dados publicados pela prefeitura, as licitações, arrecadações e gastos se tornam assuntos desinteressantes para a população.
Uma auditoria no Tribunal de Contas da União (TCU) apontou irregularidades e falta de transparência nos dados públicos de mais de 1500 municípios brasileiros. Existe uma negligência das prefeituras de pequenos municípios em relação às atualizações, inovações e divulgação para incentivo do acesso a esses portais de transparência.
A Constituição Federal de 1988 prevê, a partir do artigo quinto, que o acesso à informação é um direito fundamental previsto no ordenamento jurídico. No entanto, a obrigatoriedade e a promulgação de leis que incentivam e exigem a divulgação de dados de caráter público a partir dos poderes administrativos só chegaram aos corredores do Congresso Nacional em 2011. Logo, é viável afirmar que a busca pela transparência e pela divulgação de informações e dados públicos foi tardia no Brasil.
Maria Paula Almada, doutora e mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA. Graduada em Jornalismo pela mesma instituição e vice-coordenadora do Grupo de trabalho “Governo e Parlamento Digital” da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica) afirma que a construção de uma legislação que resguarda a transparência pública no Brasil foi lenta.
“Primeiro temos o artigo quinto da Constituição, que aborda o direito de acesso à informação. Depois, em 2000, vem a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que é um adiantamento no crescimento da transparência ativa. Tivemos nesse percurso a criação e obrigatoriedade dos portais de transparência e depois a LAI, que foi criada e promulgada porque o Brasil estava querendo entrar no Open Government Partnership (OGP), que é uma organização de países para promover a transparência e combater a corrupção. Assim era pré-requisito que o país tivesse leis de acesso à informação sancionadas, por isso que o governo Dilma sancionou a LAI e entrou na OGP. Então eu acredito que essa transparência foi um percurso lento construído no Brasil”.
A LAI é hoje uma das mais importantes leis acerca da divulgação de dados e direito à informação a qualquer cidadão, pois promove a “transparência passiva”, enquanto as leis que antecedem a LAI garantem uma transparência ativa. A doutora Maria Paula Almada explica a diferença entre essas transparências públicas:
“[Há] iniciativas como LAI e LRF que promovem a transparência ativa, em que as informações já devem estar públicas, isto é, qualquer pessoa entra em um portal do executivo municipal e as informações sobre gastos e despesas, por exemplo, estão disponíveis. Todas essas leis antes da LAI promoviam a transparência ativa, a LAI normativiza a transparência passiva, ou seja, se o cidadão quiser saber de qualquer informação de interesse público ele pode perguntar via LAI, e as prefeituras têm obrigação de responder esse cidadão. No Brasil, culturalmente, ao longo dos anos a transparência foi se tornando regra e o sigilo é uma exceção, ou seja, o sigilo precisa ser justificado e a transparência deve ser promovida”.
A LAI em pequenas prefeituras
A auditoria do TCU também revelou que a esfera pública com menor índice de transparência é a municipal, isto é, em relação a divulgação de dados, contas e gastos públicos a esfera federal, distrital e estadual é mais concisa, clara e completa. Logo, é evidente que o maior déficit na transparência pública brasileira acontece nas pequenas prefeituras.
A mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea na linha de Comunicação política pela Universidade Federal da Bahia, graduada em Jornalismo pela mesma instituição, e doutoranda na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Maria Dominguez, discute essa carência em âmbito municipal.
“Eu vejo dois cenários, pois não há muita uniformidade entre os níveis de transparência nos municípios brasileiros. Enquanto você tem municípios, principalmente os grandes, como São Paulo, que tem equipes trabalhando na produção de transparência dentro das prefeituras e possui uma sociedade civil muito engajada que entra nos portais e avaliam os dados sobre os gastos, compras e orçamento público. Também existem municípios que ainda nem regulamentaram a Lei de Acesso à informação (LAI), e mesmo os municípios que adotaram essa legislação ainda trabalham com mecanismos precários de transparência, portais pouco alimentados e atualizados e até mesmo dados incompletos. O Governo Federal regulamentou a LAI em 2011 e os estados logo em seguida, mas a lei ainda não chegou nos mais de 5 mil municípios brasileiros”.
O papel do cidadão na fiscalização dos gastos, licitações e destino do dinheiro público é sempre importante. Seja uma organização civil, um jornalista ou um cidadão comum tem direito de acessar qualquer informação de caráter público, pesquisar e questionar qualquer irregularidade nos gastos. A pesquisadora Maria Dominguez enfatiza a importância da LAI na transparência pública brasileira:
“A Lei de Acesso à Informação, que é a principal lei que regulamenta de forma mais precisa o acesso a informações, determina, por exemplo, prazos que uma prefeitura tem para disponibilizar dados, também abre meios para que o cidadão possa pedir dados que não estejam disponíveis, se a resposta não vier como o cidadão pediu ele pode recorrer, apresentar um recurso. Quando um município regulamenta a LAI ele é obrigado a divulgar dados importantes, como receitas e despesas, que estejam transmitidas de forma proativa, é papel da prefeitura divulgar um dado, mesmo que não seja solicitado por nenhum cidadão”.
A incultura do acesso aos portais na população
A sociedade civil, em sua maioria, não tem conhecimento e, consequentemente, não acessa os portais de transparência do seu município. Com dados de difícil compreensão, portais confusos e informações desatualizadas a transparência se torna uma exceção nas pequenas cidades brasileiras. Dificilmente um cidadão acessa, espontaneamente, o portal de transparência para saber onde o dinheiro público está sendo investido, quais obras estão em andamento, quais licitações e compras a prefeitura realizou.
A doutora Maria Paula Almada acredita que esse “desinteresse” da população acontece devido a uma cultura de negação à política, mas também aponta agentes importantes para o fomento do acesso à esses dados.
“Existe um desinteresse geral dos cidadãos devido a política, são as afirmações de ‘não gosto de política, não me envolvo e não quero saber de política’. No entanto, a gente tem visto ao longo dos anos, sobretudo o papel imprescindível da imprensa, os jornalistas, as universidades, os pesquisadores e as próprias organizações da sociedade civil sendo intermediários, colhendo essas informações via LAI e transmitindo esses dados de forma interessante. Então, é difícil o cidadão ir e acessar esses portais, comparar se as despesas bateu com a arrecadação, por exemplo, e é aí que essas entidades externas fazem uma intermediação para tornar compreensível aos cidadãos. As organizações de dados abertos, o jornalismo aberto, por exemplo, são importantes para contribuir nesse acesso à informação, justificando e aumentando o interesse do cidadão”.
A falta de procura por essas informações é evidente nas comunidades, os cidadãos deixam a fiscalização e atenção aos gastos com as entidades responsáveis, que, evidentemente, também fazem parte da máquina pública e administrativa. Os estudantes Maurício Moraes e Gustavo Cardoso, moradores de Goiânia, relatam não confiar nas prefeituras de pequenos municípios, ambos vieram do interior de Goiás e nunca acessaram os portais de transparência do município.
Muitos dos acessos a esses portais de transparência são dos próprios servidores públicos, que buscam esses portais para acessar dados de interesse pessoal ou profissional. A prefeitura de Inhumas, município a 43 km de Goiânia, com aproximadamente 53 mil habitantes, afirmou que os próprios servidores públicos são quem utilizam o portal. A prefeitura não possui um controle de quantos cidadãos entram diariamente ou semanalmente no portal de transparência.
O site é público, mas é utilizado, majoritariamente, pelos funcionários da prefeitura que buscam dados que precisam ser utilizados no cotidiano profissional. Jean Marcos, ex-servidor público e morador da cidade de Itaberaí, interior de Goiás, acessava o portal apenas para pegar o seu contracheque mensal, nunca o utilizou para buscar informações sobre as despesas e arrecadações da prefeitura. A prefeitura de Itaberaí também informou que não possui dados referentes ao quantitativo dos acessos mensais ou anuais ao Portal da Transparência.
A mestre Maria Dominguez, não acredita em um desinteresse dos cidadãos. Para ela, a falta de acessos ocorre devido a complexidade das informações presentes nos portais.
“Eu não acho que exista um desinteresse , porque muitas vezes são dados muito complexos, bases de dados muito grandes que exigem softwares para leitura. O primeiro passo são os atores-chaves desses municípios, como os jornalistas, usarem esses dados e traduzi-los para uma comunidade mais ampla. Grande parte da sociedade não tem capacidade técnica de acessar e traduzir esses dados, então cabe aos jornalistas, por exemplo, colherem esses dados e fazerem reportagens ou notícias que traduzam essas informações . Por outro lado as prefeituras também podem trabalhar nos seus portais para tornar esses dados mais acessíveis e de mais fácil compreensão, para um cidadão que não tem essa habilidade técnica até mesmo um tutorial o ajudaria no acesso à informação”.
A corrupção em contraposição a transparência
A legislação brasileira e o trabalho das administrações públicas referentes a transparência e divulgação de dados buscam, principalmente, o controle interno daquele órgão e o combate e prevenção à corrupção. No entanto, a realidade mostra que em pequenas prefeituras casos de corrupção são constantes, seja por desvios de verba pública, licitações indevidas e até mesmo tráfico de influência. Na prática fica o questionamento: já que se existe a transparência e a divulgação de informações sobre arrecadação e as despesas, a corrupção e o desvio de verbas públicas se tornaria impossível com todos os órgãos públicos atuando. A mestre Maria Dominguez explica a contradição em existir corrupção na aplicação da transparência:
“A gente costuma dizer que a transparência é um bom remédio para prevenir a corrupção, mas nada garante que ela não vai acontecer. Mesmo em governos e municípios que apresentam altos graus de transparência, a corrupção ainda pode acontecer. A transparência é uma das formas mais eficientes de prevenir os desvios e fraudes, justamente porque uma vez que estão transparentes, dados como compras e obras públicas, fica mais fácil monitorar, fiscalizar e identificar possíveis irregularidades. É importante que não só os dados estejam disponíveis mas que exista controle sobre eles, dentro das prefeituras existem os controles internos, como a controladoria interna do município, responsável por fiscalizar contratos, avaliar as contas e emitir recomendações para a prefeitura. O Ministério Público e os Tribunais de Conta são órgãos que fazem esse controle, fiscalizam as obras e identificam irregularidades. Existe também o controle social, que é o controle externo, como ONGs, ativistas e jornalistas que pedem esses dados e podem identificar essas irregularidades”.
Pricila, estudante e moradora da cidade de Britânia, interior de Goiás, declara desconfiar da forma que o dinheiro público é usado: “Eu não confio completamente, eu sei que o dinheiro público é usado como manobra até mesmo para comprar votos em uma câmara dos vereadores. Eu vejo que em alguns pontos o dinheiro público tem sido bem empregado, mas ,como toda gestão, uma parcela desse dinheiro é jogado no ralo”.
Enquanto isso, o morador de Itaberaí, Jean Marcos, afirma que pequenas cidades ainda são coronelistas, logo os desvios de verba pública nessas prefeituras são mais fáceis: “Eu tenho ainda as minhas dúvidas sobre os gastos públicos, pois Itaberaí ainda é uma cidade muito coronelista, em que famílias se apossam dos cargos públicos e tendem a desviar verbas. Eu acredito que o site tenha o intuito de ser transparente para a população, mas acredito que nem tudo ali é registrado da forma como é gasto o dinheiro público”. A prefeitura de Itaberaí, por meio da secretaria de comunicação, afirma que a prestação de contas ocorre em tempo real, uma vez que o sistema gerencial informa/alimenta o Portal da Transparência no ato da publicação.
Para a doutora Maria Paula Almada a corrupção ainda é presente nas prefeituras devido a incompetência de algumas entidades públicas, já que a transparência, se fiscalizada, é um meio fundamental para combater e prevenir a corrupção:
“Nós falamos que no Brasil tem leis que pegam e tem leis que não pegam, e isso é um absurdo. Os decretos e a legislação que regulamenta a LAI devem ser fiscalizados. O cumprimento ou não da LAI em um município deve ser fiscalizado pelo Tribunal de Contas daquele município, e as prefeituras quanto mais micro, mais negligenciam a vigilância. Existem Tribunais de Contas que punem as prefeituras por não cumprirem a LAI, mas também tem Tribunais que são omissos. A administração pública ainda não se organizou para conseguir promover a LAI de maneira efetiva e eficaz. Então existe uma disparidade entre as prefeituras, umas que os Tribunais de Contas e o Ministério Público funcionam e outras que não”.
Pesquisadores afirmam que o papel da promoção da transparência, atualmente, é, predominantemente, de atores externos aos serviços públicos. A mestre Maria Dominguez acredita que a interferência dessas entidades são fundamentais na transmissão dessas informações para a população em geral:
“Atores chaves como movimentos sociais e ONGs, por exemplo, podem usar esses dados e transformá-los em produtos mais digeríveis para a população de um pequeno município. Um jornalista pode, por exemplo, pesquisar e buscar possíveis irregularidades em uma obra pública, visitá-la e passar para a sociedade civil as informações sobre aquelas irregularidades. Uma ONG pode também criar um mapa interativo das obras públicas em andamento ou as que estão paradas, tornando assim esses dados mais acessíveis. Eu não tenho a idealização de que todos os cidadãos precisam e vão acessar os portais de transparência, acredito que essa “tradução” já traga um ganho considerável na transparência pública”.
“Por exemplo, o recente caso do orçamento secreto foi 100% identificado e eclodido pelo jornalismo, pelo Estadão. Através de um pedido de informação pela LAI, o jornalista Abílio Pires foi capaz de identificar um mega esquema de desvio de finalidade do orçamento público federal. A transparência é o primeiro passo para evitar a corrupção, justamente porque inibe que novos casos aconteçam, mas a transparência sozinha não é garantia, precisa-se de controles internos e externos e fiscalização social”.
A busca pela transparência, por informações sobre as despesas e os gastos públicos ainda é insignificante na sociedade brasileira. As pequenas prefeituras não divulgam e nem incentivam o acesso a esses portais, as redes sociais são preenchidas de eventos, construções e benfeitorias da gestão, mas os verdadeiros gastos com o dinheiro público ficam em sigilo. A doutora Maria Almada responsabiliza esse déficit na transparência de pequenos municípios a uma cultura nova e falha.
“A cultura da transparência é relativamente nova, então em prefeituras pequenas existem os servidores conhecidos como ‘faz tudo’ que cuidam até mesmo dos portais de transparência. A administração pública de um município tem, muitas vezes, estruturas já montadas e estabilizadas, em que nunca foi pensado em uma pessoa específica e competente que cuide dos portais. A própria organização da administração pública não está preparada, pois nunca houve esse fomento da cultura de transparência, em que os portais cumpram todos os requisitos que a LAI exige. Essa carência na cultura da transparência e a cultura patrimonialista na sociedade, nos servidores e na administração possibilitou que muita gente, justamente após os quatro anos do último governo, que acredita que se você quer transparência você tem que dizer o porquê, ou seja para muitas pessoas o sigilo deve ser regra e a transparência a exceção”.
A carência de promoção da transparência nas pequenas prefeituras é justificada, em vários momentos, pela falta de recursos que a prefeitura possui. No entanto, a pesquisadora Maria Dominguez enfatiza que a falta de recursos não é desculpa para a falta de informações a sociedade:
“Recursos são importantes mas não são garantias de que a transparência vai acontecer, por exemplo as capitais que têm o PIB menor são algumas vezes mais transparentes que capitais com o PIB maior. Quanto mais dinheiro, mais transparência não é uma correlação 100% comprovada, é preciso ter uma equipe e órgãos de controle interno, além de órgãos que cobrem. Não tenho dúvidas que quanto mais se cobre das prefeituras mais transparência é promovida”.
O futuro da transparência pública
Em entrevista para a Folha de São Paulo, o atual ministro da Controladoria Geral da União (CGU), Vinicius Marques de Carvalho, afirmou que a promoção da LAI, a transparência e o combate à corrupção são temas presentes na agenda do novo governo Lula. O ministro enfatizou a importância da LAI para o sistema público brasileiro: “A lei tem uma grande qualidade. Para tornar a transparência de fato um valor para a sociedade, ela pulverizou sua aplicação em todos os ministérios, em todos os Poderes, em todos os entes da federação”. Vinicius de Carvalho também criticou os mecanismos de transparência no governo Bolsonaro: “Eu acho que havia um pressuposto de que o governo devesse ser menos transparente do que vinha sendo, ou do que se preconiza na Lei de Acesso à Informação”.
A doutora Maria Paula Almada traça caminhos fundamentais para o fomento da transparência em pequenas prefeituras, tal como se vê otimista diante da nova gestão no governo federal:
“Um dos aspectos fundamentais é determinar a LAI de uma forma igual para todas as administrações, isto é, uniformizar os requisitos que todos os portais devem atender, o designer e as ferramentas, por exemplo, para que a LAI seja acessível e única. Os órgãos de controle, que fiscalizam a execução dessa transparência, precisam atuar de forma eficiente e cobrar essas informações. Eu acredito que o novo governo Lula, por ser um governo que tende a valorizar a democracia e os seus pilares, a participação dos cidadãos, a igualdade e equidade e a transparência como um pilar da democracia, tende a promover a prestação de contas, o que nos torna mais otimistas. Precisamos ser vigilantes e cumprir nosso papel de fiscalizar e buscar informações”.