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Representatividade. Conforme o dicionário da língua portuguesa, a definição da palavra corresponde à expressão dos interesses de um grupo na figura de um representante. O termo tem sido discutido constantemente nos últimos anos, pois é a partir dele que muitos grupos buscam se sentirem pertencentes à sociedade. Esta discussão nos leva a outro conceito, o de democracia, que conversa diretamente com a ideia de reconhecimento e um lugar pertencente a todos.
Quando pensamos na representatividade negra, mais especificamente, em relação ao papel ocupado pelas mulheres no audiovisual mundial, estamos diante de uma grande lacuna, profunda em disparidades e estereótipos. Em Hollywood, berço de grandes produções cinematográficas, as diferenças entre gênero e raça são perceptíveis. O estudo “Inclusão ou Invisibilidade”, realizado por pesquisadores da Escola Annenberg de Jornalismo e Comunicação, da Universidade do Sul da Califórnia (USC), evidencia a predominância do homem branco no cinema e comprova que as minorias raciais e as mulheres estão presas às amarras da exclusão.
Nesse caso, os números não mentem. O relatório foi baseado na análise de 414 produções audiovisuais (109 filmes e 305 séries de TV) entre o período de 2014 a 2015. Segundo a pesquisa, 28,3% dos personagens com diálogo não eram brancos e somente 12,2% eram negros. Apesar dos oito anos que separam o estudo da atualidade, os dados ainda são pertinentes com o que acompanhamos diariamente nas produções audiovisuais norte-americanas.
Outra forte evidência da falta de representação negra e feminina no cinema é o Oscar. Em 95 anos de premiação, apenas uma mulher negra venceu o título de ‘Melhor Atriz’. No geral, foram mais de 3100 estatuetas entregues, sendo apenas 18 dessas, destinadas a mulheres negras. A primeira a ser premiada foi Hattie McDaniel, em 1940, pela sua atuação em E O Vento Levou. Entretanto, ela não foi convidada a se sentar na mesma mesa que os seus colegas brancos durante a cerimônia, graças ao racismo estrutural que ainda é semeado nas raízes da organização.
“A única coisa que diferencia as mulheres negras de qualquer outra é a oportunidade”, destacou Viola Davis no seu discurso ao receber um Emmy, em 2015. As suas palavras acenderam a discussão acerca do tema e consolidou a atriz como uma forte representante na luta pelo movimento feminista negro. Em 2023, novamente Davis entrou para a história e alcançou o cobiçado status “EGOT” ao ganhar os quatro principais prêmios norte-americanos – Emmy, Grammy, Oscar e Tony.
A representação em A Pequena Sereia
Um dos contos de fadas mais clássicos da Disney, A Pequena Sereia, estreia dia 25 de maio de 2023 no cinema como live action. A notícia de quem interpretaria a princesa Ariel, representada na animação como uma jovem branca e de longos cabelos ruivos, seria a atriz negra Halle Bailey, gerou uma grande repercussão negativa nas redes sociais. O trailer oficial do filme chegou a atingir a marca de milhões de dislikes. A principal reivindicação de quem teceu duras críticas às cenas prévias era em relação à cor da pele da protagonista. Afinal, sereias negras não existem, certo?
Partindo desse pressuposto, sereias são seres fictícios, que não apresentam nenhum compromisso com a realidade. O que destaca outro ponto de debate indispensável, será que a preocupação se dá apenas pela veracidade? Não. A questão era e ainda é a cor. É ter pela primeira vez esse espaço ocupado por uma mulher negra, que não fica atrás em nenhum dos atributos de uma princesa da Disney. Ariel continua bela, graciosa, com uma voz encantadora e cabelos avermelhados.
A mobilização pela existência de protagonistas negras em grandes produções audiovisuais ainda é uma luta recente. Diante da demanda, os estúdios começaram sutilmente a inserir personagens não brancos em papéis de destaque. A exemplo da Walt Disney Studios, que dentre as suas 12 princesas oficiais, tem apenas uma negra. O filme A Princesa e o Sapo, lançado em 2009, nos apresentou a Tiana. Porém, durante a exibição do filme, ela aparece mais em forma de sapo do que como uma princesa.
Ao longo dos anos, a empresa teve os seus acertos, como em Moana (2017) e Encanto (2021). Ainda sim, um de seus maiores feitos está em A Pequena Sereia, por se tratar de um processo de ressignificação de um dos seus maiores clássicos, tendo como rosto principal da campanha uma atriz negra.
Os desenhos infantis fazem parte do desenvolvimento de qualquer criança. Eles são pura fonte de imaginação e proporcionam a descoberta da representatividade. Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto Neurosaber, identifica que os contos e desenhos ajudam as crianças a construir valores diante da sociedade. Desse modo, é de extrema importância que estejam em contato com produções que despertem a identificação e os auxiliem a compreender os variados aspectos da vida.
No entanto, meninas negras crescem consumindo histórias protagonizadas por pessoas brancas. Não há espaço para o diferente. A representação é rasa e ineficaz. Na verdade, não há inclusão, apenas o reforço excessivo de um discurso unilateral, em que mulheres negras são plano de fundo de narrativas esbranquiçadas com um “felizes para sempre”.
Em A Pequena Sereia, a indignação do público não vem de mudanças extremas no roteiro, o qual segue fiel ao original de 1989. A revolta parte do princípio de que o papel de destaque foi dado a uma mulher negra. A estranheza se dá pela falta de representação, que por muitos anos, foi caracterizada pela normalidade de enxergar que pessoas com o tom de pele de Halle Bailey, só poderiam interpretar personagens secundários e submissos.
“Se [apenas] pessoas brancas continuarem a falar sobre pessoas negras, não vamos mudar a estrutura de opressão que já confere esses privilégios aos brancos. Nós, negras e negros, seguiremos apartados dos espaços de poder”
Djamila Ribeiro
Por conta disso, meninas negras crescem sem achar que essas histórias mágicas também as pertencem. Sem poder visualizar na tela do cinema ou da TV de casa, um tom de pele, traços ou cabelos iguais aos seus. Sem poder sonhar com a idealização de um príncipe encantado, por mais que não precisem ser salvas. É isso que Chimamanda Ngozi Adichie aborda em O perigo de uma história única. Para a autora, não é possível falar sobre a história única sem falar sobre as relações de poder.
São as relações que fomentam a segregação racial e dão voz as estruturas arcaicas de uma sociedade moldada a partir de princípios europeus. A imposição do ideal branco calou por gerações os desejos e sonhos de milhares de meninas, mulheres e senhoras. Para as atrizes negras, sobraram os papéis de servidão, um retrato da pobreza e da promiscuidade. Não é uma questão de talento, é sobre oportunidade para mostrar ao mundo que há muito mais do que os estereótipos anunciam.
“A história sozinha cria estereótipos, e o problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história”
Chimamanda Ngozi Adichie
A Pequena Sereia ser uma protagonista negra pode não significar para uns, o mesmo poder de identificação e importante passo para a formação étnica e cultural, como para as meninas negras. Para elas, Halle Bailey significa a possibilidade de enxergar no outro o que por muito tempo foi visto como um lugar inalcançável. Há um lugar para além do preconceito, dos obstáculos e da solidão. Há beleza na negritude, pureza e compaixão.
“Quando vi os vídeos com as reações das crianças, eu chorei. Eu fiquei muito emocionada porque eu me lembrei da garotinha que eu era e se eu visse uma sereia negra quando eu era jovem, isso teria mudado toda a minha perspectiva de vida”
Halle Bailey para o “Fantástico”
A cada passo em direção à inclusão de mulheres negras na indústria cinematográfica, ainda há milhares de outros a serem percorridos. Não estamos tão longe como há 34 anos, quando o mundo foi apresentado a Ariel, mas ainda temos milhares de anos para tentar reverter os efeitos de um processo de escravidão longo e cruel. O que faz com que a cada dia o movimento negro, aliado ao feminista, tenha que lutar dez vezes mais para que uma pessoa negra tenha a mesma oportunidade que uma branca teria sem precisar sacrificar a sua carreira e seus sonhos.
A mudança que esperamos começa dentro dos estúdios, na contratação de pessoas racializadas para roteirizar grandes obras, para produzir e dirigir as histórias que nunca tiveram a chance de contar. Ao público, não é aceitável parar de reivindicar, protestar e lutar por um espaço que não pode e nem deve ser negado. Para fugir do tokenismo, precisamos ir além das representações superficiais. Não basta apenas ter uma personagem negra no elenco, se ela não for aprofundada e desenvolvida por pessoas que saibam respeitar e conduzir a sua trajetória. A inclusão simbólica não basta.
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