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O sétimo mês do ano é marcado pela visibilidade da negritude feminina. Em sua 11° edição, o Julho das Pretas é uma iniciativa do Adora – Instituto da Mulher Negra, e visa fortalecer o debate acerca de temas relacionados às desigualdades de gênero e raça. Desse modo, Olhos d’água nos convida a romper as barreiras embranquecidas da sociedade e sentir na pele a vivência de um povo historicamente marginalizado.
Conceição Evaristo é um dos grandes nomes da literatura nacional. Romancista, poeta e contista, a autora estreou na literatura em 1990. Desde então, adota o estilo de escrita que autodenominou como “escrevivências”, em que utiliza de sua experiência com as diásporas, promovidas pela miséria e pelo racismo, como artifício artístico para dar vida a personagens que não só parecem, como são, reflexos de um sistema real e impiedoso.
Publicado em 2014, Olhos d’água garantiu à escritora o terceiro lugar no Prêmio Jabuti em 2015, a premiação literária mais tradicional do país. A coletânea de contos é uma obra visceral. Embora seja composto por histórias curtas e fluídas, o livro não escapa da densidade de uma leitura dilaceradora. A cada capítulo, Evaristo nos apresenta a recortes de um Brasil banhado pela segregação racial. São mulheres, mães, filhos e filhas, vítimas de uma realidade que se repete diante as mazelas sociais.
A leitura, de apenas 116 páginas, reconta com sensibilidade as lembranças da autora, por meio de uma prosa capaz de transportar o leitor aos mesmos becos e anseios ali descritos. Ana Davenga, Duzu, Querença, Natalina, Maria, Zaíta e Kímba, representam tantos outros nomes de pessoas que enxergam o mundo com os olhos dos esquecidos. O livro não só narra acontecimentos cotidianos, mas potencializa o discurso daqueles que vivem em condições precárias de trabalho, moradia e saúde.
No primeiro conto, somos fisgados pelo questionamento de uma filha que não se recordava da cor dos olhos da mãe. Atordoada, a mulher busca por respostas, enquanto é inundada por vestígios de uma infância áspera. Quando finalmente descobre o que tanto a afligia, sentimos juntos o peso de sua compreensão.
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tiha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície.”
Olhos D’água, Conceição Evaristo.
Entre pensamentos e diálogos, Evaristo escreve com maestria e profundidade. É um soco no estômago de cada um de nós em todo encerramento de ciclo. Nos compadecemos com a esposa que aguarda o seu companheiro, ao mesmo tempo, em que nos desesperamos com a tragédia iminente no decorrer dos parágrafos. Tiros e tiros. O encontro de velhos amantes no ônibus, uma mulher, seus filhos, a fome, a dor, a injustiça. Só resta sangue e mais sangue. Duas irmãs, um desencontro, uma bala perdida. Um menino, as ruas, a solidão e a imagem de Jesus Cristo. E não resta mais nada.
Não há como sair ileso desta narrativa. Ela te prende, sufoca, até que não haja escapatória. Até que você esteja imerso em conflitos que não são seus, mas passam a ser. Olhos d’água é um convite à empatia, a sentir na pele as dores dos que se foram, dos que continuam aqui e daqueles que virão. Apesar do percurso angustiante, o livro encerra, e acalenta as fissuras abertas.
Ficamos plenos de esperança, mas não cegos diante de todas as nossas dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias questões a enfrentar. A maior era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no valor da vida… Mas sempre inventamos a nossa sobrevivência.”
Olhos D’água, Conceição Evaristo.