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Após aprovação na Câmara dos Deputados, no mês de maio, o texto que limita as demarcações das terras indígenas avança e chega ao Senado. A Comissão da Casa analisará o projeto do Marco Temporal na próxima semana. Contudo, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, sinalizou, nessa quinta-feira (10), aos líderes partidários que a votação em plenário apenas ocorrerá após o Supremo Tribunal Federal (STF) concluir o julgamento que trata do tema.
Soraya Thronicke (Podemos-MS), relatora do projeto na CRA apresentou o seu parecer sobre o projeto na Comissão de Agricultura do Senado. A senadora mantém a versão do texto aprovada pela Câmara dos Deputados, em maio, contrariando a expectativa de Randolfe Rodrigues (Sem partido-AP), líder do governo.
“O marco temporal tem base constitucional e acredito que sua aprovação vai trazer segurança jurídica a todos. O assunto é muito importante e precisa ser votado para que se resolva de uma vez por todas […] O substitutivo aprovado na Câmara está coerente, preserva as condicionantes, a segurança jurídica e, na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, o projeto deve ser analisado pelo seu mérito”, afirmou Soraya (nota: O Globo)
Randolfe, por sua vez, afirmou que não haveria acordo para aprovação do texto no Senado caso fosse mantido o entendimento da Câmara. Já o presidente da comissão, Allan Rick (União-AC) afirmou que o texto de Soraya está equilibrado e confirmou a votação na proposta na próxima semana.
O texto ainda pode ser modificado. O projeto ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo Plenário do Senado. Além disso, antes do projeto voltar a Corte, os ministros precisam definir se André Mendonça, que pediu vista em junho, poderá participar da análise, tendo em vista que este assinou uma manifestação no processo. O Supremo terá até 12 de agosto para tomar a decisão.
Marco Temporal: O que é?
O Marco Temporal, tese jurídica que defende a alteração da política de demarcação das terras indígenas segundo a qual esses povos teriam direito a ocupar apenas as terras que habitavam antes da promulgação da Constituição de 1988, surgiu ainda em 2009, quando a Advocacia-Geral da União utilizou o critério para demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima.
A tese, contudo, vem sendo explorada por agricultores e ruralistas na tentativa de impedir que novas demarcações sejam realizadas. O critério foi usado pelo governo de Santa Catarina para questionar a ocupação das terras pelos Xokleng, povo indígena tradicional da região.
O caso Xokleng foi responsável por levar o debate acerca do Marco Temporal a nível nacional e colocar em pauta a luta pelos direitos dos povos indígenas. Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o caso servirá de modelo para futuras ações desse tipo.
O Marco Temporal está em discussão há aproximadamente 16 anos. O projeto, contudo, somente chegou ao Senado em junho, após ter texto aprovado, em maio, pela Câmara dos Deputados. Na ocasião, foi aprovado pelos deputados em 283 votos a 155.
A Tese baseada no Artigo 231 da Constituição: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, prevê o entendimento de que o texto faz referência às terras já ocupadas na época. Os deputados favoráveis argumentam ainda que o Marco Temporal é uma medida em prol de garantir a segurança jurídica dos proprietários de terra no país.
Por outro lado, defensores da causa indígena utilizam-se do paragrafo 1º, também do Artigo 231, como argumento contrário. O trecho diz: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Os povos indígenas se mobilizaram contra o Marco Temporal e fizeram protestos, em Brasília, em prol dos seus direitos.
“Para nós essa é uma doença muito grave. A visão do povo Yanomami é que esse projeto vai acabar com a vida dos povos indígenas, vai acabar com a floresta, os animais e a biodiversidade como um todo. É nossa terra, terra é uma vida, terra dos Yanomami, terra dos povos indígenas. Sem-terra não tem cultura, não tem segurança, sem-terra não temos saberes, conhecimento e ancestralidade. Por isso é importante e sempre defendemos nossa mãe terra”, afirma Dário Kopenawa, liderança do povo Yanomami (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar).
Além disso, Daiara Tukano, artista visual e mestre em Direitos Humanos, considera que o Marco Temporal representaria “institucionalização do genocídio indígena no Brasil”.
“Levando em consideração todo o processo colonial de invasão do Brasil, em que vários povos foram retirados de seus territórios originários, em vários momentos históricos, inclusive durante o Brasil democrático e principalmente durante a ditadura militar, é um absurdo exigir que tantos povos estivessem nas suas terras originárias sendo que eles foram expulsos à bala, perseguidos de todas as maneiras possíveis”, afirmou Tukano (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar).
Histórico de violência contra os Povos Indígenas
A violência contra os povos indígenas no Brasil tem um recorte histórico que volta ao período de colonização. Em vários momentos, os povos indígenas foram vítimas de diferentes tipos de violência, seja ela abuso de poder, ameaças de morte, tentativas de assassinato e assassinatos ou racismo e discriminação étnico-culturais.
A violência contra esses povos perpetuou ao longo da história, como demonstra os relatórios de publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), sobre a “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil”.
O Relatório do ano de 2021 releva o aumento constante, pelo sexto ano seguido, da violência e ofensiva contra os povos indígenas, em especial no que diz respeito às invasões de suas terras. O ano foi marcado, portanto, pelo aprofundamento da violência e violações, ataque e acirramento de conflitos nas terras indígenas.
Em 2021, foram registrados 305 casos que se enquadram em “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, quase três vezes mais do que o registrado em 2018, em que foi registrado 109 casos.
O aumento foi significativo e a associação com o Marco Temporal é inevitável, em geral, as invasões são motivadas principalmente para disponibilizar as terras para exploração pelo agronegócio. As entidades do agronegócio defendem os interesses econômicos das multinacionais e impedem a criação de novas terras indígenas com base na tese jurídica, como é o caso do que acontece no Oeste do Pará, com o chamado lobby da soja. Os produtores de soja tentam impedir a criação da terra indígena Planalto Santareno.
“Os povos indígenas são, historicamente, vítimas do Estado brasileiro porque, através das instituições que representam e exercem os poderes político, administrativo, jurídico e legislativo, ele atua, quase sempre, tendo como referência interesses marcadamente econômicos, e não os direitos individuais, coletivos, culturais, sociais e ambientais. A gestão pública é parcial, pois toma como lógica a propriedade privada, contrapondo-se à vida, ao bem-estar e à dignidade humana”, avalia Dom Roque Paloschi, presidente do CIMI (nota: Conselho Indígena Missionário).
Impactos do Marco Temporal para os Povos Indígenas
A aprovação do Marco Temporal pode trazer inúmeras consequências. O impacto direto na vida dos povos indígenas diz respeito a dificuldade para demarcação de novas terras, caso o projeto venha ser aprovado, tendo em vista que a tese ignora o histórico de violência e opressão desses povos no Brasil.
O Marco Temporal pode vir a fomentar novos conflitos, inclusive em áreas já pacificadas. As terras indígenas poderão ser invadidas e, com o amparo da Justiça, ações poderão ser solicitadas com o intuito de expulsar os povos indígenas de “suas terras”, representando, inevitavelmente, um aumento significativo da violência e ameaça a sobrevivência de muitas comunidades.
“[O Marco Temporal representa] um grande risco para retomada da ideia integracionista. É um verdadeiro retrocesso de toda a conquista e garantia do reconhecimento dos direitos, territórios e identidades dos povos indígenas. Não podemos naturalizar como não inconstitucional, pois fere todos os preceitos legais constitucionais. Não há como se pensar o ano de 1988 como marco legal para tal, pois, já que se levanta esse conceito, que recorrêssemos ao dia 30 de julho de 1611, sobre a Carta Régia, e o primeiro Alvará, de 1680, que reconhecem o direito à terra para os povos indígenas […] O maior impacto seria o desmatamento inestimável e o aumento significativo da violência nas terras indígenas, tanto nas demarcadas e pior ainda nas terras não demarcadas. ”, afirmou Hariama Ijetuura Karaja da comunidade de HAWALO (Santa Isabel do Morro – TO)
Hariama aborda, ainda, a importância do processo de demarcação das Terras Indígenas:
“[Considero importante] O reconhecimento da identidade de um povo e o fortalecimento das tradições. Um povo sem seu território e em constante processo de violência, é um povo em processo de genocídio e desaparecimento. As demarcações também são importantes para garantir a implementação de políticas públicas importantes como saúde, educação e infraestruturas”.
Além do impacto para os povos indígenas, o Marco Temporal tem consequência direta no que diz respeito ao meio ambiente. Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) estima o desmatamento de 23 milhões a 55 milhões de hectares. A pesquisa calcula o desmatamento de terras homologadas indígenas após o ano de 1988 estarão sujeitas. O desmatamento, por sua vez, pode significar a emissão de aproximadamente 7,6 bilhões a 18,7 bilhões de toneladas de gás carbônico.
O impacto ambiental é notoriamente grave e especialistas afirmas que os danos podem ser irreversíveis: “O desmatamento progressivo e sem controle nestes territórios pode provocar um desequilíbrio no clima, aproximando a região do tão falado ponto de não retorno, gerando escassez de água, ameaçando a produtividade da agropecuária e geração de energia”, IPAM em nota técnica.
Apesar das consequências negativas do Marco Temporal, os defensores afirmam que a tese é necessária para que se possa garantir a segurança jurídica nacional em relação a demarcação das terras indígenas, de modo que os grandes produtores rurais (agronegócio) não as perca. Hamilton Mourão (Republicanos-RS) afirma que, sem a aprovação do Marco Temporal, “tudo vira terra indígena“.