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Aviso: Esta resenha contém spoilers sobre o filme.
A menos de uma semana para a cerimônia de premiação do Oscar, Ainda Estou Aqui (2024) representa o Brasil nas categorias de Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz, com Fernanda Torres, e Melhor Filme, premiação máxima da Academia, sendo a primeira vez que um filme brasileiro concorre a essa estatueta.
Dirigido por Walter Salles, Ainda Estou Aqui conta a história da família Paiva: Eunice, Rubens, e seus 5 filhos, Marcelo, Vera, Ana Lúcia, Eliana e Maria Beatriz. Marcado por sutilezas, o filme começa mostrando o cotidiano da família, com a casa sempre de portas abertas, repleto de arte e conforto.
Esse cotidiano é brutalmente interrompido quando Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello no longa, é levado por homens do regime. A partir desse momento, a família passa por momentos de tensão, brilhantemente transmitidas ao público através, principalmente, da fotografia, que se torna mais escura. Rubens Beyrodt Paiva, foi um deputado federal pelo PTB entre 1963 e 1964, cassado durante a ditadura, exilado e, após retornar ao Brasil, preso e morto, em janeiro de 1971.
A ausência de respostas é o fio condutor da narrativa. Abordada nas palavras de Eunice como uma das “táticas mais cruéis da ditadura”, o sequestro foi uma tática muito utilizada durante o regime, deixando famílias, até os dias de hoje, sem notícias sobre as vítimas. Em Ainda Estou Aqui, as consequências devastadoras dessa situação são não apenas retratadas, mas compartilhadas com o espectador, convidado a sentir parte desses sentimentos.
Quando Rubens é levado, a obra assume um tom de drama e apreensão que se adensa a cada minuto, começando com a prisão de Eunice e Eliana Paiva (mãe e filha, respectivamente) e terminando com as reparações históricas vindas com a emissão da certidão de óbito de Rubens Paiva, em 1996, e os fatos revelados na Comissão da Verdade, em 2012.
Grande destaque do filme, a atuação de Fernanda Torres é visceral e faz jus à história da protagonista. Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva (1929-2018) foi de uma dona de casa a referência na luta contra a ditadura, se tornando advogada após o desaparecimento do marido. Eunice enfrentou ainda, em sua terceira idade, a batalha contra o Alzheimer – fato retratado na obra por Fernanda Montenegro, gerando umas das cenas mais comoventes da obra, quando, em uma notícia que tratava sobre as vítimas da ditadura, vê uma foto do marido.
Ainda Estou Aqui é um filme significativo em todas as suas dimensões. Por si só, argumenta contra aqueles que desvalorizam o cinema nacional. Mas, principalmente, toca em um assunto que o Brasil falha em relembrar: os horrores da ditadura. A obra e toda a sua repercussão chegam ao país em um momento de crise política onde se têm visto manifestações de grupos de direita pedindo a volta do regime e, ainda mais grave, tem-se em curso uma investigação sobre uma tentativa de golpe que, se bem-sucedido, sem dúvidas impediria a publicação deste texto.
Além de uma demonstração da força do cinema brasileiro, sobretudo quando se há investimento, Ainda Estou Aqui é um lembrete de que não há limites para um regime autoritário: sequestros, torturas, abusos e silenciamentos são instrumentos utilizados sem o menor pudor, não apenas contra “bandidos”, como se ouve por aí, mas contra qualquer um que ousar ir contra o regime – ainda que transmitindo cartas, como no caso de Rubens.
Justamente por isso, e demonstrando ainda mais sua importância, o filme enfrenta críticas por “demonstrar apenas um lado da história”, como se, quando um homem é retirado de sua casa à força, torturado e morto, e sua família fica sem notícias, houvesse outro lado da história. É importante que se diga, por mais óbvio que seja: não há. O que se há é uma deturpação, muito bem feita, do que foi esse momento na história do Brasil. E os ataques não param por aí. Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e autor do livro que inspirou o filme, foi recentemente agredido no Bloco da Augusta, em São Paulo, que homenageava sua família.
Em tempos em que vemos a ascensão da extrema-direita e ódio promovido por ela mais uma vez ganhando força, a obra de Walter Salles nos alerta: um país que não conhece os erros de sua história está fadado a repeti-los.