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OTAVIO AUGUSTO RIBEIRO
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Pagar promessas é uma prática antiga, presente em diversas religiões e tradições espirituais. A lógica é simples: para receber uma graça, é preciso dar algo em troca. Uma espécie de escambo divino, onde fé e sacrifício se tornam moeda de troca. Até aí, tudo bem. Mas o que exatamente estamos devolvendo para Deus?

Outro dia, passei em frente à Catedral da Sagrada Família, em Goiânia, e vi uma mulher subindo as escadas de joelhos sob o sol de rachar das três da tarde. O calor por si só já era penitência suficiente para redimir qualquer pecado. Imaginei a grandeza da graça recebida para justificar tamanho sacrifício. E então veio o questionamento: o que Deus ganha com o nosso sofrimento?

Por que prometer subir 400 degraus ou caminhar até Trindade até os pés sangrarem, em vez de doar 400 marmitas ou visitar a Vila São Cottolengo, que abriga pessoas em situação de vulnerabilidade? Nossa tradição espiritual ocidental parece enraizada na dor. Parece que Deus se deleita ao ver o homem sofrer para pagar uma graça recebida. Se formos seguir essa lógica, Deus seria um tirano, um sádico divino que aprecia a autoflagelação dos homens.

Mas, ironicamente, as Escrituras contam uma história diferente. Em Gênesis, 1 e 2, Deus cria um jardim de delícias; “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom”. Ou seja, o ser humano foi feito para a felicidade. Então, por que insistimos em pagar promessas com sofrimento?

Talvez muitos ainda se apegam à imagem do Deus do Antigo Testamento, vingativo e cruel, que reinava no tempo do obscurantismo, onde o medo era ferramenta de controle. Mas vivemos na era pós-Cristo. E Jesus, com suas parábolas e ensinamentos, deixou claro que o maior mandamento é amar ao próximo como a si mesmo. Então, por que nossas dívidas com Deus não podem ser quitadas com base nesse princípio?

No evangelho de João, 15,  Cristo dá dois mandamentos essenciais: “Guardai os meus mandamentos” e “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Se o próprio Cristo enfatizou a importância do amor ao próximo e da obediência aos seus sermões, não seria essa a maior forma de agradar a Deus? Se queremos pagar promessas, por que judiar do nosso próprio corpo, obra divina, em vez de direcionar nossos sacrifícios para aqueles que mais precisam?

A cena dos peregrinos caminhando rumo a Trindade exemplifica bem essa contradição. Dezenas seguem a pé, pagando suas promessas com bolhas nos pés, enquanto dezenas de outros pedem esmola à beira da estrada sem que ninguém pare para ajudar. Parece que a fé se tornou uma performance, e o sacrifício, um espetáculo.

Essa lógica do sofrimento como pagamento divino se estende a outras religiões. No budismo, a lógica é semelhante à do cristianismo: seu fundamento principal é o amor ao outro, a compaixão e a cessação da dor humana. Só no islamismo o jejum é um culto central, mas seu propósito original é alimentar o espírito, não apenas abster-se da carne. E no cristianismo? O que Jesus ganha se eu não comer carne na quaresma? O jejum virou pretexto para colocar a dieta em dia e fingir espiritualidade, Deus não é a Maíra Cardi que quer controlar sua alimentação.

O sacrifício virou moeda de status. Hoje, não basta pagar promessa, tem que registrar. A pessoa sobe a escadaria de joelhos e, logo atrás, vem alguém filmando, porque mostrar para Deus já não é suficiente. Tem que mostrar para o Instagram. E se não for registrado, será que valeu?

Ainda pior são aqueles que pagam promessas com raiva. Caminham dezenas de quilômetros de má vontade, praguejando o trajeto inteiro, ressentidos por terem que cumprir a barganha. Qual o sentido de uma entrega externa quando, internamente, só há frustração?

Não acredito que devemos pagar as promessas com aquilo que nos beneficie. Não defendo que precisamos pagar uma graça recebida comendo o máximo de chocolate possível ou bebendo uma dose de whisky que satisfaz o corpo e nos dá prazer. Pagar é perder, pagar é ceder. Mas isso também não significa que o pagamento deva ser feito em forma de dor e autoflagelação.

Pagar promessa não é necessariamente pela própria pele e sanidade. O verdadeiro sacrifício não está em fazer o corpo sofrer, mas em abrir mão do egoísmo e olhar para o outro. Se Jesus dedicou sua vida ao próximo, por que a nossa devoção insiste em ignorá-lo?

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