‘Fui para o ativismo pela dor’: presidente da UniTransGO fala da luta pelos direitos dos transexuais e travestis

Em comemoração ao Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado no último dia 29 de janeiro, o Lab Notícias conversa com Cristiany Beatriz, figura importante da comunidade trans em Goiás.
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Cristiany Beatriz é uma mulher trans, ativista pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ e presidente da Associação Goiana de Pessoas Trans (UniTransGO), além de integrar a diretoria executiva da Rede Trans Brasil – instituição nacional que tem como missão a garantia no cumprimento da cidadania dessas pessoas junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Nascida e criada na zona rural da cidade de Firminópolis, interior de Goiás, vem para Goiânia em busca de políticas públicas de inclusão e da realização de seu maior sonho, a cirurgia de redesignação sexual. Em entrevista ao Lab Notícias, ela conta um pouco de sua trajetória e as dificuldades encontradas por essa parcela da população.

Cristiany Beatriz. Foto: Arquivo Pessoal.

LN: Cristiany, quando você entrou na militância da causa trans?

Cristiany Beatriz: A princípio, eu fui para o ativismo pela dor, né? Por ser uma pessoa trans, sempre fui muito limitada em questões de direitos humanos. Na minha época, lá em 2003, quando eu vim para Goiânia em busca de uma realização pessoal, não tinha políticas como hoje. Como a do nome social que a gente já avançou, no sentido de que as pessoas já podem fazer a retificação de registros sem judicialização, não tinha uma política de saúde igual ao processo transexualizador do SUS (Sistema Único de Saúde), que garante o acompanhamento dentro das especificidades de pessoas trans. Então, eu iniciei a minha trajetória de militância um pouco para contribuir para luta e garantia desses direitos mínimos.

LN: E como foi a passagem pela sua infância e adolescência até essa chegada na capital?

Cristiany Beatriz: Eu tive uma infância muito difícil, porque eu venho de uma família que não tinha conhecimento, pelo fato de ser do interior, da zona rural, não tinham conhecimento do que era a identidade de gênero, né? Então, eu passei por muitas situações de repressões. Quando ainda criança, comecei a demonstrar a minha identidade como uma criança transexual, porque quando você é criança, você não consegue esconder, camuflar o que você é. Eu já levei muitas broncas, muitas repressões por parte da minha família, por querer coisas como brincadeiras, roupas e até mesmo o meu jeito afeminado de ser. E isso me acompanhou durante muito tempo na minha adolescência. Para não ter maiores problemas, como agressões verbais na escola ou até mesmo agressões físicas e para agradar a minha família, eu tentei me esconder, não vivenciar a minha verdadeira identidade de gênero – que é o gênero feminino.

LN: Sobre a sua cirurgia, como foi o processo? Você teve algum tipo de acompanhamento?

Cristiany Beatriz: Eu iniciei na minha transição muito tarde, quando eu vim para a capital em busca da realização do meu grande sonho: a busca pela cirurgia de redesignação sexual. Então é somente em Goiânia, depois que fui morar sozinha, que consegui iniciar a minha transição, já com 22 anos. E infelizmente, por conta própria, na questão da hormonização. Foi daí que conheci o Hospital das Clínicas (HC), em 2003, quando eu iniciei a minha militância, a partir de uma reunião de pessoas trans em um projeto que tem no HC, chamado Projeto TX, que até hoje eu faço parte.

Eu tive que esperar até 2007, quando teve a portaria do processo transexualizador do SUS, porque como era um projeto, poucas pessoas eram atendidas no HC, mas eu estava sempre ali, insistente, resistente e acreditando que o meu dia ia chegar, como chegou. Quando eu entrei para o Projeto TX, eu fui muito feliz porque em dois anos de terapia, que é o que rege o protocolo do processo transexualizador do SUS de acompanhamento psicológico, eu consegui fazer minha cirurgia. Eu costumo dizer que 22 de agosto de 2009 foi o dia do meu renascimento, nem passa pela minha cabeça a palavra “arrependimento”.

LN: Cristiany, sendo a redesignação sexual o seu grande sonho realizado, como você descreve o sentimento após o procedimento?

Fui muito feliz com todo o processo cirúrgico tanto antes, durante e sou agora depois. Nunca tive um problema grave pós cirúrgico, eu sou feliz com minha estética, com a funcionabilidade. A minha cirurgia costumo dizer que foi perfeita! Talvez isso tenha sido graças ao meu psicológico muito preparado e eu digo que esses dois anos são importantes para isso, não para cumprir protocolo, mas para você se preparar para esse momento. Apesar de que, preparado você está desde quando você entende a necessidade de passar por esse processo. E digo que precisa ser uma questão exclusivamente pessoal, eu estava totalmente preparada.

Eu costumo dizer que foi a maior realização da minha vida. Também digo que eu poderia ter milhões em dinheiro ou qualquer outros bens, mas eu não seria feliz completamente como sou hoje, se eu não tivesse a oportunidade de fazer a cirurgia de redesignação sexual. O processo foi muito árduo no sentido da espera, porque nunca foi uma vontade, nunca foi um querer, sempre foi uma necessidade, no meu caso.

PROJETOS SOCIAIS

LN: Você me disse que faz parte do Projeto TX, processo transexualizador do HC-UFG, e muita gente não faz ideia de que existe um programa dessa importância em Goiás. Como ele funciona?

Cristiany Beatriz: A gente tenta fazer nos eventos ou onde quer que a gente vá aquele trabalho mesmo de formiguinha, como multiplicadores, informar e divulgar que tem esse serviço específico à população trans. E realmente não é de conhecimento de todas as pessoas trans, especialmente das que vivem ainda nos interiores de Goiás, né? A gente tem provocado muita gestão com a Coordenação de Saúde LGBT do estado junto da Superintendência Municipal LGBT, pensando em estratégias de divulgação desse serviço, porque é importante ter um acompanhamento multidisciplinar para essas pessoas que passam e estão passando pelo processo de transição, principalmente a hormonioterapia. A gente percebe também que hoje já existe um congestionamento, ou seja, uma grande espera na fila para o primeiro atendimento. A gente já tem a estratégia de como vai resolver isso para garantir atendimento à essas pessoas.

Hoje, para conseguir atendimento no HGG (Hospital Geral de Goiânia), é preciso que a pessoa seja de Goiânia. Quando de outro município, é preciso solicitar na unidade básica de saúde o atendimento primário, um encaminhamento de serviço especializado de transexualidade – onde tem a grade de regulação para ter acesso ao atendimento específico. A gente orienta muito as pessoas a falarem dessa grade para não cair na regulação errada que não vai ser regulado para o Projeto TX. A gente pensa em uma estratégia de conscientizar essas unidades de saúde para que eles falem e passem o encaminhamento correto, porque isso é importante.

LN: A demanda na procura desse procedimento é alta? Como está essa grade atualmente?

Cristiany Beatriz: No HC, desde 2016 a grade se encontra fechada. Infelizmente, passou por vários processos de desestruturação da equipe e em 2019, a saudosa Mariluza Terra, que foi a coordenadora do Projeto TX no Hospital das Clínicas de Goiânia, veio a falecer e isso foi um fator que piorou o andamento do projeto. A gente também percebe que não existe uma disposição da própria unidade em manter o projeto, mas a gente está resistente, tem esperança que ele seja reestruturado. Se continuar do jeito que está, a tendência é ter o fim do projeto do HC e os pacientes de lá teriam que procurar atendimento na segunda unidade, o HGG.

Hospital das Clínicas de Goiânia (HC-UFG). Foto: Arquivo da Web.

LN: Outro projeto em que você é atuante é o Oportunizar, qual a importância dele para a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho? 

Cristiany Beatriz: A partir do Censo Trans, que está disponibilizado na página da Rede Trans Brasil, a gente percebeu, em um questionário socioeconômico, que as mulheres travestis e transexuais, em sua maioria, hoje se encontram tendo como renda principal a prostituição, cerca de 79,5% das entrevistadas relataram que se encontram nesse contexto. Então, a gente viu a necessidade de um projeto, que teve atuação em 10 capitais. Em Goiânia eu fui o ponto focal do projeto, com um excelente trabalho de incidência, tanto com a gestão Municipal, Estadual, o Sistema S (Sebrae; Senac; Senai; Senar; Senat; Sesc; Sescoop; Sesi; Sest) e também o Legislativo, conseguindo cursos profissionalizantes, visto que – pelo ciclo de exclusão – essa população também não tem acesso à educação e muito menos acesso a uma capacitação profissional, o que se torna um modificador para que essas pessoas pudessem pleitear uma vaga.

ATUAÇÃO

LN: No último dia 29 de janeiro, foi comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans e a prefeitura de Goiânia realizou um evento, em parceria com a UniTrans, oferecendo diversos serviços. Quando a ONG surgiu e como é feita preparação evento como esse?

Cristiany Beatriz: A UniTrans Goiás é uma instituição nova. Ela teve sua fundação em 8 de março de 2022, porém os integrantes da diretoria são pessoas que já têm uma trajetória de militância, como no meu caso. Em parceria com Associação das Paradas LGBT de Goiás, idealizamos a Semana da Visibilidade Trans, onde realizamos vários momentos em alusão ao dia 29 de Janeiro. Entre eles, tivemos no dia 25 de janeiro, um momento de sensibilização e informação no colégio Liceu de Goiânia, junto com os alunos, professores e pais, onde a gente falou de identidade de gênero, orientação sexual, racismo e intolerância religiosa. No dia 26, a gente participou de uma comemoração no hospital HGG, onde foram homenageadas algumas pessoas trans. No dia 27, realizamos um evento na Secretaria Municipal de Direitos Humanos, que foi uma grande parceira contribuindo com toda logística para a realização e prestação de serviço à população trans, como retificação de registro, em parceria com a Defensoria Pública e emissão de RG, em parceria com Instituto de Identificação e Polícia Civil.

Também tivemos Cadastro Único, realização de testagem rápida para sífilis, HIV e hepatites virais – em parceria com Secretaria Estadual de Saúde – além da realização de cortes de cabelo e encaminhamentos para cursos do COTEC (Colégio Tecnológico de Goiás). Além disso, tivemos uma visibilidade positiva com o Hemocentro, para a campanha de doação de sangue com o tema ‘O sangue LGBT também salva vidas’. No dia 29, foi realizado um evento cultural no Setor Sul, e durante toda a programação o protagonismo foi de pessoas trans, que fizeram uma apresentação com cartazes reivindicando frases de ordem e políticas públicas.

LN: Cristiany, você me disse que falta apoio, visibilidade e credibilidade nessa causa. Então, como as pessoas podem ajudar?

Cristiany Beatriz: Acredito que a melhor ajuda é mantermos esse diálogo, reafirmarmos e consolidarmos essas parcerias. Esse é o trabalho da UniTrans Goiás, formar pontes para que a gente possa se fortalecer na busca de políticas de melhoria para essa população. Hoje a gente tem uma página no Instagram, que é @unitransgo, deixo também meus contatos (email: unitransgoias@hotmail.com) e redes sociais. Saber que a gente pode contar com vocês já é uma grande ajuda.

NOTA OFICIAL SOBRE O PROJETO TX:

“O Hospital das Clínicas da UFG, vinculado à Rede Ebserh, informa que o Programa de Transexualidade passava por dificuldades para a sua manutenção desde o falecimento da coordenadora, Profa. Mariluza Terra Silveira.
Para tentar solucionar o problema, foi realizada uma reunião, na data de 14/03/2022, entre a Superintendência do HC e a Subcoordenação de Atenção à Saúde da População LGBT – da Secretaria Estadual de Goiás, ocasião em que ficou acertada a transferência dos pacientes trans que faziam acompanhamento no HC para o serviço especializado no Hospital Dr. Alberto Rassi/HGG.
Na reunião, ficou acertado que o HC-UFG informaria à Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia quem eram os pacientes em tratamento na instituição e o órgão municipal ficaria encarregado de encaminhar estes pacientes para o HGG”.

(Unidade de Comunicação Social – Superintendência do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás)

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