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Mais um ano letivo se inicia e, para muitos pais, é apenas mais um momento normal e tranquilo. No entanto, essa situação não é vista da mesma forma pelos pais de pessoas com deficiência. Os responsáveis são obrigados a lidar com a possibilidade dos seus filhos não serem aceitos pelas instituições. Além de enfrentar a insegurança da ausência de acessibilidade, a falta de preparo dos profissionais e o preconceito.
Atualmente, no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2019), cerca de 8,4% da população do país é constituída por PCDs — o equivalente a 17,3 milhões de brasileiros. Dessa forma, espera-se que as instituições escolares tenham uma equipe de profissionais qualificados e uma estrutura adequada para receber esses indivíduos. Contudo, não é essa a realidade do país.
O Brasil possui leis que garantem os direitos das pessoas com deficiência, como é o caso da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). De acordo com Tairo Batista Esperança, Defensor Público do Estado de Goiás, “A lei garante o direito à educação, com oferta de profissionais de apoio, cursos bilíngues para surdos e atendimento preferencialmente na rede regular de ensino”.
Tairo ainda comenta que a previsão específica desses direitos é importante, pois garante a atenção do poder público às particularidades e necessidades da pessoa com deficiência, de modo a garantir a sua igualdade material para com todas as outras pessoas.
Legislação X Realidade
É evidente que a existência dessas leis não garante a inclusão, a acessibilidade e a permanência de pessoas com deficiência no ambiente escolar. Ana Beatriz Coelho, estudante de jornalismo e pessoa com deficiência visual, não percebeu as normas sendo aplicadas na prática.
“Meus pais tiveram dificuldade em me matricular no meu primeiro colégio do fundamental. Eles se recusavam a me receber por não ter recursos, e não tinha outro colégio na cidade. Então foi uma insistência bem pesada para eles conseguirem me deixar entrar”
Ana Beatriz fez o início do ensino fundamental em Brasília, mas depois mudou para o interior. A estudante conta que na capital tinha poucos problemas de acessibilidade, pois os professores detinham mais preparo e as escolas possuíam mais recursos. No entanto, a realidade virou outra quando foi para uma cidade pequena. “Foi muito difícil para que o pessoal conseguisse entender o que fazer. A escola não tinha recursos, não tinha folhas e existiam professores que se recusavam a fazer material adaptado.”
“Era muito complicada a questão de andar pelo colégio, era um lugar que não tinha muita acessibilidade. Quando eu precisava ler, eles colocavam alunos para fazerem a leitura, e isso sabotou a minha relação com os outros alunos, porque eles se sentiam com uma obrigação” Além disso, a estudante relata que ela quase não estudou nos dois últimos anos do ensino fundamental. Sob essa perspectiva, Ana Beatriz é apenas uma entre as milhares de pessoas com deficiência que enfrentam essas adversidades todos os dias.
“Nossas instituições, públicas ou privadas, ainda estão impregnadas com uma visão assistencialista, que entendem que o problema é a pessoa com deficiência, e não as barreiras que ela enfrenta”, afirma o defensor público.
Na tentativa de explicar a distância entre o que está previsto nas leis e o que é praticado pelas escolas, Tairo afirma: “Acredito que o principal motivo para essa distância está na formação histórica e cultural de nossa sociedade. Novas leis são importantes, pois permitem que novos paradigmas sejam construídos. Contudo, novas leis não bastam”
‘Eu fico emocionada quando eu encontro espaços e pessoas que olham para o meu filho para além da sua deficiência’: A realidade enfrentada pelos pais
Waydlle Silva é professora e mãe do Pedro Paulo, garoto de 14 anos com paralisia cerebral. Em entrevista concedida ao LabNotícias, Waydlle compartilha a experiência que teve quando foi matricular o seu filho na escola, além de relatar como é o seu trabalho como professora.
“Eu frequentei sim algumas instituições bilíngues aqui de Goiânia, e a primeira coisa que eu percebia era a resistência do meu filho frequentar a escola acompanhado de um cuidador. Outro entrave era a questão da categorização de qual ano o meu filho iria frequentar. Além de como ia ser o processo de adaptação, o trabalho em sala de aula, e como um professor ia conduzir”
Waydlle afirma que teve sorte, pois dispôs da orientação de uma pessoa muito querida, a mãe de uma aluna que é surda. Essa mãe recomendou que ela procurasse o CMEI (Centro Municipal De Educação Infantil), pois lá existia toda a estrutura que o estado disponibilizava para pessoas com deficiência. No entanto, apesar do privilégio de ter uma orientação, ela ainda enfrentou impasses.
“Não era a minha expectativa que o meu filho fosse frequentar uma escola e ele fosse literalmente um aluno que recebesse tratamentos especiais, Porque essa não é a relação de inclusão, a inclusão é o tratamento igual, dando as condições e as oportunidades diferentes se assim for necessário para aquela criança”
Como mãe de uma pessoa com deficiência e como professora, Waydlle acredita que as escolas estão em um processo de colocar todas as individualidades em uma padronização. “A primeira dificuldade para toda e qualquer mãe e pai de criança com necessidades especiais, é lutar contra o preconceito da escola receber esse indivíduo e não se preocupar com o que as outras pessoas vão pensar.”
‘O processo de educação sem inclusão não existe’: A transmissão do conhecimento
Waydlle aplica todos esses pensamentos e atitudes em sala de aula. Ela desenvolve um trabalho no Fractal, colégio em que ministra aulas, com o livro extraordinário. Nesse contexto, a partir do projeto de leitura, ela produz debates a respeito da inclusão. Além disso, passou um exercício para que os alunos pudessem vivenciar como é estar na pele de uma pessoa com deficiência
“Então teve um exercício que eu propus, respeitando obviamente o direito de fala e de situação de cada um. Eu peguei alguns alunos que se voluntariaram para passar dentro da escola, um dia na pele de um cadeirante, de um deficiente visual, e de um deficiente auditivo. Com o objetivo de fazer com que compreendam um pouco a realidade dessas pessoas”
É necessário desenvolver um projeto político pedagógico que tenha uma fundamentação científica, e uma equipe multifuncional que possa orientar a escola a como lidar com a questão, para trabalhar de acordo com o diagnóstico que vai ser feito para aquela criança. “Não necessariamente aquela pessoa vai ter uma deficiência física visível diagnosticada. Mas de repente ela não aprende da mesma forma do que o colega. Incluir envolve todas essas dinâmicas”, explica a professora.
Luiz Nogueira, psicopedagogo e criador do projeto “Caminhos da Inclusão”, é pai do Davi, garoto autista. Segundo Luiz, “A inclusão acontece quando você se preocupa com aquela criança que é diferente, e então você faz de uma forma diferente. Porque se você tratar todo mundo igual, de forma igual, você não está sendo justo.”
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é o resultado de alterações físicas e funcionais do cérebro e está relacionado ao desenvolvimento motor, da linguagem e comportamental, conforme a Secretaria da Saúde. O autismo começou a ser compreendido melhor pela sociedade nos últimos anos. Todavia, a população possui dificuldade de entender os sintomas desse transtorno.
O psicopedagogo desenvolveu o projeto com o intuito de transmitir informações, para que a sociedade entenda cada vez mais como lidar com pessoas com deficiência e, principalmente, para que tenha acesso aos sintomas de cada deficiência. Para ele, a ausência de conhecimento gera a exclusão dos PCDs da sociedade, e ele quer, de alguma forma, ajudar a reverter isso.
“A inclusão é você dar direitos iguais para pessoas diferentes. É uma pessoa completa como todas as outras, mas com uma dificuldade a mais”
‘Escola é transformar, colocar no caminho do desenvolvimento, socializar’: A capoeira nas escolas
Incluir as pessoas com deficiência no ambiente escolar não é apenas garantir uma estrutura adequada, ou professores classificados. A Inclusão é assegurar que elas estejam presentes em todas as atividades. O Mestre Takinha desenvolveu um projeto de capoeira inclusiva no colégio Fractal Kids, em que está há sete anos. Esse projeto conta com mais de 80 crianças com autismo ou síndrome de down.
A capoeira possui grandes ferramentas para lidar e desenvolver as habilidades das crianças. De acordo com o Mestre, “A capoeira tem a musicalidade. Tem crianças que precisam desenvolver a fala, então nós vamos desenvolver a fala com a música. A capoeira é inclusiva desde quando ela surgiu. Ela apenas tem que ser adaptada. Se a criança tem poucas mobilidades, ela ainda pode jogar capoeira com os braços, com a cabeça, com o sorriso e com o olhar.”
Pedro Paulo, adolescente de 14 anos com paralisia cerebral, é um dos participantes desse projeto. Waydlle, mãe do garoto, relata que seu filho se comunicava na hora da capoeira como nunca em outro ambiente. Além disso, a capoeira o ajudou a sentar com mais firmeza.
“Às vezes as pessoas querem desenvolver um trabalho com crianças com deficiência, e possuem a parte técnica e a teórica. No entanto, para desenvolver esse trabalho, você precisa ter um olhar diferente. Precisa se doar, ter empatia, estar à disposição dessa pessoa. Uso as ferramentas da capoeira e uso o meu sentimento para com aquela pessoa”
Quando questionado sobre o porquê da maioria das escolas não adotarem projetos como esse, Takinha afirmou: “Hoje as escolas não estão preparadas humanamente. A escola é transformar, colocar no caminho do desenvolvimento, socializar. Está faltando nas escolas um olhar humanitário, de cuidar e entender que isso é trabalho da escola. Eu não digo que é fácil, mas é o trabalho dela.”
Lei e penalização: O que fazer caso os direitos não sejam garantidos
Tairo Batista Esperança, Defensor Público do Estado de Goiás, deu instruções do que os responsáveis devem fazer caso não consigam matricular seus filhos nas escolas por conta da deficiência, ou caso a instituição não tenha as ferramentas necessárias para facilitar a permanência no ambiente escolar.
“Caso não consigam matricular o filho na escola por conta da deficiência, a instituição comete o crime do art. 8º, I, da Lei nº 7.853/1989. Desse modo, os pais ou responsáveis podem buscar apoio na Polícia Civil, no Ministério Público e na Defensoria Pública, que poderão tomar as medidas cíveis e criminais cabíveis para a garantia dos seus direitos”
O defensor também explica que: “Caso a escola não tenha as ferramentas necessárias para facilitar a permanência das pessoas com deficiência no ambiente escolar, os pais ou responsáveis podem cobrar dos órgãos e instâncias que fazem a gestão e a fiscalização das verbas públicas, como o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Existem órgãos comunitários de participação na gestão escolar, como os Conselhos de Educação e os conselhos escolares, em que esses temas podem e devem ser debatidos.”
“De imediato, os pais ou responsáveis podem tomar providências na esfera administrativa e judicial para que esse direito seja respeitado. A Defensoria Pública presta assistência jurídica integral e gratuita às famílias de pessoas com deficiência, independentemente do critério de renda, pois elas compõem um grupo especialmente vulnerável. Podemos adotar iniciativas junto ao poder público e as instituições privadas para cobrar e garantir que as adaptações razoáveis sejam implementadas nas escolas. Inclusive, com o ingresso de ações judiciais, de modo a garantir que a estrutura das escolas permitam que a pessoa com deficiência tenha as mesmas oportunidades que os demais”
Foto em destaque: Arquidiocese de Goiânia