Bioma de sacrifício: Cerrado bate novo recorde de alertas de desmatamento

Mais de 6,3 mil quilômetros quadrados de Cerrado foram derrubados, de acordo com dados do Sistema de Detectação de Desmatamento em Tempo Real; é o pior número da série histórica.
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Os dados divulgados no dia 03 deste mês pelo Sistema de Detectação de Desmatamento em Tempo Real (Deter) apontaram um novo recorde: o cerrado brasileiro acumula cerca de 6,3 mil km² de área derrubada. Esse é o pior número registrado pelo monitor desde a sua criação em 2017 e 2018. 

A área derrubada equivale a 8 municípios de Goiânia

Os dados foram divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, advindos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). 

O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, representando cerca de 23% do território brasileiro. De acordo com o IBGE, estima-se que o bioma possuía cerca de 2,036 milhões de quilômetros quadrados de vegetação original. Atualmente, 52,44% ainda não foi desmatado. Apesar disso, apenas 2,15% do que sobrou dele está protegido em reservas ambientais. 

O LabNotícias conversou com dois especialistas ambientais para interpretar os alertas do Deter e entender as respectivas avaliações deles sobre o assunto. 

Breve história

Para falar sobre o contexto histórico, precisa-se primeiramente dar luz ao olhar colonial que foi trazido por europeus ainda em meados de 1500, quando o Brasil foi ocupado por eles. O homem branco se deslumbrou com os ecossistemas florestais, identificando fatores biológicos e de grande diversidade neles. Também, por não possuir conhecimento algum sobre qualquer outro tipo de vegetação e considerar inoportuno, entortou o nariz para a sutileza e beleza do Cerrado.

É o que diz Yuri Salmona – geógrafo formado pela UnB, Mestre e Doutorando sobre a sustentabilidade do Cerrado e ex-consultor do Ministério do Meio Ambiente – ressaltando que houve uma incorporação desse entendimento no Brasil.

Avançando abruptamente na história do país, já na década de 1970, o governo brasileiro adotou uma estratégia para a ocupação produtiva das regiões do Brasil. Através do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento¹, as regiões Centro-Oeste e Norte foram destinadas para a produção e avanço da agropecuária. Ainda aqui, as árvores tortuosas e a biodiversidade de um solo aparentemente seco não possuíam a exuberância necessária que evocasse uma importância significativa que chamasse a atenção de especialistas e governantes.

Além disso, a coordenadora do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás e Vice Diretora do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA/UFG), Eliane Barbosa também comenta que o planejamento envolvia o maior bioma do Brasil (Amazônia), mas ficou a cargo apenas do Cerrado a implementação desse questionável desenvolvimento.

Bioma de sacrifício x Amazônia

Ainda dentro da década de 70, o mundo já havia despertado os olhos para a preservação ambiental e sabiam do contexto da Amazônia para o mundo. Então toda a produção pensada para o biomas Amazônia não pode ser executada. A pesquisadora cita a pressão ambiental internacional ainda nessa época e salienta a inviabilidade estrutural e geográfica de se expandir a agricultura para o norte do país como os principais fatores para o sacrifício do Cerrado em detrimento da Amazônia.

Ela descreve uma correlação entre os biomas: quando se tem menor pressão para a preservação do Cerrado e maior demanda ambiental para a preservação da Amazônia, o desmatamento no moratório da soja cresce quase que como uma equação inversamente proporcional.

Yuri comenta que desde a colonização, o Brasil se colocou como uma fonte de commodities de baixa manufatura. Todos os ciclos envolvendo a produção foram baseados na extração de um recurso natural sem uma agregação do valor realmente significativo para a exportação. Nisso, o país se contentou com essa produção e precisou escolher um terreno fértil para se adequar.

Além disso, ele ressalta que os fatos do Cerrado possuir um clima sazonal muito definido, terras baratas e uma disponibilidade de mão de obra muito grande, auxiliaram na escolha do sacrificado. Somado à isso, a Lei Kandir² (1966) estabeleceu a desoneração do ICMS para produtos primários, semielaborados e serviços exportados. Isso quer dizer que não são cobrados impostos de commodities, como grãos de soja e carne bruta.

Em 2020, o agronegócio contribuiu apenas com R$ 16,3 mil para os cofres públicos com os impostos de importação.

Cerrado e os números com os quais se convive

48% da área do Cerrado já foi derrubada e 96,97% dessa área derrubada foi desmatada para a agropecuária, em especial para a pecuária.

Fonte: MapBiomas

A nova fronteira agrícola (MATOPIBA) – sigla pra designar o eixo composto pelos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – concentra a metade do desmate que acontece no Cerrado, de acordo com o Inpe.

Elaine afirma que é possível conciliar o desenvolvimento dessas regiões com a sustentabilidade. O entorno em questão precisa ser preservado até mesmo para se pensar na atividade da agropecuária: é necessário água em abundância e condições climáticas favoráveis na região para que haja a produção dessas lavouras.

Os impactos ambientais desse desmatamento podem ser percebidos a curto, a médio e a longo prazo:

Você tá tirando a casa de uma diversidade gigantesca, né? Então todos aqueles seres que ali estavam, não tem mais condições de sobreviver. Então você tem a mortandade de todos os serviços que eles prestavam, por exemplo: a polinização […]
A gente tem outros impactos também imediatos como a emissão de gases do efeito estufa. Ao longo e médio prazo, a gente tem um acúmulo de efeitos na capacidade de manutenção no tempo de ciclo hidrológico. Então parte da água infiltrada no solo para poder estar disponível para os rios, ela vai acabar se espalhando superficialmente, provocando erosão e aumento da vazão no período chuvoso.

Yuri Salmona, pesquisador e diretor do Instituto Cerrados

Respostas para esse entrave

Em dezembro do ano passado, 188 países estiveram reunidos em Montreal, Canadá, para discutir o novo acordo para a conservação da biodiversidade na 15ª Conferência das Partes (COP 15) da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB). A reunião se deu, entre vários outros fatores, pelo fracasso do último Plano Estratégico para a Biodiversidade (Metas de Aichi).

Nessa convenção, foi estabelecido que 30% das áreas do Cerrado figurassem para a preservação. No Brasil, há um déficit de 22%.

A também integrante da equipe da iniciativa MapBiomas sugere um possível caminho para o alcance do número indicado:

Aumentar as áreas de proteção, protegê-lo (Cerrado) de fato e também incentivar o não desmatamento porque do ponto de vista legal ainda tem muita brecha para ser desmatado (Cerrado). Muita área que poderia ser desmatada estando ainda de acordo com a legislação.

Eliane Barbosa, pesquisadora e vice diretora do Instituto de Estudos Socioambientais da UFG

Como medida mais efetiva, Yuri, que também é Diretor Executivo de uma Organização da Sociedade Civil, Instituto Cerrados, ressalta a significativa contribuição da Instituição na preservação do bioma. A entidade trabalha com a criação de unidades de conservação, com enfoque na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN’s).

Essa é a Instituição que mais tem apoiado a criação dessas unidades no Brasil. Ele relata que a iniciativa de criação das RPPN’s pode partir tanto do Instituto como dos proprietários rurais.

A principal meta da Instituição é a proteção de 1 milhão de hectares do Cerrado até 2050. Até o momento, 66.230 de hectares foram protegidos.

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