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Onde o cerrado se desdobra em uma vasta gama de possibilidades, existem mulheres que colaboram para que Goiás, o coração do Brasil, seja também conhecido pelo empreendedorismo feminino. Elas estão escrevendo história e abrindo caminho para que outras mulheres venham a ser a regra e não a exceção. Trabalhando em ramos diferentes, seus ideais encontram confluência na possibilidade de mudança social que abrir o próprio negócio pode trazer. Mesmo que Goiás se destaque no cenário nacional como o estado com maior potencial de mercado do Brasil, segundo a pesquisa realizada pelo Centro de Liderança Pública (CLP), é possível encontrar dificuldades parecidas nos depoimentos de Maria Alice e Isabella Elias, empreendedoras da cidade de Anápolis –  e não com relação ao capital ou concorrência, mas ao machismo.

Maria Alice, que começou atendendo em Anápolis, hoje tem clientes em várias cidades de Goiás, outros estados e até mulheres em outros países. “Eu não consigo fazer outra coisa, eu me realizo trabalhando para mulheres, ouvindo mulheres, escrevendo para mulheres e pensando em mulheres. Não me vejo em outra função”, afirma.

Para Isabella Elias, empreender não foi suficiente, e isso é evidenciado pelo seu atual negócio na cidade. O Coletivo Flamingo nasceu a partir do entendimento de que unir forças é a melhor forma de alcançar os objetivos desejados. O projeto surgiu lá em 2016 com um grupo de amigos que sonhava em montar um espaço colaborativo onde pudesse dividir os custos. Embora abrigue uma variedade de iniciativas distintas, todas convergem para um propósito comum: promover a cultura em Anápolis e apoiar artistas e empreendedores locais que buscam maior visibilidade.

Na fala de Maria Alice, foram numerosas as menções sobre preconceitos enfrentados no trabalho. “O direito, assim como quase todos os ramos e carreiras, foi pensado por e para homens. Assim, no exercício da minha advocacia, eu também enfrento a misoginia, o machismo e o sexismo”, destaca. Inclusive, ela comenta que todas as vezes em que inicia um novo processo, está consciente de que será atacada por causa do gênero, “seja pela família da parte, seja pelo outro advogado”.

Também ocupando o papel de mulher empreendedora, Isabella conta que nunca se sentiu diminuída pelos colaboradores e sócios do coletivo, mas já passou por experiências onde pessoas não recorriam a ela para tratar questões “empresariais” e o faziam somente com o seus sócios. Em momentos como esse, Isabella ainda tentava explicar que entendia de todos os assuntos que permeavam seu trabalho. “Hoje em dia já não tenho muitos desafios nesse sentido, e acredito que a postura que eu sempre mantive, de entender que aquele lugar de poder era meu sim, fez total diferença na construção da imagem que tenho dentro do Coletivo”. Ela finaliza com uma frase forte e fundamental: “Não podemos deixar que nos diminuam naquilo que fazemos de melhor!”

Pensando no público feminino, o coletivo busca promover eventos voltados para a cena feminina da cidade, promovendo rodas de conversa sobre temas importantes e também trazendo empreendedoras para expor na casa. Um desses eventos foi o chamado “Feira de Mulheres”, que foi realizado em duas edições e alcançou um número expressivo de mulheres que participaram, fortalecendo a atuação do projeto nesse segmento.

Indo de encontro com a proposta de Isabella, de acordo com o Sebrae, as empresas locais auxiliam na geração de empregos, desenvolvimento econômico, construção de identidade comunitária, preservação da arquitetura e história locais.

Isabella e Maria Alice fazem parte das 371 mil mulheres empreendedoras do Estado de Goiás. Esse dado e os demais utilizados nesta reportagem, foram retirados da 4ª edição do relatório “Perfil da Empreendedora Goiana – Empreendedorismo por mulheres e seus desafios”, pesquisa realizada pelo Sebrae em parceria com a UFG, com dados do IBGE, Receita Federal e outras fontes. Mais que um número, o empreendedorismo feminino representa uma força latente, além de sustento e mudança social.

Maria Alice tem 24 anos e é advogada há pouco mais de um ano, sua atuação é marcada pela multidisciplinaridade, que leva em consideração a história, sociologia e psicologia na hora de assimilar os avanços dos direitos das mulheres, “entendendo o que nos aflige”. E por isso, chamada de advocacia humanizada. “São mulheres passando por diversas situações, mulheres que não recebem atendimento adequado e nem são enxergadas como elas são”. E é por essa necessidade também de humanização da advocacia, e criação de espaços que atendam pensando nos problemas sociais que as mulheres enfrentam, que Maria Alice abriu seu próprio negócio.


Em Goiás, 50,5% da população total é formada por mulheres, o que representa 3,7 milhões de pessoas. Do total de mulheres no Estado, 10% (371.000) são empreendedoras. Assim, conhecer os aspectos principais do empreendedorismo por mulheres é importante para ajudar a promover a igualdade de gênero, incentivar a diversidade nos negócios, subsidiar a formulação de políticas públicas e colher os benefícios econômicos, sociais e culturais que resultam da autonomia das mulheres no mundo dos negócios. Esses 10% estão divididos por setor, sendo que o setor de serviços lidera com quase 200 mil empreendedoras, seguido pelo comércio com 109.089; depois a indústria com mais de 50 mil e por último, a agropecuária com aproximadamente 10.700.

Os diversos perfis de escolaridade, faixa etária e localidade ilustram a importância do segmento no estado, mas também destacam a necessidade de entender os principais aspectos desse fenômeno. Como mostram os dados sobre o nível de escolaridade entre as empreendedoras goianas, apesar de ter alcançado um nível recorde em 2022, as disparidades de renda entre gêneros persistem. O estudo feito pelo Sebrae, a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do IBGE, mostra que, em média, os empreendedores homens obtinham um rendimento mensal 16% acima das mulheres no 3º trimestre do ano passado, mesmo que elas sejam mais escolarizadas.

No âmbito geográfico, a cidade de Goiânia desponta como o principal polo onde as mulheres empreendem, concentrando 29% das empreendedoras do estado, seguida pela Região Metropolitana, com 15%. No entanto, ressalta-se que o empreendedorismo por mulheres também se faz presente em municípios menores, contribuindo para o desenvolvimento econômico local, sendo que a maioria (56%) se concentra nos demais municípios.

Quanto ao perfil das empreendedoras, a idade média é de 42 anos, com o maior percentual entre 30 e 39 anos (28%) e, em seguida, mulheres com idade entre 40 e 49 anos (23%), além de um grande percentual de jovens entre 20 e 29 anos (19%). 

Aqui, Maria Alice menciona que em relação à idade, já passou pelo chamado “etarismo”. No seu caso, foi tratada como se não soubesse o que estava fazendo ou não tivesse conhecimento suficiente. “Sem contar que, ainda por cima, por falar sobre gênero, me tornava uma mulher histérica”. Quando isso acontece, Maria Alice diz que o que a salva todos os dias é saber que pode contar com outras mulheres que a incentivam a continuar.

Baseado na pesquisa sobre o perfil da empreendedora goiana, ao analisar a média de idade em relação ao grau de escolaridade, é perceptível um menor nível de escolaridade entre 51 e 66 anos. E os níveis mais elevados desta variável se concentram entre 35 e 38 anos. A professora de empreendedorismo, Eva Arantes Ribeiro, salienta que o nível de educação do indivíduo desempenha um papel crucial na gestão do negócio, indo além da educação convencional (ensino fundamental, médio e superior) para abranger o desenvolvimento de habilidades, técnicas e conhecimentos específicos. Ela observa: “nesse contexto, é fundamental reconhecer o papel e o interesse do Estado na promoção da educação obrigatória para a população empreendedora”. De acordo com a professora, as repercussões das ações desse grupo têm um impacto significativo no sucesso dos negócios no país.

Ao longo dos últimos 40 anos, de 1983 a 2023, houve um crescimento notável na participação de mulheres na constituição de empresas. Em 1983, apenas 23% das empresas eram formadas por mulheres, enquanto 77% tinham homens como sócios. Em 2023, essa proporção mudou para 42% de empresas constituídas por mulheres e 58% por homens, com essa diferença permanecendo estável desde 2013. Além disso, 80% das mulheres empreendedoras atuam sem sócios.

Os setores econômicos mais frequentes entre as empresas lideradas por mulheres são o comércio varejista (28%), serviços pessoais diversos (12%) e atividades de alimentação (10%). Quanto ao local de trabalho, quase metade das empreendedoras (49%) possui um estabelecimento próprio, como loja, escritório ou galpão, enquanto 36% trabalham a partir de suas casas e 12% em outros locais.

Um aspecto também relevante dentro do empreendedorismo, diz respeito à formalização do negócio. Cerca de 57% das empreendedoras não possuem Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), enquanto 43% estão formalizadas.

Para a professora especialista em Marketing, Eva Ribeiro, a conta de pessoa jurídica é importante por separar a vida pessoal do trabalho. Ela também explica que o CNPJ é essencial para quem deseja formalizar o negócio perante o Estado e dispor de um respaldo legal em diversos processos comerciais.

A docente também destaca que não é possível abordar o empreendedorismo feminino sem mencionar a maternidade. “A partir desses dados da faixa etária de 30 a 39 anos, podemos inferir que grande parte dessas mulheres são mães, e é importante ressaltar que a maternidade altera profundamente a vida da mulher em todos os aspectos, modificando sua rotina e estrutura de vida, especialmente quando ela não conta com uma rede de apoio”. Dessa forma, ela ressalta que a mãe precisa conciliar o trabalho com a rotina de cuidados do filho, o que requer flexibilidade de horário, como não mais trabalhar das 8 às 18. “Não que seja mais fácil, pois certamente não é, mas muitas vezes essa mãe acaba perdendo uma apresentação do filho na escola, e ela não quer mais passar por isso”, coloca.

Para a professora Eva, a primeira questão a ser abordada quando se trata de empreendedorismo feminino é que ele se manifesta de forma diferente para as mulheres em comparação com os homens. “Para os homens, é algo mais natural e muitas vezes carregado de estereótipos machistas, com aquela ideia de provedor e líder nato”. Segundo ela, para as mulheres, surge a partir de necessidades específicas, como aquelas decorrentes da maternidade. Além disso, advém de uma situação comum relacionada à desigualdade de gênero no mercado de trabalho. “Infelizmente, ainda é comum que as mulheres desempenhem as mesmas funções que os homens e recebam menos por isso”. Diante dessa realidade, “as mulheres percebem a necessidade de continuar trabalhando e optam por empreender”, enfatiza a professora. 

E o que começa como uma fonte de renda secundária, acaba por tornar-se a principal fonte de renda. No entanto, não apenas isso, mas também advindo da busca por melhores condições salariais e das necessidades após a maternidade, a iniciativa de empreender também surge das insatisfações com produtos que não atendem suas demandas. “É muito comum a mulher abrir um negócio e começar a produzir itens que, na sua visão, realmente vão atender ao que as mulheres procuram, por não serem pensados por homens”. 

Se o empreendedorismo pode promover igualdade de gênero? Para Maria Alice, sim. “Quando eu, sendo mulher, abro o meu negócio e incorporo as minhas perspectivas femininas a ele, tento agregar ao meu trabalho aquilo que sei que pode estar acontecendo para outras mulheres também. E a promoção da igualdade de gênero passa por aí”, enfatiza.

Nesse cenário, Eva enxerga qualidades nas mulheres, como a capacidade de planejamento e sensibilidade para perceber os detalhes de cada produto e buscar melhorias. “Elas têm uma capacidade de transformação muito grande, porque as mulheres não avançam sozinhas, elas envolvem e inspiram outras mulheres, mudando a realidade social”. Assim, o desejo não é apenas crescer, mas sim não crescer sozinha. “Porque a gente sabe as nossas dores, a dor de ganhar menos que um homem, a dor de não ser reconhecida”, afirma a professora.

Esse pensamento recebe o respaldo da experiência da Isabella, para ela, ser empreendedora não era suficiente, era preciso proporcionar um lugar para outras atuarem. “A representatividade feminina é um valor inegociável. Eu quero levar visibilidade e inspirar outras mulheres a enxergarem seu potencial e correrem atrás daquilo que desejam”, coloca. No coletivo, atualmente, estão vinculadas empreendedoras da área da psicologia, música, arte, marketing e dança. “E cada uma busca, através da sua área, promover atividades e trazer outras mulheres para perto”, diz Isabella.

Por outro lado, trabalhar em um segmento onde não existiam profissionais, como em outras áreas da advocacia, poderia representar um grande desafio para Maria Alice. No entanto, ela buscou se profissionalizar e procurar em outros estados advogadas que exerciam o mesmo trabalho. “Se eu pudesse aconselhar quem deseja ingressar em um ramo dominado por homens, seria: apoie-se em outras mulheres, leia obras de outras mulheres; juntas poderão alcançar o que desejam”. Maria Alice é a primeira advogada de sua família e comenta que, sempre que precisou de uma oportunidade profissional, desde o início de sua formação até agora, em todas as ocasiões foram outras mulheres que a ajudaram. “Nos meus momentos de maiores dificuldades, foram mulheres que me estenderam a mão. Eu devo muito a elas”, destaca.

No relato de Maria Alice, há um alerta contundente: como advogada, ela já foi vítima de ataques de gênero no exercício de sua profissão. “Muitas vezes, nossas redes sociais são expostas em uma tentativa infundada de sugerir que estamos nos vingando junto com a parte que representamos.” Esse testemunho ilustra que, mais do que enfatizar a importância da presença de mulheres empreendedoras, é imperativo garantir que elas tenham as condições necessárias para exercer suas atividades com proteção e respeito.

É perceptível no discurso de Maria Alice e Isabella Elias a vontade de transformar a sua própria realidade e a da cidade que as rodeia, impulsionando o desenvolvimento econômico local, promovendo mudança social e inspirando outras mulheres a seguirem o caminho do empreendedorismo.

2 thoughts on “Mulheres à frente: desafios e a revolução local através dos pequenos negócios”

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