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Ver a vida passar pode ser uma característica de pessoas desocupadas. Nos poemas de Louise Glück, não. A autora americana, vencedora do prêmio Nobel de Literatura em 2020, demonstra a força da memória em Receitas de inverno da comunidade (2022, tradução de Heloisa Jahn), novo livro que reúne 15 poemas de sua autoria, publicado pela editora Companhia das Letras.
Como uma personagem, já na velhice, que repassa a própria vida por meio de lembranças (saudosas ou não), trivialidades e conversas, a voz lírica presente em todo Receitas de inverno da comunidade faz disso um exercício em versos — ainda que com certo grau de pessimismo.
A poeta, que vem ganhando cada vez mais leitores ao redor do mundo desde que foi laureada com o prêmio máximo da literatura, soa, no entanto, avessa a dar-se à contemplação fugidia em Receitas. Neste livro, parece que estamos diante de alguém que desenvolve com bastante aridez e destreza sua visão de mundo.
Para além disso, Glück coloca em pauta o eixo cíclico do cotidiano. “(…) O livro contém/ só receitas de inverno, quando a vida é dura. Na primavera,/ qualquer um pode fazer uma boa refeição”, escreve. A voz lírica observa a rigidez do inverno e o que a primavera é capaz de fazer desabrochar. Mas seja qual for a estação, observar as dicotomias é uma constante em Glück.
Lançando mão de métricas formais, o livro — todo construído na forma livre, característica da poesia contemporânea — tem competência para atrair leitores de qualquer idade. Não porque os temas dos poemas sejam necessariamente correlatos aos jovens, por exemplo. Mas justamente porque Glück escreve de maneira simples sobre assuntos brutos como o amor, o envelhecimento e a maternidade. Receitas é elegante no uso das palavras e das reflexões que escolhe fazer, mas é simples na forma.
E nem porque são simples na forma que as sugestões desses poemas também se resumem a isso. A ideia é mobilizar o leitor para uma reflexão segura. Em “História de criança”, a autora encerra de forma abrupta a narração do que parece ser uma viagem de carro de um pai, uma mãe e os filhos. “Toda esperança está perdida./ Precisamos voltar para o lugar onde a perdemos/ se quisermos encontrá-la outra vez.”
É pouco fácil ver sugestões otimistas em poemas que evocam um presente duro e áspero em Receitas. O estado melancólico é fio condutor de Glück ao narrar a si mesma. No final, o livro deixa um gosto de que não é nem doce, nem amargo. Um meio termo disso. É como se lêssemos sobre todas as durezas, que na velhice soam mais pujantes, ao mesmo tempo que temos esclarecido o tempo presente de maneira firme.