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A última quarta-feira do mês (30/10) foi marcada por um dos acontecimentos mais aguardados do país: o julgamento dos assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes. A sessão aconteceu no 4º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, com transmissão on-line pelo YouTube, e teve fim na noite do dia seguinte (31/10).
Com a presença de familiares e apoiadores das vítimas, a condenação foi decida por meio do júri popular, uma prática não tão corriqueira no Brasil destinada a crimes dolosos.
Ronnie Lessa, executor, foi condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão. Élcio Queiroz, motorista, pegou 59 anos e 8 meses.
Ambos também foram condenados a pagar uma pensão ao filho de Anderson, até que ele complete 24 anos. Juntos, também foram sentenciados a pagar um valor de 706 mil reais de indenização às vítimas da tragédia – Arthur (filho de Anderson), Luyara (filha de Marielle), Agatha (viúva de Anderson), Mônica (viúva de Marielle) e Marinete (mãe de Marielle).
Foi negado o direito de recorrerem em liberdade.
Marielle – na época, vereadora pelo PSOL – e Anderson – motorista – foram assassinados a tiros em 14 de março de 2018, quando voltavam do evento Jovens Negras Movendo Estruturas, na Casa das Pretas, que abordava temas de empoderamento e resistência das mulheres negras. O carro em que estavam foi cercado, e vários tiros foram disparados.
Marielle foi atingida por quatro disparos na cabeça, enquanto o motorista foi atingido por três tiros na região do tórax. Dentro do carro, ainda havia a assessora da vereadora, Fernanda Chaves, que não foi atingida.
O ataque ganhou relevância nacional e internacional ao longo dos anos, sendo um dos crimes políticos mais emblemáticos do Brasil. Marielle se tornou símbolo de luta e resistência, apesar dos constantes ataques políticos que sua morte sofreu.
Fora os esforços de interferências políticas nas investigações, a Polícia Civil do Rio de Janeiro teve seu trabalho dificultado pela recusa da Apple e do Google de fornecerem os rastreios de aparelhos nas proximidades dos assassinatos.
Dois anos depois do crime, em 2020, dois ex-policiais militares, foram presos como principais suspeitos do assassinato. Ronnie Lessa foi acusado de ser o autor dos disparos, enquanto Élcio Queiroz dirigia o carro que cercou o veículo. Hoje, ambos são réus confessos e participaram do acordo de delação premiada.
Foram ouvidas as 9 testemunhas registradas, tanto da defesa quanto da acusação. Dentre elas, estão Fernanda Chaves, única sobrevivente, a mãe da vereadora, Marinete da Silva, e Mônica Benício, viúva de Marielle. A viúva de Anderson, Agatha Arnaus, também foi ouvida.
Do lado da defesa, a favor de Lessa, foram ouvidos testemunhos de Marcelo Pasqualetti, agente federal, e Guilhermo Catramby, delegado da Polícia Federal.
A defesa de Queiroz desistiu dos depoimentos.
Testemunhas em ordem de depoimento
- Fernanda Chaves, assessora de Marielle e sobrevivente do atentado.
- Marinete da Silva, mãe de Marielle.
- Mônica Benício, viúva de Marielle.
- Agatha Arnaus, viúva de Anderson.
- Carlos Alberto Paúra Júnior, policial civil do Rio de Janeiro.
- Luismar Cortelettili, policial civil do Rio de Janeiro.
- Carolina Rodrigues Linhares, perita criminal.
- Guilhermo Catramby, delegado da Polícia Federal.
- Marcelo Pasqualetti, policial federal.
Após os testemunhos, os acusados também foram ouvidos. Se condenados, o juiz determinará a pena com base na gravidade do crime e nas circunstâncias do caso, sendo possível apelar da decisão.
O júri foi formado por 7 cidadãos sem precedentes criminais. As mulheres chamadas foram rejeitadas pela defesa, tornando-o todo masculino. Essa homogeneidade foi critica pela promotoria, uma vez que eram majoritariamente homens brancos de meia idade.
No segundo dia de julgamento (31/10), a sessão começou com a fala final da acusação diretamente aos jurados, explicando as circunstâncias e implicações de um crime doloso. O crime foi definido como tendo teor político e financeiro. A motivação torpe também foi amplamente debatido, uma vez que trazia teores que poderiam agravar a pena.
O MP-RJ disse que, pelo acordo de delação premiada, os acusados cumpririam – caso condenados – pelo menos 30 anos de pena em regime fechado. Todos os membros da promotoria sugeriram a condenação dos acusados, reforçando a gravidade e barbaridade do caso.
O Ministério Público também apresentou provas técnicas para auxiliar a decisão, frisando que a delação não foi crucial para comprovar a participação dos réus, derrubando suas defesas.
Durante a fala da defesa, o advogado de Lessa levou o depoimento gravado de Natan Netuno, morador de rua que estava presente durante os assassinatos. Durante o testemunho, Natan disse que viu o braço do assassino, e que era de um homem negro.
O advogado também trouxe a fala do garçom de um bar, que confirmava se recordar da presença de Élcio e Ronnie durante o horário do crime. Isso, junto ao último registro de localização de ambos ter sido na Barra da Tijuca, trazia dúvidas na teoria de acusação. Ou seja, declara que, sem a confissão e colaboração premiada, seria muito mais difícil a resolução do crime.
A advogada de Queiroz, por sua vez, pediu condenação do cliente de maneira diferente a do assassino, alegando que “a culpabilidade de Élcio é bem menor do que a de Ronnie”. Ela também negou o motivo torpe relacionado à política, mas alegou que “no caso do Lessa, é evidente”.
Enquanto isso, os suspeitos de mandantes do crime, Domingos Brazão, ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, seu irmão Chiquinho Brazão, deputado federal pela União Brasil, e o delegado Rivaldo Barbosa, ainda aguardam julgamento, uma vez que serão acusados judicialmente pelo Ministério Público Federal, em razão do foro por prerrogativa de função. Os três estão detidos desde março, delatados por Lessa e Queiroz, e negam envolvimento no crime.
Quem são os réus?
Ronnie Lessa é um ex-policial militar com ligações e passado criminais conhecidos. Ele se tornou um membro do Escritório do Crime, uma organização criminosa conhecida por assassinatos encomendados. Em sua delação premiada, Lessa revelou conexões com policiais que, segundo ele, cobravam propina para evitar investigações em crimes. Ele também foi condenado por contrabando de peças de armas e foi implicado em outros casos de homicídio, além do de Marielle.
Élcio Queiroz, também ex-policial, foi o primeiro a firmar um acordo de delação, durante o qual acusou outros policiais de corrupção e mencionou tentativas anteriores de assassinato de Marielle, antes do crime consumado em 2018. Ele confirmou que as investigações sobre o caso estavam sendo obstruídas por membros da polícia e políticos, e citou figuras como os irmãos Brazão, implicados como possíveis mandantes do crime.
Estratégias no julgamento
Tanto defesa quanto acusação, apresentaram estratégias sólidas durante as mais de 24 horas de julgamento.
A acusação, organizada pelo Ministério Público em prol de Marielle e Anderson, focou na humanização das vítimas e barbaridades do crime. As testemunhas trouxeram ponto de vista pessoal e técnico, enfatizando a falta que – mesmo 6 anos depois – ainda é presente na vida de ambas as família, e a análise pericial e policial de como o atentado aconteceu e foi premeditado.
Um ponto crucial foi o “dolo de matar todos“. Isso se refere à intenção direta de causar a morte de todas as pessoas envolvidas em uma situação específica, assumindo a responsabilidade por esse resultado.
Com as evidências da direção dos tiros, foi defendido pelo MP como Fernanda também se tornou alvo, a fim de queima de arquivo, uma vez que, por reflexos – dela e de Marielle -, não foi atingida. Isso contradiz a alegação de tentativa de retenção dos disparos feita por Lessa.
Já a defesa, tanto de Ronnie quanto de Élcio, usou do depoimento dos agentes federais para esclarecer como foram essenciais para a obtenção de detalhes cruciais para o entendimento do crime, devido à colaboração premiada que os dois acordaram.
O advogado de Lessa ainda pedia a condenação do assassino, mas com a retirada do motivo torpe, alegando que política não tinha a ver com a razão do homicídio. Ele também negou a teoria da morte de Anderson e risco de morte de Fernanda terem sido planejadas como queima de arquivo.
A estratégia de Queiroz foi uma tentativa de humanização e vitimização do motorista, trazendo ele como um trabalhador honesto que precisava de dinheiro e aceitou o trabalho devido à amizade com Ronnie. A advogada também trouxe a ideia de uma dívida moral de Élcio com Lessa.
O momento de fala das testemunhas de defesa também foi oportuno para a acusação, uma vez que foi utilizado para trazer as descobertas feitas pela Polícia Federal e reforçar o histórico criminal dos acusados.
Durante a fala final da acusação, a promotoria reforçou a frieza dos assassinos confessos e “culpa de terem sido presos“, a fim de derrubar a estratégia da defesa, alegando “arrependimento por algo em troca“.
O que disseram os réus
Ronnie Lessa
O primeiro a depor, abdicou de seu direito ao silêncio previamente ao julgamento, devido ao acordo de colaboração premiada. Élcio Queiroz também tomou a mesma decisão. Ambos foram instruídos, pela promotoria, a não citar nomes de mandantes ou quaisquer pessoas vivas que não estivessem sendo julgadas.
Lessa descreve que recebeu a proposta milionária de Edmilson Macalé, para o assassinato de Marcelo Freixo (PT). O plano mudou para Marielle Franco por considerarem arriscado atacar um político do nível de Freixo. Além disso, a carioca foi alvo por ser uma “pedra no caminho” nos planos de loteamento ilegais1 de Macalé e mandantes.
A mando dos orquestradores do crime, o assassinato não poderia ser feito na Câmara dos Vereadores – para evitar a participação automática da PF no caso -, fazendo com que precisassem fazer vigilância da vereadora por mais de 6 meses. Lessa convida Queiroz para o crime durante o Réveillon de 2018.
No depoimento, não citou a chegada de Élcio em seu condomínio, Vivendas da Barra, mencionado durante a delação.
Ao final, pediu desculpas às famílias das vítimas e a sua própria.
Élcio Queiroz
Depondo em seguida, o ex-policial inicialmente confirma o convite que recebeu durante o Ano Novo. Segundo ele, o motivo foi a ineficácia de quem deveria ser o motorista original do carro. No final de seu depoimento, Queiroz nega essa versão e diz que a conversa foi apenas um “desabafo” do amigo.
O contato com o mandante era diretamente com Lessa, sem passar por Queiroz, primeiro por encontros presenciais e, posteriormente, por um celular específico.
O réu confesso admite ter sido contado na tarde do dia da execução e cita a entrada no condomínio Vivendas da Barra, comentando sobre o incidente com a portaria2, dizendo ser uma confusão. Segundo ele, só ficou sabendo que se tratava de um assassinato ao chegar na Casa das Pretas.
Outra divergência nas versões dos acusados foi se o carro parou ou não na hora dos tiros. De acordo com Lessa, o veículo estava em movimento durante os disparos. Já Queiroz, motorista, afirma ter parado.
Élcio alega ter sugerido ao assassino a abortar a missão, devido à presença de Fernanda e Anderson no carro. Após o crime, disse que acreditava que apenas Marielle tivesse sido morta.
Mesmo sendo instruído o contrário, Queiroz citou o nome de ex-bombeiro militar Maxwell Simões Correa em várias as etapas do pós-crime, como adulteração da placa – cortada em pedaços e depois jogada fora – e descarte de evidências. Maxwell foi quem sugeriu Edilson Barbosa dos Santos, “Orelha” – condenado por obstrução de justiça desse caso – para dar fim ao Cobalt usado no atentado.
Élcio declarou ter encontrado 8 munições de fuzil em uma árvore próxima a sua casa, que acredita ser resquícios do Comando Vermelho, que atuava na região. Segundo ele, guardou a munição em seu carro para “entregar à DP“, dias antes da Operação Lume3, mas esqueceu. Ao ser perguntado o porquê de não ter acionado o 180, ele diz ter sido “negligente” e querer “resolver tudo com as próprias mãos“.
A promotoria questionou também se, previamente aos assassinatos, Lessa e Queiroz já haviam praticado algum crime em conjunto. O réu se negou a responder.
** Última atualização em 31/10, às 18:34 **
- Os loteamentos de Macalé e milicianos no Rio de Janeiro envolvem a ocupação ilegal de terras, onde eles vendem lotes sem documentação e controlam serviços locais por meio de coerção e monopólio. Esses grupos tomam áreas públicas e privadas, muitas vezes em regiões ambientais ou de risco, oferecendo “segurança” em troca de taxas e forçando comerciantes e moradores a obedecerem suas regras. ↩︎
- No depoimento inicial, o porteiro disse que Élcio Queiroz tentou entrar no condomínio alegando que ia para a casa de “Seu Jair,” sugerindo conexão com o então presidente Jair Bolsonaro. Porém, registros mostraram que Élcio foi direto para a casa de Ronnie Lessa, e gravações desmentiram a versão inicial do porteiro, indicando erro ou possível pressão sobre ele. ↩︎
- Realizada em março de 2019, foi uma ação policial focada no assassinato de Marielle e Anderson. Durante a operação, a polícia apreendeu uma grande quantidade de armas, incluindo fuzis, em investigações que ligavam Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, principais suspeitos do crime, ao tráfico de armas e outras atividades criminosas. A operação resultou no cumprimento de 34 mandados de busca e apreensão de documentos e munições, e revelou conexões entre os suspeitos e redes de criminalidade no Rio de Janeiro. ↩︎