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Um sol forte ainda pairava sobre o prédio onde moro quando, no fim da tarde, já próximo da viração do dia, ouvi meu telefone dar dois toques. Era meu pai. “Trouxe pamonha para comermos juntos”, ele me disse. Depois que coei o café, era como se eu próprio tivesse percebido que havia autorizado que o nosso papo pudesse render por pelo menos três xícaras adiante.
Já adianto que não perdi ninguém, graças a Deus. Mas nunca desejei tanto não ter perdido a união dos meus pais — que se divorciaram há cerca de 1 ano e meio. Soa confuso até para mim mesmo esse tilintar constante que a ausência dessas figuras unidas no meu dia a dia faz. É um barulho mais alto do que qualquer marretada que se possa dar em paredes durante uma demolição.
Eu ainda me lembro de cada tarde quente ou não em que, ritualmente, nos púnhamos à mesa para essa mesma leva de três ou quatro xícaras de café que rendiam vários assuntos. Presumíamos, inventávamos, sonhávamos, cantávamos, parodiávamos. Hoje conjugo esses verbos todos no singular na maior parte do tempo.
Quando estou nos meus momentos mais dramáticos, da alma, do espírito e do intelecto, pouco faz bem tentar apego à essas memórias, que nunca encaixam na fenda criada e agora tão difícil de ser fechada.
Na tradição goiana, faça sol ou chuva, sempre é hora de um cafézinho. Já vi coisas bonitas acontecerem ao redor da mesa, e rogo para que continue vendo. Mas eu acho bonito quando, mesmo com dor, a gente encontra uma única razão que nos impele a prosseguir. O café com meu pai — só com ele — é a prova de que, sutilmente, as coisas são reeditadas, e falo de memórias mesmo.
Eu recomendei que ele não fosse embora tão rápido, mas ele tinha de ir. E tem coisas que vão mesmo. A única certeza que fica realmente é que haverá sempre um sol para cada habitante de Goiás entre os meses de julho e outubro, conforme me asseguram fontes confiáveis do Centro de Informações Meteorológicas. Esse calor não passará. O amor também não passará. Pelo menos, não o meu.
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