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Criança trabalhando com máquina de costura em confecção. Crédito: Exposição Fashion Experience/Reprodução

Longe das passarelas e do glamour que permeia o conceito da moda; a máquina de costura veloz e a tesoura afiada, constituem parte dos perigos do trabalho infantil nesse setor.

Os bastidores de um mercado que movimenta mais de 53 bilhões de dólares anualmente, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), sob a exploração de mais de 100 mil crianças em todo o país, recorte produzido a partir de dados levantados em 2015, pelo PNAD, não liga para as tendências de verão/inverno. O clássico, casual, e, infelizmente, ainda moderno, é a exploração da mão de obra infantil.

A gênese do trabalho infantil remonta o início da colonização do país, quando crianças e adolescentes foram introduzidos ao trabalho doméstico e em plantações. Em âmbito da indústria, volta-se a atenção para a Revolução industrial. Jaqueline Tatanashvili, mestre em história com pesquisas em teoria e história da moda, conta um pouco sobre essa prática nesse contexto. “Diferentes setores fabris relacionados com a indústria têxtil e de vestuário, exploravam o trabalho de crianças e adolescentes. Em geral, as jornadas eram longas, as condições de trabalho insalubres e a remuneração, ínfima”, comenta ela.

O  trabalho infantil é toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, como regra geral. Quando realizado na condição de aprendiz, é permitido a partir dos 14 anos. Caso for trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos. Assim, a proibição do trabalho infantil no Brasil varia de acordo com a faixa etária e com o tipo de atividades ou condições em que é exercido.

“O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, fala do ex-presidente Jair Bolsonaro, em live de 2019. O ex-presidente criticou ainda o fato de que, segundo ele, se um garoto estiver na cracolândia, não se faz nada.

Essa fala reproduz um discurso do senso comum que valida o trabalho infantil como forma de aprendizado. De acordo com a secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil, Katerina Volcov, “quando você vê uma criança no semáforo ou tirando o excesso de um jeans nas indústrias, você percebe que o entorno daquela criança ou adolescente tem uma série de problemas sociais envolvidos”, assim, essa romantização maquia inúmeras questões.

Dados

No mesmo ano da fala de Bolsonaro (2019), a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que havia cerca de 1,8 milhão (1,768 milhão) de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil, o que representa mais que a população inteira de Goiânia. Desse total, mais de 40% (706 mil) estavam ocupadas nas piores formas de trabalho infantil (Lista TIP). 

A maior concentração de trabalho infantil estava na faixa etária entre 14 e 17 anos, representando quase 79% do total. Entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, 66% eram meninos e 33% meninas. Quase 54% estavam no grupo de 16 e 17 anos; 25% no grupo entre 14 e 15 anos e 21% no de 5 a 13 anos. No entanto, os números são anteriores à pandemia e a quantificação exata é um desafio diante da falta de dados precisos. 

Conforme Katleem Lima, auditora fiscal do trabalho há 28 anos salienta: “os processos de pesquisa nacionais a domicílio mudaram os critérios de aferição e o foco vai para a última gestão do governo, em que houve um descuido com a realização dessas pesquisas”. Ela conta que alguns resultados não vinham a público e deixaram de ser mensais para serem anuais, impedindo a consolidação de dados e o mapeamento preciso da questão do trabalho infantil. A auditora finaliza: “o Brasil era muito bom em fazer essas compilações, mas vem decaindo na última década, enfraquecendo essa estratégia”.

Em se tratando desse segmento em específico, os números mais recentes são de 2015, retomando a estimativa do PNAD, o Órgão identificou que de quase três milhões de crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, 114 mil estão na indústria têxtil. Em sua maioria, atuando em pequenas unidades familiares, prática que contribui para a invisibilidade do problema. 

No caso da indústria da moda, essa quantificação é escassa e nesses últimos quatro anos, a produção de dados pelo Governo Federal ficou muito aquém. De acordo com Katerina Volcov, “foram dados apagados, páginas que existiam não existem mais, houve muita resistência no antigo governo para a realização do censo e a produção de conhecimento sobre esse setor”. Logo, o trabalho infantil que é a ponta do iceberg da desigualdade e injustiça social, segue invisibilizado. 

Em números da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no mundo, em 2020, 160 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos, foram vítimas de trabalho infantil (97 milhões de meninos e 63 milhões de meninas). Em outras palavras, uma em cada 10 crianças e adolescentes ao redor do mundo se encontravam em situação de trabalho infantil.

O relatório da OIT juntamente com a UNICEF, mostrou que o problema é muito mais comum nas áreas rurais. Existem cerca de 123 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil em áreas rurais, em comparação com quase 38 milhões em áreas urbanas. Ou seja, a prevalência de trabalho infantil no meio rural é três vezes mais alta do que no meio urbano.

Fonte: Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)

Ainda de acordo com o relatório, a maior parte do trabalho infantil – tanto para meninos quanto para meninas – continua a ocorrer na agricultura. Esse dado chama a atenção para o início da cadeia produtiva no setor têxtil, pois para além dos centros urbanos, das lojas e confecções, a exploração do trabalho de crianças e adolescentes, se inicia na zona rural. No cenário brasileiro, os números são menos alarmantes, com 24% do trabalho concentrado na zona rural.

Mas ainda assim, é preciso jogar luz para esse cenário. Segundo Katerina, é comum filhos que ajudam os pais nas lavouras, isso porque grande parte da agricultura brasileira é familiar, “quando a criança volta da escola para casa, os pais estão nas lavouras e elas também vão, é algo normal para elas”, essa normalização, se somada a um difícil acesso a essas plantações, torna a fiscalização mais difícil.

A auditora fiscal do trabalho, conta que a fiscalização nas zonas rurais acontece a partir de um planejamento que estuda a distribuição da produção no Estado e dos indicadores. 

É um elenco de critérios que falam sobre o maior número de trabalhadores prejudicados, as condições que são mais perniciosas e se elenca prioridade na hora de fiscalizar. “Isso também envolve a nossa condição de atendimento e também recebemos denúncias de sindicatos, por exemplo”. Essas denúncias são estudadas e envolvem diversos atores do segmento de segurança pública que planejam as ações.

Causas

Mesmo longe dos olhos dos consumidores, o trabalho infantil na cadeia produtiva da moda ainda é forte e envolve grandes marcas e varejistas do mercado da moda, ainda que indiretamente. “Não é incomum que se alegue a falta de conhecimento de uma grande rede de roupas acerca da origem da matéria-prima, essa alegação é confortável, mas não justifica a cadeia produtiva”, diz a auditora fiscal do trabalho, Katleem Lima.

E além disso, “hoje em dia esse argumento da ignorância não cabe mais porque são temas recorrentes e debatidos, e os consumidores estão cobrando mais”. Devido a isso, a auditora comenta que quando uma marca paga um valor baixo por uma peça de roupa, é dever dela ter conhecimento da origem da produção daquele material, “ela (marca), certamente, poderia deduzir as condições do trabalho de quem fabricou aquela roupa.”

Somado a isso, faz se saber que o setor têxtil é o segundo maior em número de empregos na indústria de transformação no Brasil. Dados da Associação Brasileira de Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) mostram que as empresas formais neste segmento chegam a 25,2 mil e as vagas diretas somam 1,5 milhão.

Por motivo de maior fiscalização e pressão por parte dos consumidores, a auditora comenta que “no espaço formal de trabalho de grandes empresas nós podemos afirmar que praticamente inexiste trabalho infantil, mas olhando para a cadeia produtiva, vamos encontrar fortemente a presença de crianças e adolescentes trabalhando”.

Isso pode ser visualizado indiretamente dentro das fábricas, quando muitas famílias recolhem retalhos ou pegam lotes de peças para fazer o que eles chamam de limpeza, sendo tirar os fios das peças e finalizar os botões, ou seja, é uma terceirização do processo produtivo. Esse trabalho é realizado em forma de rede, na qual as famílias concluem essa etapa e devolvem à empresa. E como conta Katleem, não é contabilizado nos números dessa problemática.

Como se ganha por peça, quanto mais pessoas trabalharem, por mais tempo possível, melhor é o rendimento da família, então leva o envolvimento de todas as pessoas que moram nessa casa e não há controle da condição desse trabalho. “São coisas que escapam das normativas de saúde e segurança e aqui no Brasil é muito recorrente”, comenta ela.

A secretária executiva do FNPETI, alerta que “precisa haver uma maior fiscalização da cadeia produtiva e o compromisso das empresas em não contratar fornecedores que empreguem mão de obra infantil”. Ela comenta sobre a necessidade da implementação de uma cultura responsável em todos os setores e cita o exemplo das empresas bancárias: “quando uma confecção, negócio têxtil, pede um empréstimo no banco, esse contrato firmado já deve trazer uma cláusula que especifique a proibição dessa prática”, com vias a eliminar qualquer resquício de exploração futura.

Um outro ponto de alerta é quanto à divisão sexual do trabalho infantil, o PNAD constatou que existe o dobro de meninos em relação às meninas em situações de exploração do trabalho. Contudo, segundo a auditora Katleem Lima, esse resultado não abarca os casos de serviço doméstico. “Enquanto o irmão vai trabalhar na fábrica e é exposto a uma ordem de perigos, a irmã fica em casa cuidando de tudo sozinha para que quando a família voltar tudo esteja pronto”. Para ambos, existem riscos, seja usando fogão ou panela de pressão, seja manuseando uma tesoura, usando a máquina de costura ou a exposição a produtos químicos. 

Katleem diz que o trabalho infantil doméstico é um dos mais invisibilizados e isso acontece porque, “se é natural para as pessoas na sociedade em geral, assumirem como problemática a criança trabalhando na rua, mas natural ainda é a menina não ir a escola porque cuida do irmão mais novo para os pais trabalharem”. Assim, a menina vai assumindo as ocupações de casa e ainda, “é vista como uma heroína, sendo muito encorajada a fazer isso mesmo tendo as perspectivas pessoais sacrificadas”, conclui ela.

Contudo, a culpa não é dos pais, Katarina Volcov comenta que “isso é reflexo da ausência do Estado e o Brasil vai precisar de muito recurso para sair desse quadro”. Nesse sentido, o foco vai para o maior orçamento nas políticas de geração de renda para as famílias, orçamento na assistência social, programas específicos, políticas de moradia, escolas de tempo integral, mais auditores fiscais do trabalho e legislação específica para que as empresas controlem a cadeia produtiva desde o início até o produto final. 

Perspectivas futuras

Recentemente, o Brasil se comprometeu com a agenda 2030 com relação aos objetivos de desenvolvimento sustentável, uma pauta que também envolve o trabalho. Dentro da meta 8 relacionada ao trabalho, tem-se a meta 8.7 que se trata de erradicar o trabalho infantil no mundo, até 2025.

Mas diante do cenário atual, não só brasileiro, a situação ainda é complexa, consoante ao que Katherina relata, “temos uma guerra no leste, números altos de migrações, catástrofes, aumento do neofascismo, um pandemia que matou mais de 700 mil pessoas só no Brasil, desemprego em contexto nacional e insegurança alimentar”.

Quanto ao setor em discussão, a auditora Katleem Lima complementa, “por hora, a questão do consumo consciente é um fato muito positivo, pois multiplica em milhões de olhos, a questão sobre trabalho infantil”. E traz um apelo importante: “é necessário a construção de um valor social e humanitário para a juventude e desconstruir essa visão míope envolta de senso comum das pessoas sobre as nossas crianças e adolescentes”.

Além disso, os consumidores podem denunciar ligando para o disque 100 ou encaminhando a denúncia para o Ministério Público do Trabalho, e sempre que possível, desconfiar de produtos com preços muito baratos, isso porque para o produto chegar até eles custando tão pouco, alguém ganhou menos ainda e sob condições que o consumidor desconhece. Além disso, pesquisar sobre é fundamental e dever de todos.

Para saber mais:

Fórum de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil: <https://fnpeti.org.br/>.

Lista TIP: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6481.htm>.

Ministério Público do Trabalho em Goiás: <https://www.prt18.mpt.mp.br/>.

Organização Internacional do Trabalho: Escritório no Brasil. <https://www.ilo.org/brasilia/lang–es/index.htm>.

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