- As mulheres do ônibus - 2 de setembro de 2022
- Um triste retrato da realidade - 12 de agosto de 2022
- Pessoas em situação de rua vistas pelo poder público - 29 de julho de 2022
Como bem diz [Baco] Exu do Blues em seu rap “A pele negra é a pele do crime“: Como se não bastasse a eterna escravidão em que corpos são obrigados a viver, corpos pretos são marginalizados, esteriotipados, subestimados, coagidos, presos injustamente, mortos. Poderia passar horas citando as diversas leis quebradas por corpos pretos apenas por existirem livremente — o que na cabeça da branquitude é uma ofensa à “pureza de sua cor”.
Todos os dias pessoas negras são confundidas com criminosos, gerando milhares de falsos reconhecimentos por pessoas que sequer sabem olhar para corpos pretos. O reconhecimento pessoal é um meio útil na obtenção de provas, porém é sugestionável, o que o leva a ser falho. Ao confiar cegamente no Código Penal brasileiro a justiça falha, pois está confiando na fala de alguém que acaba de passar por um abalo emocional sem ter qualquer tipo de prova concreta. Como é o caso de Ângelo Gustavo Pereira Nobre.
A questão aqui não é colocar em cheque a veracidade da palavra da vítima, e sim a conduta da polícia, que sem qualquer prova concreta de que realmente tenha sido o suspeito que tenha cometido o crime, realiza prisões arbitrárias por ouvir da vitima de um assalto: “era um negro de bermuda” — e os policiais prendem o primeiro negro de bermuda que passa na frente do reconhecimento.
Segundo o “ Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, deve-se proceder da seguinte forma: Quem for fazer o reconhecimento deve descrever a pessoa antes de reconhecer a pessoa. A pessoa será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
O caso de Ângelo Gustavo Pereira Nobre, que foi indiciado quando um carro foi roubado e encontrado a cerca de 500 metros de onde a vítima foi abordada, é mais um caso de uma pessoa negra que perdeu anos de sua vida lutando para se provar inocente de um crime cometido enquanto o jovem estava em um hospital.
Havia no veículo da vítima, documentos e pertences de João Mateus, que também se tornou réu no processo. Depois de ver as fotos na documentação, a vítima apontou que João participou do assalto.
Após fazer uma busca em uma rede social, encontrou uma foto de Gustavo no facebook e apontou que o produtor de eventos também havia participado do crime. A investigação foi dada como encerrada após o reconhecimento por parte da vítima e que Gustavo só soube que estava respondendo a um processo criminal quando recebeu uma intimação em 2015.
Gustavo só foi Inocentado em 2021. A desembargadora Maria Angélica Guerra Guedes levou em consideração o problema de saúde de Nobre e mencionou o relato da família de que, no momento do roubo, ele estava em uma missa de sétimo dia em homenagem a um dos melhores amigos. Durante o evento, ele teve de ser carregado, e disse em seu voto:
“A ninguém interessa a condenação de um inocente, afinal, quando deixamos que um cidadão cumpra pena por um crime que não cometeu, somos forçados a reconhecer que o sistema de Justiça falhou. Impossível conceber um Estado Democrático de Direito que não tenha o bem comum como pressuposto e, ao mesmo tempo, objetivo. Privar um cidadão inocente de sua liberdade sem dúvida atenta contra o bem comum, e fere a segurança jurídica, conquanto legítima injustiça”
Maria Angélica Guerra Guedes, desembargadora do TJ-RJ
Mais uma vez, a palavra de uma vitima contra a de um corpo negro só mostra que o negro vale menos do que qualquer objeto. Sequer deram ao jovem o direito à defesa. A fotografia não foi apresentada pela própria polícia na investigação. A identificação partiu da vítima e não houve uma investigação, não há qualquer outra prova que afirme a participação do Gustavo. Não pediram imagens de câmeras de segurança, não chamaram ele para prestar depoimentos. Apenas deram a investigação como encerrada e iniciaram o processo, mesmo que o acusado tivesse uma ficha criminal limpa.
O grande problema da sociedade está em achar que casos como o de Gustavo são coisas deste século e da era digital. Pior ainda: as autoridades tentam resolver como se fossem problemas de hoje. Muita gente acha que os negros é que se entregaram a uma vida inteira de servidão e que a escravidão ter acabado “foi devido à princesa Isabel ter assinado a lei Áurea”.
Crescemos ouvindo e reproduzindo uma história que não é a verdadeira, abraçamos a narrativa comercializada pelo branco, apenas por ser conveniente. Vivemos em uma sociedade racista que diz não existir racismo, mas que acredita em racismo reverso.
Há um poema de Oswald de Andrade que diz que:
Quando o português chegou debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português.
Oswald de Andrade
Acredito que a surpresa da chegada dos portugueses e a falta de preparo de um povo que não esperava lutar uma guerra fez com que tanto os negros quanto os Índios perdessem a sua liberdade.
O negro vive a falsa independência de um sistema neoliberal que diz que as oportunidades estão postas, só é preciso agarrá-las. Eu vos pergunto: que oportunidades são essas? Por que pessoas negras tão capazes quanto os brancos, dependem de alguém para lhes dizer o que podemos ou não fazer, que lugares frequentar e de que modo de se portar, se somos pessoas livres?
A falsa sensação de liberdade que “deram” de nada serve quando o povo negro, fomos arrancados de suas terras e obrigados ao trabalho escravo. Esta é uma sociedade que não enxerga além do espelho: se eu olho para o espelho e não gosto do que vejo, é só modificar. Trocar a roupa, o sapato e, agora, até mesmo o rosto.
Essa luta contra a desigualdade racial, está posta desde que o europeu invadiu o continente africano com suas armas e segregaram os negros, condenando um povo a uma eternidade de desigualdade. Dois negros juntos logo são indagados: “Vocês são irmãos? Mas são parentes né ? São tão parecidos!” Voltamos aqui ao ponto de que a sociedade não reconhece o negro enquanto pessoa e sim como um “bando” que se parecem apenas pela cor que carregam. Não sabem olhar, não observam os traços e apenas enxergam a cor.
Dificilmente confundem Danton Mello com Selton Mello (e olha que são irmãos), porém confundem Lázaro Ramos e Seu Jorge. Acontece que nesta sociedade é fácil olhar para o branco e distinguir quem ele é, já o negro é irrelevante e é só mais um trabalhador comum, um favelado, um quilombola.
A luta não para desde o início da escravidão. É o que diz o cantor, escritor, e ator Emicida em seu podcast Amarelo Prisma. Temos pessoas negras debatendo sobre o assunto, desde cantores a autoras negras como Lélia Gonzales e Djamila Ribeiro, falando sobre o assunto, mas não temos pessoas prontas para ouvir e lidar com a grandeza da raça negra.
As pessoas negras são perfeitamente capazes de representar seus interesses políticos e, principalmente, não precisam do aval de um branco para dizer se isso foi ou não racismo.