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Com a adição de cenas descartadas da versão lançada em 2021, o especial de comédia aclamado da Netflix ganha doses extras de humor, sarcasmo, realismo e reflexão
“O que diabos está acontecendo?”. Esta frase certamente passou pela cabeça de muita gente ao ver o mundo se fechar em março de 2020, e são com estas palavras que o comediante e diretor norte-americano Bo Burnham inicia seu trabalho mais recente, o especial de comédia musical “Bo Burnham: Inside”, lançado em 30 de maio de 2021, no catálogo original da Netflix. Desde então, o trabalho árduo do realizador na direção, roteiro e composição das músicas que preenchem o especial rendeu a ele um total de 3 Emmys (o Oscar da televisão) e um Grammy (o Oscar da música). Um ano depois de seu lançamento, Burnham lançou um compilado de mais de uma hora de cenas e segmentos descartados da versão disponível na Netflix, muitas das quais são intrínsecas para a compreensão do conceito de “Inside” como um todo.
Tanto antes como depois do lançamento do especial, vários filmes abordando a pandemia de COVID-19 foram lançados nas mais diversas plataformas: “Isolados: Medo Invisível”, lançado nos cinemas; “Kimi: Alguém Está Escutando”, original da HBO Max; “Help”, filme britânico de televisão estrelando Jodie Comer (“Killing Eve”); “A Bolha”, original da Netflix; “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2021; “Host”, filme de terror ambientado em uma chamada de vídeo por Zoom; entre muitos e muitos outros. Mas por quê “Bo Burnham: Inside”, como um especial de comédia e não um filme, não só merece estar entre as obras citadas, como também merece destaque como um dos retratos mais realistas, sarcásticos e reflexivos sobre o dia-a-dia pandêmico?
“É um dia lindo para ficar dentro de casa”
“oi. eu fiz um especial novo. foi filmado por mim, sozinho, sem uma equipe ou um público, ao longo do ano passado. ele está quase pronto. espero que vocês gostem.”, Burnham postou no Instagram em abril de 2021, pouco mais de um mês antes do lançamento de “Inside”, juntamente com um pequeno teaser que conecta o conceito de seu trabalho mais recente com a conclusão pungente de seu especial de stand-up anterior, “Bo Burnham: Make Happy”, lançado em 2016, também no catálogo original da Netflix.
Burnham começou a ganhar fama através de seu canal no YouTube, o qual o levou a um contrato com a Comedy Central, que bancou dois de seus quatro especiais de stand-up (“Words, Words, Words” e “What.”). Entre seus dois trabalhos mais recentes na comédia (“Make Happy” e “Inside”), o realizador se aventurou na direção de filmes em 2018, comandando o aclamado “Oitava Série”, que lhe rendeu, entre muitas outras vitórias, o Prêmio do Sindicato dos Diretores de Melhor Direção Estreante e o Prêmio do Sindicato dos Roteiristas de Melhor Roteiro Original.
Mas o que é “Inside” e por quê o especial é tão relevante para os dias de hoje? “Bo Burnham: Inside” é um especial de comédia musical filmado inteiramente por Burnham (que serve como diretor, roteirista, editor, produtor, compositor das canções, entre várias outras funções) em sua casa em Los Angeles. Ao longo das filmagens, nós acompanhamos o seu dia-a-dia, através de canções bem-humoradas, outras mais reflexivas, insights interessantes sobre a cultura atual, e momentos aparentemente insignificantes onde nada parece acontecer. E por quê ele ainda funciona, 1 ano depois de seu lançamento? Pela aproximação emocional e temática de Burnham com o espectador, pela exposição bem calculada e propositalmente escondida de sua ambientação, e pelo caráter pessoal que o autor imprime em seu trabalho.
“[Estou] Curando o mundo com a comédia”
O primeiro destaque que é preciso fazer sobre “Inside” é o seu senso de humor, bem similar àquele mostrado no especial anterior de Burnham, “Make Happy”, e a capacidade do comediante de ainda se mostrar atualizado em respeito aos assuntos predominantes da época retratada, especialmente os aspectos advindos da cultura digital. A overdose de conteúdos disponíveis na Internet; a estética agradável de um perfil específico de usuários no Instagram, que não tem medo de revelar suas rachaduras em meio à uma realidade aparentemente utópica; o silenciamento de minorias sociais e a cultura do cancelamento são alguns dos temas abordados por meio de canções simultaneamente hilárias e reflexivas compostas por Burnham.
O interessante é que a abordagem desses temas não fica restrita apenas às partes musicais do projeto. Burnham cria um palco para si mesmo em sua casa, investindo em monólogos relevantes e sarcásticos sobre a conscientização social tardia das marcas nos dias de hoje, a predominância do espaço virtual em detrimento da constante desvalorização do espaço real, a cultura dos influenciadores digitais que transmitem a si mesmos jogando videogames (os chamados streamers) e a necessidade que toda pessoa tem de dar seus argumentos em relação a algum aspecto em voga, para não ficar de fora da discussão. Este senso de humor satírico e reflexivo em respeito a temas predominantes na consciência coletiva do público permite que Burnham se aproxime do espectador, motivando-o a acompanhá-lo em sua jornada pessoal por esse momento particular na história.
“Mas aí, a coisa mais engraçada aconteceu”
Ao longo do especial, é possível notar que a abordagem de Burnham em seu trabalho vai evoluindo de uma veia mais cômica e sarcástica para uma mais dramática e séria. Isso se deve principalmente à maneira com que o autor decide se aproximar do evento que rendeu um dos significados do título do especial (“Dentro”, do inglês “Inside”). Um detalhe que é importante ressaltar é que Burnham NUNCA menciona a pandemia de COVID-19 por nome, se restringindo a se referir a ela através de expressões como “esses tempos em que estamos vivendo”, “a coisa mais engraçada”, “uma época como essa”, e ainda assim lidando com ela de uma maneira realista, pungente e relevante.
O comediante dedica algumas de suas canções e segmentos a alguns hábitos que foram criados por causa da pandemia de COVID-19, como a necessidade de fazer chamadas de vídeo com familiares que moram longe, para evitar contato físico; ou o envio de mensagens picantes dentro de relacionamentos amorosos (conhecido como “sexting”, ou sexo por mensagem), com os parceiros impossibilitados de se encontrarem fisicamente, em especial, se morarem em lugares diferentes. Além disso, Burnham também encontra tempo para apontar algumas reflexões sobre o papel da comédia em uma época como a pandemia de COVID-19, de uma forma igualmente relevante, até utilizando uma das piadas mais antigas da humanidade sobre uma galinha para apresentar um ponto de vista otimista sobre o evento.
Outra coisa brilhante a ser ressaltada em “Inside” é como Burnham consegue traduzir perfeitamente dois dos sentimentos mais predominantes que passaram pela cabeça das pessoas durante a pandemia: o tédio e o horror. Em parte porque praticamente nada de importante acontece, os segmentos que sustentam esse argumento estão disponíveis entre as cenas deletadas divulgadas no canal de Burnham no YouTube. Ao longo da compilação, temos Burnham filmando aviões sobrevoando sua casa, criando canções curtíssimas sobre coisas triviais ao seu redor, estabelecendo uma atmosfera de terror Lynchiano à la “Twin Peaks” e “Cidade dos Sonhos”, reforçando aspectos mundanos, mas necessários que aprofundam o conceito do especial e que, portanto, deveriam estar presentes na versão da Netflix.
“Eu não estou…bem”
Mesmo com um senso de humor inegável, e uma louvável sensibilidade e inventividade ao lidar com um evento tão difícil como a pandemia de COVID-19, o cerne de “Bo Burnham: Inside” acaba sendo o mesmo de todas as obras anteriores do autor. Assim como em suas obras fictícias, como “Oitava Série” e a série “Zach Stone is Gonna Be Famous”, e seus especiais de stand-up anteriores, “Inside” é sobre Bo Burnham, acima de tudo. Particularmente, esse especial é sobre como Bo se deixou afetar pela pandemia, e a descida em espiral de sua saúde mental, decorrente do evento. E é aí que encontramos o segundo (e mais interessante) significado do título de seu trabalho mais recente. Mais do que somente um estudo sobre o modo de vida pandêmico (que gerou a conhecida hashtag #StayHome, ou Fiquem em Casa), “Inside” é uma jornada ambientada dentro da mente de seu protagonista, no caso, o próprio Burnham.
Trancado em sua casa, há vários segmentos ao longo da sucinta duração de uma hora e trinta minutos onde Burnham fala um pouco do estado de sua saúde mental naquele momento em particular da gravação. Seja através de canções ou monólogos, o comediante reflete sobre estar “no fundo do poço”; ou como o especial, para ele, tem a função de “impedir que ele coloque uma bala em [sua] cabeça”; e até sobre o fato dele se envergonhar de piadas anteriores que podem ser consideradas ofensivas. Muitas vezes, ele nem precisa de palavras ou melodias para indicar o quão desconcertado ele está. Ele utiliza de breves olhadelas para a câmera, tornadas quase imperceptíveis pela sua montagem autoral; tiques nervosos capturados pela filmagem; recursos visuais no fundo das imagens e curtos, mas significativos silêncios que traduzem seu estado de espírito para o espectador, fazendo que, muitas vezes, “Bo Burnham: Inside” seja algo difícil de assistir.
Porém, Burnham, como um artista, pega todos os sentimentos que passam por dentro de si, e os transforma em arte, culminando em um dos pontos mais altos de sua carreira de 15 anos com a canção “All Eyes On Me”. Ambientada logo após o comediante declarar explicitamente que não está bem, ele dá voz à sua depressão e a todos os sentimentos contrastantes dentro de sua cabeça. “Vocês estão nervosos?/Vocês estão se divertindo?/Está quase acabando/Acabou de começar”, canta ele na primeira estrofe. No meio da canção, ele quebra propositalmente o clima, se abrindo para um público mecânico, que só está lá para aplaudir, e não para ouvir, contando sobre seu distanciamento da comédia stand-up após “Make Happy” e sua vontade de retornar aos palcos, em janeiro de 2020, mal sabendo que “a coisa mais engraçada” iria arruinar seus planos.
É uma música completamente desprovida do senso de humor característico de Burnham, e é justamente por isso que é tão eficiente no contexto do especial. A música acaba ganhando ainda mais profundidade na versão descartada, onde o autor assume duas personas diferentes: sua ansiedade, incontrolavelmente angustiada; e sua depressão, já aceitando a derrota e esperando o fim de tudo. Não é novidade que a canção, a primeira pertencente a um especial de comédia a entrar para a lista global da Billboard das 200 músicas mais vendidas, rendeu a Burnham o Grammy de Melhor Canção Escrita para Mídias Visuais.
“Até logo, adeus”
Com isso, sim, “Bo Burnham: Inside”, como especial de comédia, merece estar na lista de melhores obras culturais que abordam a pandemia de COVID-19. Através de canções hilárias, insights reflexivos e segmentos essencialmente mundanos e triviais, Burnham consegue traduzir todos os sentimentos provenientes de um evento como esse não só de uma maneira universal, aproximando o emissor do receptor da mensagem, mas também de uma maneira bastante pessoal, oferecendo uma jornada dentro de sua própria saúde mental, mostrando o quanto o comediante foi afetado pela pandemia e sua disposição a tentar superar todos os seus medos e ansiedades.
P.S.: As músicas presentes no especial estão disponíveis para streaming no Spotify!