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GUINEWER INAE BUENO DE QUEIROZ

Stray é um videogame de aventura para Playstation 4, Playstation 5 e PC, lançado em 19 de julho de 2022, pela companhia indie BlueTwelve Studio e publicado pela Annapurna Interactive – mesma empresa de Outer Wilds (2019). Na plataforma de jogos online, Steam, o jogo foi avaliado 64,366 vezes e apenas 1,543 dessas avaliações foram negativas – até o momento da apuração dessa resenha. E não é à toa, o jogo já era dito como um dos mais esperados do ano e em pouco tempo se tornou um fenômeno mundial na área dos games.

Segundo o site MGG, Stray está entre os possíveis cotados para a categoria de Jogo do Ano na premiação The Game Awards que acontece no final do ano. No ano passado, o jogo vencedor foi o It Takes Two, da Hazelight Studio/ EA, lançado logo no começo do ano e que competiu com grandes nomes como Resident Evil Village (Capcom) e Deathloop (Bethesda). Este ano, Stray também tem grandes competidores, entre eles o popular Elden Ring, da premiada FromSoftware. Mesmo que se veja entre gigantes da indústria dos games, o pequeno “jogo do gato” tem força por vários motivos.

Para começo de conversa, o jogo atrai a princípio com a ideia de ser um simples simulador, já que o personagem principal é realmente apenas um gatinho. Com uma animação bonita e mecânicas simples, é um jogo a ser apreciado pelos jogadores ávidos e pelos principiantes. É tranquilo, com lindos cenários e o mais importante: um plot inesperado. Stray se passa em uma distopia robótica, mas não, não é exatamente cyberpunk. 

Em matéria para o Sextante, o repórter Mateus Leite, descreve as obras cyberpunk como um futuro distópico onde, apesar do imenso desenvolvimento da tecnologia, há um aumento profundo nas desigualdades sociais e na qualidade de vida da população. E, embora isso se assemelhe a sociedade representada no jogo, outro ponto tocado por Mateus em seu texto é que cyberpunk trata muito do que é ser humano… E nenhum dos personagens de Stray é exatamente humano. Bem, se você não quer spoilers do jogo, talvez seja melhor pular os próximos cinco parágrafos.

-A PARTIR DAQUI SPOILERS-   

Um dos primeiros personagens que nosso protagonista – o gato – encontra após cair na cidade murada em que a história se passa, é um pequeno Android que vem a se auto-identificar como B-12. O Android tinha sua consciência presa na nuvem há anos e com a ajuda do gato consegue escapar para um corpo provisório, se tornando então seu companheiro na jornada para retornar para o lado de fora da cidade. B-12 tem suas memórias danificadas e vai às recuperando ao longo do jogo, de forma que também ensina o gato e ao jogador sobre a história do mundo. 

Nosso protagonista peludo acabou caindo no que um dia foi uma cidade construída por humanos para se proteger dos perigos do mundo exterior. Ela era cercada por muros e fechada em cima, privando os moradores de ver o céu e a luz do sol. Ou seja, a cidade é completamente isolada do mundo exterior. Isso era para proteger os humanos de tudo, os deixando sozinhos sem nada além de seus robôs assistentes, completamente subservientes e sem consciência própria. Mas nem toda a proteção do mundo os salvou: ao longo do jogo descobrimos que uma epidemia avassalou a cidade e matou todos os humanos.

Ao longo dos anos, os robôs que existiam como servos da raça humana, perdem seu motivo principal para existir e, ao invés de continuarem como máquinas obsoletas, eles vivem. Os robôs desenvolvem consciência, manipulam sua inteligência artificial para se tornarem como os humanos, criam sua própria língua e cultura. A cidade então é dividida em partes: a cidade morta, abandonada; uma parte baixa e mais pobre, porém mais livre e onde os ideais revolucionários crescem, chamada de As Favelas; uma parte média onde os moradores estão resignados, vivendo em tranquilidade, chamada de Antvillage; e um lado mais alto, mais rico e colorido, porém mais rígido e semelhante a estrutura humana, o Centro da Cidade. 

E o nosso gato, vai ajudar os revolucionários da parte baixa, a alcançar seu objetivo de reabrir a cidade e dar aos robôs a liberdade de ver o mundo exterior que conhecem apenas através de mitos. Chegando ao topo, à sala de controle, os robôs que ali se encontram ainda agem como se os humanos que um dia viviam naquela cidade ainda existissem. Presos a sua programação inicial, tão perto da liberdade, ainda vivem como servos. Falam a língua dos humanos e continuam a trabalhar, tanto que nem percebem o que o gato e seu companheiro fazem para abrir a cidade. Em um ato de sacrifício, B-12 abre os muros da cidade para que os robôs tenham a liberdade que lhes foi privada. 

-FIM DOS SPOILERS-

O jogo termina com uma esperança de um futuro melhor para os robôs e o protagonista, e deixa o jogador com muito o que pensar. Quando eu disse que não é cyberpunk, é porque o gênero cyberpunk busca discutir até onde uma pessoa se mantém humana sob modificação contínua – dilema do barco de Teseu. Para quem não conhece, esse é um paradoxo que questiona o quanto podemos mudar uma coisa sem que ela deixe de ser ela mesma, quanto da madeira de um barco podemos trocar até que ele seja um barco inteiramente novo. Já o dilema que podemos retirar de Stray não é exatamente sobre a identificação como ser humano, é sobre a servidão.

Os robôs são seres inumanos e inconscientes, criados para a servitude eterna e facilmente descartáveis. São vistos como inferiores aos humanos, puramente máquinas empregadas sem direitos. São escravos. E o jogo diz que esses tais escravos sem inteligência própria, programados somente para trabalhar, desenvolvem sua própria cultura quando estão livres de seus mestres. A própria estrutura da cidade remete a estrutura hierárquica capitalista em que os moradores das Favelas são mais pobre e mais propensos aos ideais revolucionários. Os moradores de Antvillage – a parte média da cidade – estão mais resignados a situação em que se encontram e vivem um pouco melhor, mas ainda tem interesse em ajudar. E por fim, o Centro da Cidade, que é extremamente contra os ideais revolucionários e segue as ordens de uma corporação, enraizada nos ideais dos falecidos humanos, que é inclusive onde há repressão policial.

Stray revela que, apesar do tempo todo que se passou, o sistema imposto pelos humanos ainda existe, mas quanto mais distantes dele mais livres são os robôs. Livres para viver, pensar, criar e buscar uma revolução que os livraria totalmente desse sistema que foi instituído por seus criadores, mas sem rejeitar totalmente o que era ser humano. Só buscando se assemelhar a eles, a ser livres como pensavam que seus mestres eram. Com uma premissa inocente, Stray é um jogo bonito e cativante, que nos convida a pensar sobre o mundo em que vivemos e o sistema que nos foi herdado. E que até mesmo uma criatura tão pequena e simples quanto um gato, pode ajudar a trazer liberdade e luz para um mundo sombrio e cercado.

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