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Há 50 anos, mais precisamente em 1972, José J. Veiga publicava seu quarto livro: “Sombra de Reis Barbudos”. A obra transborda o contexto histórico social vivido pelo país durante o período – pós golpe militar de 1964 – e reflete a combinação entre a agudeza crítica e a fluidez da linguagem simples e alegórica do escritor goiano. A façanha que Veiga alcança em menos de duzentas páginas (na edição comemorativa publicada pela Companhia das Letras) é a construção de um universo interiorano que de pequeno não tem nada.
Se de um lado temos uma ambientação que poderia ser encenada em alguma cidade do interior de Goiás, de outro percebemos a extensão robusta que esta toma. Quem nos acompanha desde a primeira linha é Lucas, e nisto se explica também essa “largura” que o escritor transmite, pois o jovem narrador revela – a partir do seu relato em primeira pessoa – tanto a si quanto o chão em que pisa. A perspectiva do personagem, que amadurece ao longo das páginas, faz com o leitor adentre os labirintos da sua mente, a qual principia as primeiras experiências da adolescência em um ambiente marcado pela repressão.
Dizer que Lucas superdimensiona a realidade conforme suas angústias implicaria reservá-lo à crença que confina a ótica infantil à invencionice. O que o garoto faz não é abraçar o exagero superficial, mas sim dar o tamanho preciso ao que sente. Ao longo de toda a história ele mantém em tom confessional uma apresentação progressiva sobre aquela que fora sua vida, sua terra, e os seus. Nas palavras do menino, “é curioso como certas coisas vão acontecendo em volta da gente sem a gente perceber, e quando vê já estão aí firmes e antigas” (VEIGA, p. 27) .
E é assim que somos introduzidos à cidade outrora bucólica e agora abandonada às lagartixas e gambás. Nosso narrador já começa evidenciando sua pinta de filho obediente à mãe, relação esta que se destaca no desenrolar do enredo. E por mais que já entremos na história sob o aviso de que esta Taitara – nome da cidade fictícia – é agora uma versão assombrada pelo vazio e os vestígios das tiranias ali deliberadas, Lucas nos conduz desse mesmo jeito manso com que as “mudanças” se instalaram. Seu universo particular, habitado pela mãe, Vi, o pai, Horácio, Tio Baltazar e Tia Dulce, é anunciado logo de cara juntamente ao entusiasmo de um certo discurso de progresso que as memórias do personagem revisitam.
E não à toa repleto de ironia é o nome dessa figura que representa o “desenvolvimento” e as expectativas em torno de tal. A Companhia de Melhoramentos de Taitara, companhia industrial que se instala na cidade, é a força que rui continuamente com as estruturas que sustentavam todas as esferas da vida de Lucas. A ideia em torno do empreendimento, que advém do tio do menino de onze anos e já é prontamente também defendida pelo pai, é o princípio do padecimento das relações materiais e afetivas.
A contradição que a empresa carrega vai sendo acentuada conforme suas intenções se tornam mais claras. Os primeiros anos de sucesso, festas e alegria, dão lugar à percepção de uma felicidade e progresso encenados, até que perdem totalmente sua camuflagem. Nesses meandros é que o autor vai alinhavando sobre a malha da sua história fictícia, a trama do regime autoritário que era enfrentado pelo país durante esse período. A violência, o medo, os ataques à liberdade… a linguagem literária e as alegorias de que Veiga faz uso refletem do cinismo à truculência vivida no Brasil entre os anos de 1964 a 1985.
Num passeio rápido por Taitara no auge das suas instâncias de poder e controle, seria facilmente possível bater de frente com os inúmeros e altos muros erguidos, como um labirinto a divisar vínculos, amigos e a demarcar o limite do olhar. As barreiras de concreto, porém, foram apenas o início. Os “melhoramentos” vão se multiplicando sem parar: são implantados fiscais, da maior das diversões até a mais simples contração dos lábios em forma de riso, e até a memória de Lucas começa a vacilar quando eventos que aconteceram são ameaçados de nunca terem acontecido. A Companhia controla a vida de todos e as tentativas de desvio do seu domínio têm por padrão o fracasso.
Nesta seara das obras que refletem a reação a sistemas opressores e ao autoritarismo, tendo como exemplos os livros “1984“, de George Orwell, e “Fahrenheit 451“, de Ray Bradbury, é perceptível como a Literatura fornece meios para dar voz ao inconformismo e à resistência. Ainda que simbolicamente retratado, esse resistir nos atravessa, vira do avesso e aviva, e é mais ou menos esta a sensação que o leitor pode se deparar quando da sua caminhada pelas redondezas de Taitara avista meio sem querer um pontinho humano voando no céu. Um pontinho livre, flutuando acima dos muros, sendo a única coisa de si refletida terrenamente naquele território condenado por muros e proibições: a sombra.
Ainda que se saiba cada estratégia e invenção de Veiga usada para retratar por meio do seu realismo mágico os duros anos ditatoriais, ainda sim não seria possível contemplar a profundidade com que ele o faz. E é por isso que mesmo cinco décadas depois da sua publicação, Sombra de Reis Barbudos dispensa prefácios, assim como detestava o autor.
Ao leitor cabe assimilar, a partir das primeiras linhas, a história contada por Lucas em obediência à mãe, preocupada com suas ociosidades e perambulações em uma cidade onde pessoas são presas por estúpidos pretextos inventados e, acredite se quiser, onde a cada dia tem mais gente voando no céu do que andando no chão. Restando apenas o lembrete do menino: “as pessoas falam muito de felicidade, se atropelam para serem felizes, mas poucos se interessam pela felicidade dos outros. É um erro, porque a felicidade de um beneficia a todos, quando mais não seja pela beleza do espetáculo” (VEIGA, p. 33)