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Uma vez que adentramos as fronteiras do tal universo adulto, somos frequentemente apresentados a uma repaginação dos conceitos que nos eram até então simples e espontâneos. O priming semântico é um desses casos em que pode parecer complexo à primeira vista, mas não morde, nada mais é do que a capacidade de entender outra coisa através de uma coisa. Mas não se apegue a esse nome meio complexo, meio emprestado do inglês, sua utilidade aqui é unicamente nos servir de interrogação. 

No mês de julho é comemorado o Dia Nacional da Ciência e juntamente com as mobilizações que acompanham a data, há uma figura recorrente associada e igualmente intrigante, considerando o que vem à nossa mente quando surge essa palavra: cientista. Uma espiadinha rápida no fundo da sua memória: o que aparece imediatamente enquanto você assimila estas nove letras? Frascos, jalecos, luvas, óculos de proteção e bancadas com experimentos? O repertório de respostas possíveis é extenso, mas qual seria a imagem de quem faz ciência no Brasil? 

As áreas em que a produção científica do país mais se destaca são Engenharia, Química e Agricultura, segundo dados do primeiro boletim “Panorama da Ciência Brasileira 2015-2020” do Observatório em Ciência, Tecnologia e Inovação (OCTI). Ainda que esses três campos se sobressaiam, independente do que compõe essa figura, do seu âmbito de pesquisa e de como ela possa aparentar, há um intervalo gigantesco entre o ambiente controlado do laboratório e os diversos tipos de saberes e conhecimentos, que podem inclusive dispensar a necessidade de um jaleco.

Se é para pautar o “mês da ciência”, que seja para tentar compreender e evidenciar as singularidades e a realidade de quem é cientista e da ciência nesse país. Como pode coexistir um abismo tão grande entre a recente lista divulgada pela Times Higher Education, revista que realiza uma cobertura sobre o ensino superior à nível mundial, e a incapacidade do governo federal brasileiro em investir na educação, cumprindo as metas estabelecidas por ele próprio? A publicação britânica elencou não apenas sete universidades brasileiras entre as dez com maior impacto global da América Latina, como também na lista divulgada o país desponta com o maior número de universidades entre os demais. 

Considerando que entre estas elencadas apenas uma não é pública, e, que as instituições de ensino superior públicas correspondem a mais de 95% da produção científica brasileira, segundo estudos do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), é vergonhoso e revoltante que o governo federal seja o carrasco que tem ruído a estrutura da educação superior gratuita e empurrado nossos cientistas ladeira abaixo.

O resgate está a caminho?

A pesquisa científica brasileira se equilibra em uma linha tênue entre a resiliência e a incerteza de um futuro sustentável. Enquanto de um lado é evidenciada a importância da pós-graduação – 80% das pesquisas em ciência e tecnologia estão ligadas a programas de mestrado e doutorado, conforme enfatizado pelo presidente da Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência (SBPC) – de outro é perceptível o descaso ao qual a comunidade acadêmica está sujeita. Segundo dados de 2018, apresentados pela publicação anual Education at a Glance, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas 17% da população brasileira de 25 a 64 anos até então possuía ensino superior completo no nível de graduação. O “filtro” se afunila ainda mais no caso da pós, somente 0,8% destes haviam concluído cursos de mestrado e 0,2% de doutorado. 

Enquanto o relatório da OCDE revela que os brasileiros não estão sequer conseguindo chegar e permanecer na Universidade – o país apresentou a 5ª pior taxa de pessoas com ensino superior completo – os orçamentos das agências de fomento à pesquisa são continuamente reduzidos e insuficientes. A mais recente atualização dos valores das bolsas de mestrado e doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi realizada em 2013.

De acordo com o Nexo, os nove anos de atraso do reajuste configuram uma redução de 66,6% da quantia que recebem os pesquisadores, considerando a inflação no período. Nesta relação de estragos que só tende a se estender, nos resta questionar: quem consegue ter acesso tanto ao fazer ciência quanto ao consumo dos conhecimentos produzidos? Vivemos em um país onde o Ministério da Educação encerrou seu exercício de 2020 com a menor dotação desde 2011 e onde a Educação Básica, Profissional e Superior acumulam cortes, sendo que esta primeira também encerrou o ano em questão com o menor orçamento e a menor execução da década.

É no mínimo ilógico observar tais dados, reunidos no 6° Relatório Bimestral de Execução Orçamentária do MEC, relativo ao ano de 2020, em comparação com a 20ª meta do Plano Nacional de Educação (PNE), estabelecido pela Lei nº 13.005/2014. Entre as determinações previstas está a ampliação do investimento em educação pública com o objetivo de atingir o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio. O compromisso, firmado há oito anos, chega a ser cômico quando justaposto à atual conjuntura na qual o “desempenho excepcional” do país tem sido em alcançar o pior patamar do decênio.

Portanto, não, não há nenhum resgate à vista e a maior expectativa que há, assim como a promessa de reajustar as bolsas destinadas aos pesquisadores, não passa de um talvez especulativo e da esperança depositada quanto à resiliência de quem faz pesquisa. 

O que dizem e não dizem os dados?

Enquanto os objetivos do PNE se mantêm sendo uma miragem utópica, os bloqueios imperam. Ainda em junho de 2022 o MEC informou o corte de 7,2% na verba que seria destinada às Universidades Federais, e remanejou 3,2% do orçamento para outros órgãos. Além disso, a situação das agências de fomento segue preocupante, dados da SBPC, apontam que a CAPES e o CNPq já acumulam cortes de cerca de 51% da verba destinada às pesquisas na última década. 

O diagnóstico sobre as condições em que os cientistas e pesquisadores brasileiros têm trabalhado é grave. Se torna ainda mais acentuado e alarmante o estado de quem faz pesquisa à luz de episódios recentes como o fechamento de 12 programas de pós-graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, e a declaração da reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das cinco melhores do país, segundo o ranking universitário de 2019 da Folha de São Paulo, sobre a possibilidade de fechar as portas que paira sob a instituição a partir de agosto. Tal parecer não é novidade, e muito menos exclusividade da UFRJ, uma vez que a máxima da ausência de saldo positivo para assegurar a continuidade das atividades aparece de norte a sul. 

Contudo, o que os números apontam é que a produção científica novamente resiste. Nos dados analisados pelo Observatório em Ciência, Tecnologia e Inovação do período entre 2015 a 2020, houve um aumento expressivo da produção brasileira de artigos. Além do crescimento de 32,2% em relação ao ano de 2015, durante o mesmo período, foi superada inclusive a produção global, a qual cresceu 27,1%.

Porém, se de um lado temos rankings e listas que nos apontam que a produção de quem faz ciência tem resistido, ainda há que se perguntar: o que esses dados não nos revelam? Quem tem conseguido resistir e em quais situações? Quem está consumindo esses conhecimentos? O desafio é que vai muito além de números e indicadores de desempenho, mas começa com algo mais natural, involuntário e humano. Algo simples como as imagens e ideias que vem à sua cabeça quando se pensa em ciência no Brasil, em representatividade e acesso democrático de quem está dentro e fora dos inúmeros campos científicos, em diversidade e legitimidade dos vários saberes que existem, e em quem se atreve a ser cientista nesse país. 

One thought on “<strong>Ciência no Brasil: muito além de jalecos e indicadores de produtividade</strong>”

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