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Férias de verão. Beira-mar numa zona afastada em uma cidadezinha do Espírito Santo. Um cenário onírico para turistas vindos de Goiás — exceto para os três adolescentes da expedição. Depois do primeiro banho de mar em águas violentas e mornas, o encanto deu lugar ao tédio profundo, daqueles que alongam as horas passadas. Queríamos algo que aquela paisagem vinda de quadro não tinha: farras, turistas e álcool. O tédio era tão espesso que sentíamos no ar, dava calafrios. Logo começaram os primeiros protestos de nossa parte. Não era por aquilo que havíamos percorrido mais de mil quilômetros. Um dia se levantou diante de nós, no outro, parecia prova de resistência. Quando o convite surgiu para nos levantarmos de manhã no terceiro dia para ver golfinhos nadando, nem isso nos comoveu.
Foram então os adultos e as duas crianças para o espetáculo. Enquanto lentamente nos despertávamos, chegaram as duas mulheres e uma das crianças. Meu pai e Vitor, meu primo, resolveram voltar descalços por uns 5 km na beira da praia, com as ondas refrescando seus pés no ardente sol matinal. Sua peregrinação logo chegaria ao fim, mas não sem antes ganhar contornos dramáticos.
A distância entre a casa e a praia era de uns 100 metros de pura areia branca e fumegante, sapecando de tal forma que as fumaças de pressão térmica subiam — e eles estavam descalços. Foi então que os desbravadores resolveram correr. Logo viram que seus pés não suportariam a areia, queimando e ardendo em agonia e dor. Foi então que meu pai avistou um peculiar artefato de madeira, que foi sua solução. Antes de chegarem em casa, um pequeno monte de terra se assomava diante da estrada. Eu olhava para o monte e estava prestes a ver o nascimento de um herói.
Brandindo alto uma pequena espada de madeira, escalaram contra a luz do sol em uma pose épica que até hoje fulgura em minha mente, como as melhores memórias fazem. A cena me pegou completamente desprevenida. O que raios fazia meu pai com uma espada de madeira? Ele a jogou no chão, subiu em cima para refrescar os pés e logo deu lugar para Vitor fazer o mesmo. Pegou-a e continuou sua corrida para a sombra de casa, não sem antes repetir o providencial ato umas quatro vezes.
Quando finalmente chegou ofegante em casa, meu pai proferiu as palavras que o transformaram em um herói. ‘’É nessas horas que eu queria ser um homem paina’’. As risadas irromperam de todos, enquanto dúvidas nos pairavam: O que diabos é um homem paina? Em meio a tantas risadas, fui a primeira a tentar desvendar o mistério. Contudo, meu pai permanecia sério. Seu olhar enraivecido, voz alterada e o enrugar da testa, anunciava que ele estava começando a se irritar. “Paina, uai. Vocês não sabem o que é paina?” Mais risadas e mais zangado ele ficava. “Eu queria ser leve como uma paina, para flutuar na areia quente” Disse isso incidindo cada uma de suas palavras, com as mãos gesticulando junto com as frases em um tom brusco, de grande irritação.
A espada, a declaração, a irritação, só nos arrancaram mais risadas. “Foi uma metáfora!” Já dizia esbravejando, aqui já se levantara para se afastar de nós. “Essa geração não entende o que é uma figura de linguagem” repetia, indignado. Enquanto mais risos e a dúvida que continuava. O que poderia ser uma paina? Foi assim que surgiu nosso improvável herói de espada em punho, dando um golpe mortal no tédio que nos consumia.