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Era domingo, acordei cedo, disposta, alegre, ansiosa para conhecer o amor da minha vida, ser mãe. Nosso encontro já estava marcado haviam alguns meses. Nove, para ser exata. Em “gravidês” 38 semanas.

Fui para casa dos meus avós onde todos se reuniam. Naquela época ninguém brigava por política. Avisei para todos que era dia de dar à luz. Eu tinha certeza mesmo não tendo marcado com o médico algum e contando apenas com a natureza.

Minha avó, que sempre foi a melhor cozinheira do mundo, havia feito o macarrão, cuscuz e carne de panela. Meus olhos brilharam para aquele prato todo amarelo com marrom e extremamente cheiroso. Mas quando o aviãozinho beirava o aeroporto que já ia se abrindo, fui interrompida pela minha tia que falou que se eu comesse aquilo teria que fazer lavagem. Subitamente me dei conta a que ela se referia e, mesmo faminta, me despedi daquele prato. Minha mãe, percebendo a situação, me preparou uma porção com bastante caldo. Apenas caldo. Afinal de contas, caldo é água.

Depois do almoço me deitei por algumas dezenas de minutos e acordei revigorada. Falei que precisava ir para a maternidade. Ninguém levou muito a sério já que eu não aparentava sentir nenhuma dor. Era só eu avisar que alguém me levaria. Respondi que a hora era aquela.

De mãe para mãe

Minha mãe pegou a bolsa do bebê que estava arrumada havia alguns dias, me despedi de todos e fomos em direção ao carro.

Minha tia, mãe de três filhos, aproveitou o momento para me passar a última dica. Me disse que quando eu sentisse dor, na hora do parto, não gritasse. Que eu deveria usar a força para empurrar o bebê para fora. Assim tudo aconteceria mais depressa. Confesso que pensar nisso me deixou apavorada. Porém, o semblante em seu rosto de quem entendia sobre o que falava me transmitiu paz.

Já no carro, eu, minha mãe e o marido da minha tia seguimos para Santa Casa. Fui pensando no privilégio de poder ser atendida lá, já que era algo restrito a partos particulares e a pacientes que fizeram pré-natal com os estudantes de medicina da PUC, meu caso. Ilusão destruída em poucos segundos após chegarmos à maternidade. Por ser domingo não havia nenhum médico obstetra no local. O que primeiro chegaria só estaria ali no início da noite e ainda nem eram 14 horas. Não quis esperar. Eu tinha pressa, meu amor também.

Mãe e a maternidade

Após algumas ligações descobrimos que o único local possível de me atender naquele momento era o hospital que minha irmã batizou descarinhosamente de ”Coração de Sogra”. Para ela, pensar que Jesus pudesse ter um coração negligente seria algo inconcebível. Ir para aquele lugar era tudo que eu não queria. Pois naquele mesmo ano minha sobrinha tinha nascido lá. E nasceu roxa porque o médico esperou até o último momento achando que minha irmã conseguiria ter parto normal. Na verdade ele não achou, ele forçou para que isso acontecesse.

Como não tinha outro jeito, nos dirigimos até aquele local. Chegando lá fui avisada que não poderia ter acompanhante e que era proibido entrar com o celular. Sabíamos de tudo isso, mas fingimos surpresa. Isso porque minha mãe já tinha um plano. Nos despedimos e entrei acompanhada da enfermeira que se chamava Lúcia, mas que entendi ser Luzia.

Mãe e mães

No quarto em que fiquei já estavam mais três gravidinhas. Uma que conversava muito, mas dela não lembro muita coisa. Outra que conversava mais ainda, estava ali para dar a luz a seu quarto ou quinto filho. Falava que queria “parir” logo porque estava com pressa de voltar para casa para ficar com as outras crianças. Também estava preocupada porque mais cedo, ali no hospital, uma mulher havia dado à luz sozinha. Isso deixou a nós outras apreensivas também. Principalmente a Mãe 3, outra mãezinha que dividia o quarto conosco.

Ela tinha 18 anos de idade, pouco mais de um ano de casada. Casou-se com o primeiro e único namorado que conhecia da igreja. Nunca havia ido ao médico sem a mãe. Entre todas nós, era a mais desprevenida quanto às situações que poderíamos viver ali. Sem precisar dizer nada, nós mais velhas entramos em consenso de que deveríamos cuidar dela.

Uma hora depois, mais ou menos, alguém sussurrou na janela. Era minha mãezinha. Ela havia se escondido para contrabandear o meu celular, que já estava cheio de crédito, que a minha vovó havia recarregado. Aliviada, o escondi debaixo do travesseiro e avisei para as outras que teríamos como pedir socorro, se preciso fosse.

Comida

Uma senhora entrou no quarto empurrando um carrinho branco com quatro pratos: era a nossa janta. As meninas se empolgaram, eu não. Lembrei-me da tal lavagem e a fome passou subitamente. Minhas colegas estavam mesmo com fome. Eu nunca fui de reclamar de comida de hospital, mas aquela era impossível. Uma sopa de tomates mal cortados e formigas. Formigas mortas que flutuavam no caldo ralo.

As mamães demoraram para comer pois tinham o trabalho de afastar os insetos para o canto do prato. Me pergunto, até hoje, se aquele era o mesmo cardápio servido às mães de Enzos e Valentinas, aquelas senhoras que estavam na enfermaria particular e que muito provavelmente jamais entenderão o porque de algumas mulheres não desejarem ser mães.

Inferno

Comecei a sentir as contrações da luz. Uma dor horrível que se assemelha à vontade de ir ao banheiro. Chamei a enfermeira Lúcia, minha Luzia. Ela me apresentou o terror do evento: o toque. Também me explicou que eu devia evitar ir ao banheiro: muitas mulheres deixam os filhos caírem no sanitário por tanto se espremerem de dor.

As horas se passavam e o intervalo entre uma contração e outra ia se estreitando. Todas ali já estavam nesse processo de sofrimento e o quarto virou uma caixa de música com sinfonia de gemidos e gritos.

Por volta das 17 horas, a mãe experiente, a Mãe 2, foi levada para dar à luz. Algum tempo depois foi a vez da mamãe que conversava muito, a número 1. Ficamos apenas eu e a mãezinha 3. Ela, aparentemente não entendeu o que Luzia falou sobre o banheiro e ia para lá a cada 10 minutos. Mesmo também sentindo dor fui buscá-la algumas vezes pois sabia que a moça padecia mais. Com o tempo ela passou a gritar por socorro. Até que veio uma técnica de enfermagem que fez o toque nela e avisou que se ela continuasse fazendo o “escândalo” seria prontamente ignorada.

Mãe três

A Mãezinha 3 percebeu que era hora do “socorro” e pegou o celular para ligar para o marido. Tivemos o cuidado de lembrá-lo que não havia celular conosco e que aquela ligação nunca havia acontecido. Ela não parava de chorar e começou a ter sangramento. Apareceu um médico para fazer toque em nós duas e disse a ela que aquele sangramento era normal. Foi embora e nos deixou lá.

Menos de uma hora depois, coincidentemente, a família dela chegou na maternidade. Veio o jovem marido, a mãe, a sogra e até o pastor da igreja deles. E por incrível que pareça, fizeram os funcionários da recepção acreditarem que foi visita ao acaso. Se não acreditaram, fingiram bem. Como era proibida a entrada nos quartos, eles foram até o corredor. O que se justifica, já que as grávidas ficam praticamente nuas, apenas com uma camisola que deixa o bumbum de fora. Inclusive, no início da tarde, antes de começar a gritaria, nós quatro fizemos muita farra falando de nossas bundas lelês.

Voltando à parte da visita. A mãe e a sogra da jovem mãezinha entraram no quarto para nos acalmar. O pastor fez uma benção lá mesmo do começo do corredor. O marido dela estava muito emocionado e também precisou ser acalentado. Novamente ficamos sozinhas, mas ela passou a ser mais assistida. Toda hora alguém ia lá fazer o toque.

Coração de sogra?

Eram tantas pessoas e era tanta dor que já estávamos perdendo a noção. Quanto aos muitos toques minha irmã havia me avisado, lembrei dela dizendo que lá é o Coração de Sogra. Discordo em partes. Acho que é Coração de Cunhada. Até porque a sogra de minha colega de quarto tinha ido lá e demonstrado muita preocupação e sido carinhosa com ela e até comigo, a quem não conhecia.

De tanto sentir dor fomos nos acostumando. Mas já não conversávamos tanto uma com a outra e nos movimentávamos o mínimo possível.

Se aproximava das 21 horas. O Silêncio nos permitia ouvir o resto do hospital. A TV da recepção estava ligada no programa do Faustão. Gusttavo Lima estava se apresentando lá. Ouvi as músicas e a entrevista. O cantor falava sobre o seu corte de cabelo que havia virado moda. Aquele pavoroso que fazia todos parecerem bodes, com a franja lambida. Corte que ele fez questão de dizer que havia sido criado pelo Mike, que anos depois descobri ser o genro de minha vizinha.

Do corredor vinha o tititi das enfermeiras e do médico. A voz dele era conhecida por mim, havia sido meu ginecologista no início da gestação. Também foi ele que me encaminhou para acompanhamento especial na Santa Casa. Foi muito bom e atencioso comigo quando me atendia no CAIS do Bairro Goiá. Mas ali ele estava para atender suas pacientes que agendaram com antecedência e pagaram caro pelo parto. Por nós não havia muito que ele pudesse fazer além de esperar que tudo ocorresse naturalmente.

Na cama eu me contorcia e sentia os chutes enquanto conversava por SMS com a minha mãe, o pai da minha filha e com minha vozinha.

Do inferno ao céu

Pouco mais de uma hora da manhã de segunda-feira minha companheira gritou. Sangrava muito. Fui ao corredor e chamei por Luzia, que ia fazer o toque quando percebeu que o bebê já estava em momento de brilhar.

Então partiram as três para a sala de parto e do quarto ouvi os gritos dela que duraram alguns minutos, mas parecia uma eternidade. Em seguida o silêncio, seguido do choro do bebê. Respirei aliviada. Passado algum tempo a enfermeira Luzia veio me dizer que minha companheira estava bem e que já descansava com a filha na enfermaria.

Novamente sozinha com o meu bebê, me perguntava quando chegaria a nossa vez. A dor ficava insuportável. Eu senti a carne dos quadris ardendo e os ossos se abrindo. Tive medo de morrer. Perguntava a Deus o porquê dele me ter permitido chegar naquele momento para acabar daquela forma. Pedia que salvasse minha filha. Eu, que cresci sendo chamada de molenga por ter sido criada com minha avó, começava a acreditar que as pessoas tinham razão. Quando o relógio estava próximo a marcar 5 horas, senti algo escorrendo entre os meus quadris. Gritei por Luzia, que veio correndo. Nem ao menos fez o toque, a bebê queria ver a luz. Calcei meus chinelos e ela me pegou pela mão e me levou até a sala de cirurgia.

Me lembrei de minha tia. Segurei no ferro que ficava na altura da cabeceira da cama e comecei a fazer força. Quando forcei pela terceira vez apareceu o médico que se apressou em pegar um objeto cortante. Só vi quando um jatinho de sangue espirrou para cima. A dor ficou impossível de suportar e logo sumiu como mágica.

Céu

Ouvi minha filha que chorava sem parar. Chorava gritando. O médico a pegou nos braços e trouxe próximo ao meu rosto. Ela era linda, cor-de-rosa e tinha o cabelo espetadinho para cima. Outra enfermeira veio e me colocou numa maca e me levou até a enfermaria. Pelo corredor eu segui aliviada enquanto ouvia o choro da Luma. Já na cama, perguntei para enfermeira se minha pequena estava bem. Sorrindo, aquela profissional me respondeu que com um pulmão forte daqueles, não existiam dúvidas.

Minhas companheiras, que já estavam todas lá com suas crias, riram comigo. A dor que minutos antes queria me matar parecia nunca ter existido. Olhei para a porta e vi a Luzia chegando com a Luma nos braços. Vestida com uma roupinha lilás com estampa de coelhinho. Ao lado da minha cabeceira, um mini bercinho já a esperava, forrado com lençolzinho de coração que eu mesma comprei e lavei com sabão de coco.

Minha filha foi colocada no berço virada para mim. Ela segurava uma mãozinha na outra, pouco abaixo do queixo. Me encarava sem ao menos piscar. Eu contemplava sua beleza e a beleza da vida. Queria saber em que ela pensava. E eu pensava em como aquela criaturinha que agora dependia de mim sobreviveria. Talvez fosse nisso que ela pensava também. O cansaço me venceu. E com ela me olhando, em paz adormeci.

Minha filha e eu. Sobreposição de fotos.
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