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Após um resultado inesperado no primeiro turno, a Argentina volta às urnas para eleger seu próximo presidente em 19 de novembro. O segundo turno entre Sergio Massa, atual ministro da Economia, e Javier Milei, deputado anarcocapitalista, já era previsto pelas pesquisas eleitorais. Porém, o candidato governista conseguiu reverter a derrota para Milei nas primárias em agosto, ficando a 4% da vitória.
Há a expectativa de que a disputa final à Casa Rosada seja acirrada. A terceira colocada no pleito, Patricia Bullrich, anunciou apoio ao deputado contra o peronista. Isso rachou a coalizão Juntos Pela Mudança, pela qual concorreu em 22 de outubro.
O líder do partido A Liberdade Avança, Javier Milei, afirmou durante a campanha que pretendia restringir o comércio com o Brasil e a China, chamou o presidente Lula de “comunista raivoso” e “socialista com vocação totalitária”. Além disso, prometeu que a Argentina “seguiria seu próprio caminho” em relação ao Mercosul.
Sob os impactos de 138% de inflação nos últimos doze meses, desabastecimento de combustíveis e corrida cambial, Massa tenta se desvencilhar da crise econômica para superar seu adversário novamente. Milei tem o desafio de amenizar propostas radicais para atrair votos da direita tradicional.
Ximena Simpson – doutora em ciência política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pesquisadora e Secretária de Extensão da Escola de Política e Governo da Universidad Nacional de San Martín (UNSAM), na Argentina, e Coordenadora do Observatório de Economia e Política Brasil-Argentina (OBRA) – analisa o panorama político atual argentino com vistas ao segundo turno da eleição presidencial.
Victor Hugo: Quais são as principais diferenças que a senhora observa na eleição atual e em eleições anteriores na Argentina?
Ximena Simpson: A primeira diferença — a mais gritante, a mais objetiva — é a entrada no jogo político nacional de uma terceira força, né? Você via uma tendência nacional ao bipartidarismo, que não são partidos políticos, são duas coalizões que vem disputando o poder. E agora, a entrada de uma terceira força política com significativo poder. Já são três forças competindo nas eleições tanto proporcionais quanto majoritárias.
A segunda diferença, mais um pouco no caso também da maioria dos casos do mundo, é que, não só há a entrada de uma terceira força, se não também a entrada de uma força de extrema-direita. Na América Latina, isso é uma novidade. Bom, está acontecendo no mundo inteiro, mas na Argentina também é um outro diferencial das últimas eleições.
A senhora falou sobre a entrada dessa terceira força política. No Brasil, é comum uma comparação entre o Bolsonaro e o Javier Milei, que é essa nova força política que entrou na eleição Argentina. A senhora avalia como válido esse paralelo?
Eu acho que não. Eu acho que a política partidária, eleitoral, dos dois países é muito diferente a dinâmica e as instituições entre os países são muito diferentes. Agora, o que a gente pode comparar, sim, é a questão dos valores, né? Que a gente pode falar que as duas forças são forças disruptivas. Que elas vão contra dos valores das instituições democráticas, republicanas estabelecidas. Isso a gente pode colocar como um mínimo denominador comum, digamos assim.
Agora, tem um diferencial que tem a ver inclusive com as consequências de uma possível eleição do Milei, né? Que é a questão de como os partidos políticos se constituem como tais para serem governistas. No caso do Bolsonaro, você tinha um ator político com um discurso disruptivo, mas com atores econômicos e os militares também apoiando e dando mais base e mais condições de governabilidade ao governo Bolsonaro, mesmo que ele não constituísse um governo de colisão. São outras consequências. Mas ele tinha — em certo sentido — uma agenda econômica que era sustentada num discurso com um ator econômico legitimado pelo mercado.
E os militares também, dando uma base de apoio importante e legitimidade à eleição do Bolsonaro. No caso do Milei, você não vê isso! Você não vê um apoio de setores importantes na sociedade Argentina que vão além da figura — digamos assim — carismática do Javier Milei.
A quê a senhora atribui essa falta de apoio que o Milei tem em comparação, por exemplo, ao Bolsonaro?
Não é falta de apoio. Eu acho que ele não buscou esse apoio. Ele não se apoiou em nenhum ator significativo, nenhum grupo de atores políticos ou econômicos significativos para gerar esse movimento contestatário, de certa forma.
O caso do Bolsonaro, ele surge a partir do apoio dos militares e de setores da economia. O Milei é ao contrário: Ele surge como uma figura populista, única. Agora, no segundo turno, é que ele começa a ter mais apoio de alguns setores da sociedade, da política… Bom, tinha alguns economistas, mas não era uma força tão significativa como foi um no caso do governo Bolsonaro, porque o Milei também não tem um discurso, uma agenda liberal… Eu não quero falar ‘tão estruturada’, mas um, por exemplo, Guedes, né? Ele tinha um discurso estruturado. O Milei não conseguiu construir uma agenda, um discurso estruturado na economia como o Bolsonaro, sim, conseguiu. Quem conseguiu foi o Guedes, né? Porque o Bolsonaro, em si, não tinha ideia do que era economia, mas ele tinha o porta-voz dele que era o Paulo Guedes.
Um desses apoios aos quais a senhora se refere foi, por exemplo, da terceira colocada nas eleições, a Patrícia Bullrich. É provável que com esse apoio ele consiga unificar a oposição a ponto de superar o candidato peronista Sergio Massa?
Olha, isso aí é uma coisa que eu não posso te responder. [risos] A tendência lógica é que ele consiga, pelo menos, somar os votantes da Patrícia. Da Patrícia! Eu não acredito que ele consiga somar os votos de Juntos Por El Cambio, que a coalizão que ela representava. Porque essa colisão de direita também sofreu um racha muito contundente, que já vinha sofrendo um desgaste. Já havia tido uma briga interna, conflito interno bastante significativo. Mas agora com o apoio dela [ao Javier Milei], sem ter aberto ao diálogo com os outros participantes da colisão também gerou outra briga interna.
Então, eu acho que alguns, inclusive, dos votantes de Juntos Por El Cambio não vão votar no Milei. Podem votar em branco, podem anular o voto, alguns podem até ir para o Massa, mas não necessariamente vão para o Milei. Aí a base mais dura da Patrícia que, sim, vai vai migrar para o Milei, mas não é todo o Juntos Por El Cambio.
A quê a senhora atribui a vitória surpreendente do Sergio Massa no primeiro turno, que não era captada pelas pesquisas?
Algumas pesquisas captaram, sim. Aí eu acho que tem duas questões. Uma é a capilaridade do peronismo [movimento político que Massa integra]. E aí, também, o jogo que fez o governo nacional, o Massa mais enfaticamente, com os governadores. Os governadores nas PASO, as primárias obrigatórias, a sensação que a gente tinha é que eles tinham largado a mão. “Ah, virem-se”! Não queriam ficar conectados, não queriam ser ligados à situação econômica nacional. Então, parecia que eles tinham largado a mão. “Agora vocês se viram”. E nessa aqui teve, né?
No primeiro turno das eleições propriamente dito, aí teve um trabalho muito mais braçal, presencial, do candidato com os governadores. E aí, sim, também a força do peronismo na construção política nos níveis nacionais.
Ainda em 2021, a senhora, em uma entrevista à Revista Fórum, destacou a possibilidade de que uma aproximação entre o governo de Alberto Fernández e do então ex-presidente Lula poderia ajudar na popularidade do argentino. Qual o impacto que a senhora vislumbra, tendo em vista isso, que um apoio explícito do presidente brasileiro poderia dar a Massa nesse segundo turno?
Eu acho que o Lula teve um papel muito importante até a nível internacional, na política externa argentina, quando ele fez aquele apoio enfático do swap [tratado cambial] com a China num acordo com o FMI [Fundo Monetário Internacional].
O Milei tem um discurso que aparece muito com Bolsonaro muito contra a China e o Brasil. Então, os eleitores do Milei são aqueles que também acham que o governo brasileiro atual é um governo comunista, ligado aos valores que eles não acreditam. Agora, nitidamente, a figura do Lula internacionalmente é uma figura de um líder não tão à esquerda-radical ou extrema-esquerda, mas de um líder muito mais pragmático, politicamente mais central.
Então, eu acho que, sim, pode ser um fator de ajuda principalmente naqueles setores mais de centro e centro-direita, que tão olhando com mais ressabio a figura do Massa na eleição presidencial. Também vale se dizer que mesmo que o Massa faça parte de um projeto de governo kirchnerista [grupo político ligado à vice-presidente Cristina Kirchner], ele não vem do âmago do kirchnerismo, né? Ele não é uma figura que você identifique diretamente com o kirchnerismo. Então, isso também mais o apoio do Lula. O Brasil também quer que o Massa ganhe pelo projeto do Brasil em termos internacionais, regionais principalmente. Eu acho que pode ser um fator de apoio interessante para o Massa. Já tá sendo, né?
Como vislumbra as relações Brasil-Argentina num eventual governo Massa e numa eventual vitória de Milei?
Eu acho que, o Massa ganhando, é de cada vez maior convergência, né? O que, para mim, seria positivo para a América Latina. Principalmente para a América do Sul, seria muito positivo, principalmente na geopolítica atual com a China crescendo, um mundo muito mais multipolar, mas com outros tipos de conflitos mais fortes. Então, acho que a América Latina, a América do Sul teriam uma boa oportunidade de união com a vitória do Massa e a maior vinculação ao Brasil no caso da Argentina.
No caso do Milei, eu acho que aí seria um fator totalmente disruptivo, né? De conflito permanente, como ele mesmo disse, e de paralisação temporal — em certo sentido — nas relações bilaterais. Por que eu digo temporal? Porque a Argentina não sobrevive sem o Brasil. Então, vai chegar um momento que ou o governo do Milei cai ou ele vai retomar algum tipo de contato e de negociação com o Brasil, porque o Brasil é um dos principais compradores dos produtos argentinos. Então, eu acho que essa birra do Milei vai ter um limite, que vai ser a realidade, né? A necessidade do país, a necessidade econômica do país.
Então, a senhora constata como inviável a proposta dele [Javier Milei] de sair do Mercosul?
São duas coisas diferentes: uma coisa é Mercosul e outra coisa é a relação bilateral com Brasil. Eu não acho inviável ou impossível o Milei querer sair do Mercosul. O que, de fato, o Bolsonaro praticamente o fez, né? O que vai acontecer — com certeza — é uma ainda maior fragilização do Mercosul. Mas, o que eu acho, é que é um pouco utópico ele querer cortar relações com o Brasil se ele não quiser afundar a economia Argentina mais ainda.
A situação da Argentina econômica [sic] é muito delicada. Para quem quer que assuma, vai ser delicada. Para um discurso muito mais conflitivo, em termos da América Latina, e querendo negociar com pesos pesados muito mais complicados e com uma crise tão, tão profunda como é o caso da Argentina com os Estados Unidos. Eu acho que ele vai acabar se dando conta, né? A realidade vai acabar mostrando que ele não vai poder gerir uma política externa e econômica se afastando do Brasil. Mas não vai ser uma coisa cooperativa como seria com o Massa.
A senhora citou o fato do Sergio Massa não ser tão identificado, de origem, com o kirchnerismo. Foi muito comum durante o governo do Fernández ver embates entre a vice-presidente e o presidente. Acha que numa eventual vitória do Massa esses conflitos também se dariam, mas no âmbito parlamentar com o kirchnerismo tentando ser uma força contrária ao Massa no governo?
Eu acho que pode ser. Aí tem que ver o que eles podem capitalizar politicamente num eventual governo Massa, mas aí a gente tem que ver como é que a economia flui. A gente tem que pensar na Realpolitik, né? O que convém? Se convém se aproximar ou se afastar do governo Massa.
Eu acho que o Massa é um ator político muito independente. Eu acho que ele vai querer também capitalizar mais ainda num eventual governo. Se as coisas saírem bem, se ele conseguir realmente reverter minimamente a crise econômica, ele vai querer capitalizar para o seu grupo. Eu não acredito que ele vai querer dividir tanto êxito. De repente, fracasso, sim, mas não os êxitos com o kirchnerismo. Agora, se vai ter um embate com o Massa, tudo vai depender da questão de como vai andar a economia. Eu acho que eles não vão ser aliados siameses. Acho que não. Eles são dois atores políticos, dois grupos políticos diferenciados. O Massa veio do peronismo que, num passado recente, não se bicavam. Pelo contrário! O Massa foi muito crítico à Cristina. E isso surgiu também com uma oportunidade para os dois grupos. Massa dá a mão ao Alberto. O Massa entra no governo do Alberto para ele assumir como candidato a presidente como ministro da Economia.
Agora, você também tá vendo que a Cristina não tá se metendo na campanha, não tá atrapalhando. O que é um bom sinal também, né? Mas quando ela fala assim “esse aqui é o seu governo? Meu governo não é! Eu governei até [2015] antes de assumir o Macri.” Ela não se considera parte desse governo. Você vê a divisão também.
Durante as eleições, o ministro capitaneou uma série de pacotes de ajuda social, extensão do Estado de bem-estar social. Com inflação de 138%, agora enfrentando escassez de combustíveis em várias regiões do país, qual o principal desafio que a senhora acha que qualquer candidato vai ter que enfrentar a partir de 10 de dezembro quando o novo governo assume?
Olha, a questão da gasolina, tem duas questões: Uma é a questão da especulação, né? Porque o preço da gasolina tá subsidiado. Então, também, tem os que não querem vender gasolina, porque a gente tá produzindo, mas não querem vender pelo baixo preço. Também a falta de força política do governo de, digamos, pressionar para que libere a gasolina para venderem gasolina. Isso não é novidade na Argentina.
Por outro lado, olha, a gente não vai criticar políticas que deem um alívio à população, porque a inflação tá uma coisa bastante terrível. E como viver nessa situação inflacionária? Para a população mais carente é muito complicado, né? Então, são políticas que trazem um alívio, mas elas trazem um alívio no muito curto prazo e pioram a situação fiscal no médio prazo. Então, é aquele trade-off [dilema de troca].
A situação já tava ruim? Tá ruim! Vai piorar? Tá piorando! Tá piorando todo dia! Então, é o que eu te disse: quem vier assumiu o governo vai receber uma batata quente, bastante quente! Vai receber uma situação econômica muito complicada. Então, esses planos, essas IFES, esses subsídios não são de muita servidão, no caso da situação econômica, mas tendem a piorar o buraco fiscal da economia.
Há algum fator que a senhora antevê como chave nestas duas semanas finais de campanha?
Eu acho que tem uma variável que a gente não pode deixar de pensar que [é] o avanço da extrema-direita, dos valores mais conservadores, o que a gente chama mas iliberais da política, né? A gente tem que pensar que é “Como As Democracias Morrem”, que a gente já viveu no Brasil um pouco. Esses perigos dessas mudanças.
A gente está vendo que essa força política tá crescendo no Congresso Nacional, tá crescendo nos governos subnacionais. Então, o desafio da democracia não acaba com essa eleição, né? Então isso já é um fato concreto. O partido do Milei ganhou muitas cadeiras no Congresso, ganhou representação no Senado, não ganhou o governo providenciais, mas ganhou cadeiras nas assembleias legislativas e ganhou eleitores, né?
Então, a gente tem que prestar atenção, né? Democracia a gente quer e fortalecer os partidos que a gente tem. Os partidos tradicionais, os partidos que apostam nas regras da Democracia. Então, não importado se são de esquerda ou são direita. Nesse momento, o que importa é que sejam comprometidos com os valores da democracia, da pluralidade da Democracia. Então, acho que isso é a questão mais crucial agora, né?
E a questão da economia. Vamos ver o que que se pode fazer. Eu acho que uma possível vitória do Milei é, realmente, um salto no vazio, né? É uma pessoa sem uma estrutura de governo com uma agenda econômica bastante irrealista, fora das possibilidades do que se pode fazer realmente em termos de economia. E do outro lado, é o governo que já nasce fraco, com uma situação complicada. Então, temos um cenário muito, muito, muito ruim e temos um cenário ruim. Mas esperamos que, no ruim, a democracia vença.