O ‘Autismo Leve’, que de leve não tem nada: entenda as várias faces no cotidiano de pessoas autistas

‘Autismo leve’, como erroneamente é chamado o autismo nível um de suporte, é apenas uma das várias realidades dentro do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Entenda as diversas verdades que rondam indivíduos com autismo, seus direitos e como melhor compreendê-los
Tempo de leitura: 18 min

O autismo não é um espectro simples e literal em suas camadas. Revela-se de diferentes formas, muitas vezes silenciosas, como um quebra-cabeça de fragmentos que ainda buscam ser compreendidos. E, é exatamente esse entendimento que grande parte da sociedade ainda desconhece e está em busca, um ato fundamental que promove conscientização, empatia e inclusão para todos.

Dados da ONU e CDC (Centro de Controle e prevenção de Doenças)
Infográfico: Natália Eduarda

As informações presentes no infográfico sugerem que o conhecimento sobre o TEA, apesar de difundido e buscado por especialistas e profissionais da saúde, ainda é pouco preciso. Informações como a quantidade de pessoas que fazem parte do espectro ainda são imprecisas, já que muitos desses indivíduos não têm consciência de suas condições, fora informações que são compartilhadas cheias de estigmas e mitos referentes ao assunto. Portanto, é salutar a busca por compreensão, para que assim, a inclusão e os estigmas associados ao autismo não gerem mais preconceitos descabidos. 

Mitos e equívocos

O primeiro equívoco a ser esclarecido quando se pensa no autismo é a nomenclatura do termo “portador”. O autismo não é uma doença, mas sim um transtorno do neurodesenvolvimento. Sendo assim, não tem como a pessoa com autismo ser portadora, e, em virtude disso, também não há “cura”.

Os termos “autismo leve, moderado e severo” são equivocados, simplistas e deslegitimadores. Pois, induzem a pessoa sem muito conhecimento sobre o assunto, a crer que as dimensões para o diagnóstico são as mesmas em todos os casos e não individuais, como também, pode fazer com que o indivíduo fora do convívio do espectro subestime ou superestime as habilidades da pessoa atípica. 

Os termos “nível um, dois e três de suporte” são hoje os corretos a serem usados. Pois assim, buscam quebrar com as barreiras que modalidades como “leve” ou “grave” impõe no grau de necessidade de suporte que um neurodivergente possa necessitar, trazendo consigo, sua própria individualidade.

Infográfico: Natália Eduarda  |  DADOS: Escola do Autismo

Sim, transtorno do espectro autista está incluso na categoria de deficiência, visto que, nada mais é do que ter um desenvolvimento limitado em determinadas atividades. A psicóloga especialista em autismo e terapia ABA [abreviação para Applied Behavier Analysis, conhecida como análise do comportamento aplicada] Viviane Sena, comenta:

“Atraso na fala, baixo contato visual; comportamentos rígidos e repetitivos; não atender pelo nome quando chamado; irritabilidade, baixa interação com os pares, andar nas pontas dos pés e seletividade alimentar são aspectos muitas vezes presentes no desenvolvimento de crianças atípicas”.

Entretanto, é bom ressaltar que não necessariamente todas as pessoas com TEA terão todos esses comportamentos. Entender esses fatores interrompe a generalização e os estereótipos que circundam as pessoas no espectro, tal quebra de senso comum facilita a auto-aceitação de pessoas diagnosticadas tardiamente, comum em casos de nível um de suporte. 

“Consigo observar nas pessoas que receberam o diagnóstico tardio como se fosse uma sensação de liberdade, de entender muitas questões emocionais e comportamentais que não tinham respostas”.

E acrescenta: “Após o diagnóstico é possível entender, se aceitar e muitas vezes serem aceitos”. 

 Mãe-geladeira

Fora do estigma associado diretamente às pessoas atípicas, há o mito referente à causa. 

No início das pesquisas destinadas ao assunto, o psicanalista Leo Kanner, o primeiro a descrever o autismo, usava o termo ‘mãe-geladeira’ para descrever mães de crianças autistas, colocando a responsabilidade pelo autismo de seus filhos na maneira que eram tratados. Destacando a frieza e distância que essas mães tinham para com seus filhos.

Ainda há comunidades que acreditam nessa ideia, julgando que tal condição é responsável por uma falha na função materna. Tal tentativa de explicar a gênese do autismo foi desmistificada diante da total falta de embasamento teórico científico.

As causas do TEA incluem fatores genéticos e ambientais. Fora que o fato de que o diagnóstico só poder ser realizado após os três anos de idade é mentira, a Associação de Amigos dos Autistas (AMA) fala sobre o diagnóstico ser possível logo entre o primeiro ano de vida e os seis meses após o primeiro aniversário. 

‘Penso que ainda precisamos caminhar muito para conquistar o que intitulamos de inclusão’ diz coordenadora do núcleo de acessibilidade 

Ana Flávia Teodoro, coordenadora do Núcleo de Acessibilidade da Universidade Federal de Goiás (UFG), comenta sobre a inclusão de pessoas com alguma neurodivergência no meio educacional. Com observações a fatores que frequentemente são negligenciados, também, fala sua visão sobre alguns pontos necessários para uma promoção mais justa e igualitária no âmbito educacional.

Reprodução: Freepik, com edição de Natália Eduarda

No que diz respeito à inclusão nas escolas, principalmente com pessoas autistas, a segregação é defendida por muitas instituições e não a busca por integração:

“A escola ainda continua segregando os estudantes autistas na sala de aula, sempre pautados na premissa de que não tem preparação para incluí-los. De maneira geral, ouvindo o relato dos pais e dos estudantes, penso que ainda precisamos caminhar muito para conquistar o que intitulamos de inclusão.”

Acrescenta: “Os professores precisam receber também formação na área de comunicação alternativa, pois muitos autistas que estão na escola são não verbais e precisam de um suporte para se comunicarem na sala de aula”, diante de sua preocupação principalmente com alunos atípicos nível dois ou três de suporte.

E, os alunos com nível 1 de suporte? 

O estudante autista nível um de suporte muitas vezes é visto no ambiente escolar com desconfiança. Isso ocorre tanto pela falta de preparação adequada por parte dos responsáveis em promover sua educação, como também há um descrédito da sociedade que acredita que por suas características serem leves, ele mesmo pode se adaptar.

Todavia, em meio ao ambiente escolar e qualquer outro, esses alunos demandam um tipo específico de apoio. Para Ana Flávia “a escola precisa estar atenta aos autistas nível um, buscando considerar suas necessidades e especificidades”.

Como também, para ela: “O sujeito autista nível de suporte um vive muitas vezes uma angústia muito grande. Pois apesar de precisar de pouco suporte, o suporte é necessário.”

Diante disso, os sinais para identificar e saber atender às necessidades dessas pessoas são essenciais. São muitos para educadores diagnosticarem por si próprios, mas ressalta que observar as questões da socialização na escola é um ponto muito importante.

“Os autistas nível um sofrem muito bullying por conta de comportamentos considerados como excêntricos ou atípicos pela sociedade.”

A importância de reconhecer os sinais: ‘Eu não conhecia o autismo em si. Porém eu já tinha sido babá, eu sabia o desenvolvimento de um bebê típico’

Amanda Massoni é mãe de uma criança atípica, que nos dois primeiros anos de idade foi diagnosticada pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) como autista de grau moderado a severo, hoje nível de suporte dois a três.

“Eu sabia o desenvolvimento de um bebê típico. Porém o Bê [seu filho Bernardo] não me olhava nos olhos quando mamava, só que pensei ‘cada criança é um jeito’ mas ficou ali um alerta pra mim”.

Amanda comenta sobre as orientações que recebeu de sua mãe, que desconfiou de alguns comportamentos feitos por Bernardo, o que fez com que ela [Amanda] fosse em busca de entender melhor suas suspeitas.

‘Foi a primeira vez que ouvi essa palavra assim’: O desafio encarado

O período que a motivou a buscar por respostas foi resultado de um passeio ao shopping de sua mãe com Bê, ela voltou comentando que “desconfiava que ele poderia ser autista”. Isso girou a chavinha da dúvida e a fez ir atrás de uma neuro [médica especialista em doenças cerebrais e da medula espinhal], mas antes, pesquisou na internet sobre o assunto

“Foi a primeira vez que ouvi essa palavra assim. Eu tinha escutado sobre, porém, sempre distante. Não sabia, profundo, o que era. Chorei demais! Passei a noite pesquisando sobre e tudo que dizia parecia ser destinado a ele. Por isso, com um ano e três meses levei ele em uma neuro pela primeira vez”. 

‘O autismo não tem aparência física’

Amanda comenta a importância de compreender os sinais que uma pessoa autista apresenta, pois é fundamental para evitar julgamentos e acabar com preconceitos.

“Vou dar o exemplo do meu filho: quando você olha pro Bê não vê nada. Porém, se você observar, é nítido ver que ele não tem muito contato visual, anda muito na ponta do pé…fora mais algumas características que ele tem que dá pra notar.”
 Bê na pontinha do pé | Foto: acervo pessoal

Acrescenta a necessidade de entender que o autismo é um espectro. Isto é, cada um tem suas características, sendo diferentes ou comuns. As mais comuns como contato visual, balançar, andar na ponta dos pés, pular, não gostar de contato físico ou barulho é um indicativo que demonstra o TEA. Perceber esses sinais é muito importante para Amanda, que viveu na pele o julgamento de pessoas que não compreendem o autismo e não souberam identificá-lo.

Em 2020 ela foi acusada nas redes sociais de maus-tratos ao filho e de levá-lo para os lugares em uma coleira, tudo porque ele estava usando uma mochilinha-guia. 

acusada de mexer no celular, enquanto o filho está em uma coleira
Foto: reprodução facebook

Para ela, foi uma coisa surreal que não imaginava que um dia iria acontecer. Tudo isso, em virtude da não compreensão da condição do autismo. E reforça quando diz da necessidade das pessoas identificarem, já que o autismo não tem cara.

“Eu via naquela mochila, uma forma de sair com ele em paz, sem perigos para ele e com proteção. E alguém me fotografar, me acusar de uma coisa tão absurda. Foi devastador! Tive que passar por psicólogo, porque não acreditava que alguém pensava que eu poderia fazer mal para a pessoa que mais amo na minha vida.”

Identificação precoce: Os benefícios que o diagnóstico cedo tem

 Cada letra foi um degrau | Foto: Acervo pessoal

“O diagnóstico cedo mudou meu filho completamente”, declarou.

“Começamos as terapias cedo e eu não tinha muitos recursos para pagar por elas. Ele fazia uma vez por semana na APAE. Eles são maravilhosos no que fazem e ajudou muito! Hoje o Bê tem 7 anos e passou do suporte dois e três, para o nível um e dois… aumentou o vocabulário, aprendeu muitas coisas e vai conquistar muitas outras”.  

E, é realmente possível esse salto de níveis de suporte?

A psicóloga especialista em autismo, Viviane Sena, comenta que sim: 

“É possível com a ciência ABA e intervenções com base em evidências. Autistas nível três de suporte podem migrar para nível dois e até mesmo o nível um. Do mesmo modo que autistas nível de suporte um, sem tratamento adequado, podem aumentar suas limitações sociais e migrar para o nível dois”.

A importância da terapia domiciliar

As Terapias continuam em casa | Foto: Acervo pessoal

Como a psicóloga Viviane Sena falou “sem tratamento adequado as limitações podem aumentar”, para Amanda a terapia é como uma escada em que todos os dias um degrau é alcançado.

“Ele ainda não é verbal, fala algumas coisas, mas não troca diálogo. Mas imagina ele sem terapia todo esse tempo?”

E, em virtude disso, buscou fazer parte, também, nessa evolução e realizou o curso “AT Assistente Pais Terapeutas”. Porque para ela as terapias continuam em casa.

Autismo em adultos: Diagnóstico tardio

Amanda Cristina, 25, desde pequena foi taxada por outras pessoas como estranha ou fresca em alguns pontos. Ela mesma se sentia diferente comparado aos demais e não entendia o porquê de ser como era.

O autismo nunca passou por sua cabeça, principalmente porque, na época, sua visão sobre o assunto se limitava ao TEA de suporte alto, como também que o autismo só afetava meninos [um mito]. Diante de sua incompreensão por suas atitudes, ela buscou ajuda médica e foi diagnosticada com borderline e bipolaridade, devido à falta de conhecimento de muitos profissionais em como o autismo se manifesta em garotas.

Entretanto, posteriormente, descobriu-se que muitas mulheres com esses diagnósticos eram, na verdade, autistas. Com isso, no último ano, graças às pessoas autistas que criam conteúdo, ela percebeu que se encaixava muito nas características e procurou uma psiquiatra com histórico profissional voltado ao TEA.

“Meu diagnóstico veio no começo desse ano, e foi como se tudo na minha vida finalmente fizesse sentido”.

Diante disso, situações que vivenciou no passado foram iluminadas:

“A própria universidade, eu entrei em 2018, e todos os meus amigos se formaram durante a pandemia. Eu fiquei péssima, porque eu não consegui, eu não conseguia estudar em casa. Nunca consegui. Eu me sentia preguiçosa e fracassada porque todos conseguiam e eu não”.

Acrescentou: “Quando veio o diagnóstico, eu comecei a pesquisar mais sobre. Descobri que o que me impede de estudar em casa desde criança é a minha rigidez cognitiva. Entender isso foi libertador”.

Não diferente de Amanda, muitas pessoas têm questões sobre situações que vivem e não entendem. No qual, frequentemente, por não se encaixar em todos os aspectos envolvendo o espectro autista, creem que não fazem parte dessa comunidade.

Prejuízo na comunicação e falta de definições mais claras, faz com que muitas pessoas neurodivergentes tenham dificuldade de se enquadrar e acreditar que fazem parte do TEA. Tal situação foi vivenciada por Amanda:

“Eu passei muitos meses me encaixando em vários sintomas. Mas, o único que eu achava que não me encaixava era no prejuízo social, pois eu sempre falei muito, e na minha cabeça pessoas autistas não gostavam de falar socialmente e não eram muito comunicativas”.

O impacto nos relacionamentos: Como isso afeta quem teve um diagnóstico recente?

“Não é fácil um diagnóstico tardio. As pessoas próximas não acreditam que você realmente é autista. Elas vão exigir que você continue mascarando tudo e continue tentando ser como elas. Tudo isso para se encaixar nesse padrão engessado” declarou Amanda.

Para ela foi como tirar a máscara que usou durante 23 anos, foi deixar de pisar em um chão de vidro em suas relações. Todavia, ainda há situações que a deixam desconfortável e magoada, principalmente com pessoas que já a conheciam antes de sua descoberta. No entanto, os amigos que conheceu após o diagnóstico mostraram-na a importância de se conhecer e respeitar.

“Foi mais fácil com amigos novos que eu fiz depois de saber o diagnóstico. Já alguns amigos mais antigos que estavam acostumados a me ter mascarando tudo… Bem, eles chamavam minha atenção, faziam piadas. Como uma vez que eu estava com um brinquedo sensorial meu, e tendo muito a colocar esses brinquedos nos lábios. Minha amiga fez uma piada falando que crianças superam a fase oral aos dois anos, e que eu estava atrasada.”

“Ela falou isso, o que me deixou sem chão na hora e muito magoada. Porque tem muito esse lance de nos taxar como infantis por determinadas coisas, e isso é bem chato.”

Para finalizar, aconselha as pessoas que como ela, busque ajuda profissional, caso estejam enfrentando o limbo da dúvida. Evitar autodiagnósticos e não invalidar seus próprios sentimentos é fundamental nesse processo, uma vez que é o caminho mais claro em direção a se entender.

Promoção de leis e dos direitos: O que precisamos saber para garantir o acesso

Raphael Vilela, advogado especialista na defesa dos direitos e inclusão, orienta sobre normas que consolidam e fortalecem a proteção dos direitos das pessoas com autismo. Como também, responde dúvidas que responsáveis ou jovens adultos recém-diagnosticados possam ter. 

Aos pais que buscam a participação integral de seus filhos no ambiente escolar e se veem barrados pela própria instituição, que defende não ter as ferramentas necessárias para atuar na formação de uma criança autista. Há a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) da Pessoa com Deficiência (PcD) que defende a inclusão de todas os PcDs.

“As crianças com autismo têm o direito de serem matriculadas em escolas regulares, com a oferta de atendimento educacional especializado (AEE). Este atendimento deve ser individualizado e complementar à formação oferecida em classes comuns. Além disso, a LBI proíbe a discriminação e estabelece que a educação inclusiva é um direito de todos.”

A questão da educação é um desafio recorrente para muitos responsáveis, como também aos próprios indivíduos no espectro que buscam integração social. No entanto, não só esse direito muitas vezes é negado, igualmente o acesso à saúde e tratamento adequado também é. Esse último problema é muito comum especialmente em situações envolvendo autistas nível um de suporte e é sobre isso que o advogado Raphael Vilela irá defender:

“O acesso a serviços de saúde, tratamentos, terapias e medicamentos para pessoas com autismo deve ser garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), independentemente do nível de suporte. Todos têm direito a receber assistência, de acordo com a recomendação médica individualizada. Em outras palavras, o acesso à saúde independe do nível de suporte.”

Acrescenta: “Se houver negligência no atendimento devido ao nível de suporte, é fundamental buscar orientação legal e as medidas adequadas.” 

Recomenda-se então, que o responsável busque orientações com advogados especializados em direitos da pessoa deficiênte. Para assim, entender quais seus direitos diante de determinada situação e, em virtude disso, garantir o acesso a eles.

Livro que retrata de forma prática e com linguagem acessível os principais direitos dos autistas 
          Foto: Raphael Vilela, uso autorizado.

Explorando de forma lúdica e acessível

Entender sobre o TEA pode ser realizado com essa listinha que vai de filmes à livros, segundo sua preferência:

  •Uma viagem inesperada, filme protagonizado por Zac Efron, no qual mostra a dificuldade enfrentada por autistas no início dos anos 2000.

  • Sounding The Alarm, documentário produzido pela fundação de pesquisa e conscientização do TEA;

  • Neuro Tribes, livro que mostra a visão histórica e cultural do autismo;

  • Atypical, série que mostra de forma intimista uma das realidades envoltas no espectro;  

Cartilha- TEA, cartilha informativa com compreensão clara.

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