Não É Não: Sem consentimento nem morta

Cida Alves, psicóloga, ativista e fundadora do Bloco Não É Não, fala sobre a cultura do estupro e explica como a sociedade patriarcal perpetua a banalização do corpo da mulher
jan 12, 2024 , ,
Tempo de leitura: 15 min

Bastante recorrente no movimento feminista, a expressão “cultura do estupro” voltou aos trending topics do Twitter após participantes do Big Brother Brasil 2024 fazerem declarações contra as roupas transparentes de outra participante, com a justificativa de terem “medo de olhar errado”.

Recentemente, outro caso tomou repercussão, quando um ex-militar e professor de cursinho descreveu em um vídeo uma situação de abuso contra cadáveres de mulheres, incitando a prática de necrofilia. O caso dividiu opiniões nas redes sociais, alguns internautas alegam que o discurso não deveria ter sido levado a sério, porque foi um comentário para ser “levado na esportiva” ou que as falas foram retiradas de contexto. O ex-militar se pronunciou após o vídeo viralizar e ao justificar seu comentário disse: “se está morta não é mulher”. Veja o vídeo na integra: (conteúdo sensível)

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Vamos lá. O exemplo fornecido pelo @evandro_guedes tipifica a conduta do artigo 212 do Código Penal: Vilipêndio a cadáver Art. 212 – Vilipendiar cadáver ou suas cinzas: Pena – detenção, de um a três anos, e multa. Vilipendiar significa desprezar, ultrajar. Trata-se de um crim£ de execução livre, ou seja, pode ser praticado por qualquer meio, inclusive pelo ato de praticar s€x0 com o cadáver. Não confunda, não existe um tipo penal de necrof!@. O tipo é de vilipendio ao cadáver. A n£crof!li@ é um transtorno, uma parafilia, objeto de estudo lá na medicina legal. Quanto a conduta do Evandro de usar esse exemplo, ela é atípica. Sim, não existe crim€! Mas professor, é o artigo 286? Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crim€: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa. Esse artigo exige do sujeito ativo o dolo ( vontade e consciência) de incitar as pessoas a cometerem crim£. Para isso, é necessário uma seriedade do agente com essa finalidade. O que claramente não ocorreu no vídeo, onde ele usa o exemplo ( de gosto questionável) mas com finalidade didática, e não com que o alunos saíssem dali procurando um cadáver para molestar.🤦🏻 O @felipeneto deve estar sem assunto para desenterrar um vídeo de 2016 para tentar gerar polêmica.🤦🏻 E vocês? O que acham? #concursopublico #evandroguedes #carreiraspoliciais #concurso

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Cida Alves, é psicóloga, Doutora em Educação e pioneira no atendimento psicológico de mulheres vítimas de violência sexual em Goiânia, é ativista no movimento feminista e criadora do Bloco Não É Não.

O Bloco já atuou em diversas causas pelo Brasil. Foto/Acervo pessoal: Cida Alves

Tainá: Para começarmos, como você descreveria a cultura do estupro e qual o seu impacto na sociedade atual?

Cida: Precisamos entender como é cruel a estrutura social, entender que não é uma pessoa que tem um desvio, não é um elemento de uma psicopatia, de uma dificuldade no plano psicoemocional. Existe uma lógica que se perpetua no nosso modelo de sociedade patriarcal, que coloca a mulher como ser subalternizado durante séculos. Há somente 150 nós somos reconhecidas como seres portadores de alma, éramos e ainda somos vistas como objeto para atender as necessidades dos homens.

Essa posição gera uma ferida inicial nas mulheres, que é a ideia de inferioridade, isso se categoriza como violência simbólica construída a partir de uma violência psicológica. O que mais ouvi das mulheres quando falavam sobre a violência brutal, de serem tomadas como objeto, serem invadidas- na maioria das vezes no ambiente doméstico e o autor da violência normalmente alguém de muito vínculo com a pessoa- é a respeito da invalidação da vítima, em que as pessoas desacreditam do estupro ou tentam desresponsabilizar o autor da violência, com discursos como: “ele é homem, não se controla mesmo, é você que tem que tomar cuidado!”, “se você denunciar essa pessoa, vai destruir a família.”, “essa pessoa precisa de um tratamento, deve ter alguma perturbação e não domina os seus próprios atos.” Então tudo isso, que chamamos de cultura do estupro é devastador para o século XXI.

A maioria das vítimas são crianças e adolescentes e acontece dentro do círculo familiar, então o poder do autor é absoluto e a vítima passa muito tempo sem entender o que está acontecendo. No primeiro momento, ela não vai distinguir o que é um contato carinhoso de um violento. Depois que ela entende o que é isso, vem um sentimento muito mais forte de culpa e medo. Quando ela consegue elaborar que foi uma violência e que ela era a vítima, e então pede ajuda para alguém que ela elegeu como uma pessoa confiável e que espera que vai tomar uma atitude protetiva, acontece justamente o contrário, causando uma segunda ferida, que considero a mais devastadora. Essas meninas e mulheres acabam sendo isoladas e abandonadas, fogem da violência sexual familiar e futuramente acabam sendo exploradas na rede de prostituição.

Então a cultura do estupro, começa nessa base que constrói essa divisão entre homem e mulheres, que isenta o homem da responsabilidade sobre seu comportamento sexual, colocando-o como um caçador nato que a mulher precisa servir e que seu comportamento ou a forma de se vestir justificam o ato. E isso é reforçado no discurso de todas as instituições. Já enfrentamos muita violência ligada à instituições religiosas, vários escândalos de padres que abusavam de crianças já foram revelados, mas a instituição para manter sua autoimagem, esconde essas histórias e protege o autor. O mesmo acontece no ambiente familiar e nas escolas.

Tainá: Você citou algumas instituições sociais, mas na sua opinião existem instituições jurídicas que dificultam o trabalho de prevenção de abusos contra mulheres e meninas? Se sim, por que isso acontece?

Cida: Existem sim. Quando comecei meu trabalho em 96, estava se instituindo uma política de atenção às vítimas de violência, começamos com a contracepção de emergência no município, o que é um avanço para as políticas públicas, bem como campanhas contra a exploração sexual juvenil. Mas houve também resistências. Para que a vítima de estupro pudesse receber uma contracepção de emergência e caso fosse comprovado a situação, o aborto é previsto em lei. Vejo situações muito piores atualmente do que quando comecei. Autoridades públicas tentando intervir para que uma menina de 10 anos, vítima de estupro, não tivesse direito ao procedimento que é previsto em lei desde 1940.

Existe toda uma “unha” especial ligada as forças especializadas religiosas, um movimento contra o avanço das grandes políticas que protegem meninas e mulheres. É duro também para a vítima ter que ir à delegacia contar o que aconteceu, fazer o exame de corpo delito sem sofrer revitimização, sem ouvir coisas absurdas. O caso citado anteriormente, no qual a menina foi estuprada pelo padrasto, a mãe o expulsou de casa e foram juntas fazer os procedimentos necessários, até a avó intervir para que o direito fosse negado e colocado a menina em um abrigo para passar o tempo que elas entendem que impediria o aborto legal, sendo que do ponto de vista jurídico, a interrupção no caso de estupro é um direito em qualquer fase da gravidez. Então essa ideia de que a vida da vítima não importa, mas sim a de um ser que ainda não está concebido, alinha a cultura do estupro ao não entendimento do Estado Laico e promove uma violação do direito das vítimas.

Do ponto de vista de outras estruturas, em especial na educação, porque a educação é o principal fator de prevenção primária nas situações de violência sexual. Só o fato da criança estar em um ambiente escolar, já tem uma forma de proteção dessas crianças, que normalmente 80% dos casos acontecem no ambiente familiar. Ela entenda o que está acontecendo, só o fato dela estar na escola, conviver com outros tipos de estruturas familiares, de relações com as outras crianças ou com outros alunos, ela já pode ter um parâmetro diferente, ela pode vir trazer a tona a denúncia. Mas começou a se estruturar outras políticas no campo da educação em grupos que era de educação sexual para prevenir as violências.

Tainá: A respeito de casos específicos, o vídeo envolvendo um professor de cursinho falando com naturalidade sobre estupro de mulheres mortas teve uma grande repercussão recentemente. Por que para alguns parece aceitável esse tipo de afirmação de “se está morta não é mulher”? O que explica isso?

Cida: Primeiramente, a violência nunca é originária de um único fator certo, então, jamais se pode justificar a violência por um único fator. Por exemplo, uma psicopatia uma parafilia que é parafilia que é pessoas que desenvolvem um desejo por corpos que não estão maduros, sem pelos, sem seios, é um transtorno mental. Agora a respeito da visão de usar um corpo independente de suas condições e da dignidade, é uma construção cultural. Eu vou reforçar isso: não vamos entrar em uma lógica de psicopatologizar um autor de violência, eu sou psicóloga, mas sou radicalmente contra essa abordagem, pois a considero antiética e anticientífica. Se pegarmos todos os autores, há uma parcela muito pequena que associa a prática à violência. O que está presente é uma construção do sujeito no aspecto psicossocial em que ele desenvolve a sua afetividade ligada à sexualidade. Uma visão de que ele sobrepõe o outro, de que determinados corpos podem ser usados para sua própria vontade, construindo uma lógica do poder, que não é uma disfunção do ponto de vista psíquico, mas uma construção social.

Há pessoas que são oportunistas, se houver a oportunidade de manipular sexualmente uma criança, outras pessoas vão desenvolver isso em nível muito elevado, com requinte de crueldade de sentir prazer com o corpo do outro, que já é um nível de perversão muito intenso. Então, em toda prática de violência existe um sadismo, ir contra a vontade do outro em todo o seu desejo, mesmo sabendo que o outro vai sofrer com isso, que trará consequências de sofrimento na sua vida. Isso controla a pessoa e organiza para ter o seu desejo de uma forma diferente, embora existam pessoas que o grau e o prazer é o próprio sofrimento, são pessoas como esse professor- que não deveria nunca ser chamado de professor, porque a gente tem muito respeito à educação e amamos muito os professores e as professoras- ele tem traços mesmo de um sociopata, que não é uma doença nem é um transtorno, é uma deformação da personalidade, a pessoa não consegue desenvolver na sua estrutura o valor moral do que é certo ou errado do ponto de vista do que a gente pactuou socialmente, só que ela não sente culpa. Independente de qualquer situação, ela vai manipular pessoas para benefício próprio. Mas nem nessa categoria, eles são a maioria dos autores, a maioria fazem porque podem. Existe uma frase que ilustra bem esse assunto e aparece diversas vezes nos atos da luta pela igualdade de gênero: “o estuprador é um filho saudável do patriarcado”. O filho que foi construído para objetificar corpos de mulheres, crianças e pessoas de determinadas etnias.

O modelo de comunicação precisa ser repensado a longo prazo. Tem uma teórica que discute muito bem esse tema, que é como a imagem da vítima e a imagem do autor da violência é apresentado nos meios de comunicação, ela fala que a estrutura psíquica desses autores têm valores distintos do que a gente imagina, então ao expor o autor, ao falar com detalhes do crime que ele cometeu, exibir imagens da mulher machucada, mostra que ele conseguiu êxito na morte. A maioria das vítimas dos atentados nas escolas são as meninas e quem são os autores são os meninos. Então esse tipo de de espetacularização da morte da mulher ou da violência contra mulher tem um efeito contrário.

Então o que eu observo esse descuido da notícia ou da denúncia ao não preservar a imagem da mulher, as vezes isso acontece com as melhores intenções, por exemplo, nós tivemos aqui em Goiás um caso recente que foi o estupro daquela moça miss, né? A mulher trans que foi estuprada pelo pelo delegado, na notícia do jornal o corpo dela está anônimo, mas no dia seguinte um amigo muito gente boa para para se solidarizar, coloca a foto dela.

Tainá: Houve também outro caso da prisão de um suplente de vereador suspeito de estuprar garotas de programa. Poderia nos explicar por que a sociedade naturalizou o estupro contra essas profissionais?

Cida: Elas são profissionais do sexo. Elas são profissionais. Elas vão dizer o que pode e o que não pode. A mulher pode estar nua na cama, começou uma relação, se falou “não”, acabou. Só que as mulheres na nossa sociedade patriarcal são dividas, até para ter uma uma enfraquecimento da união, que são as mulheres respeitáveis e as mulheres não respeitáveis. Se constrói uma ideia de que as mulheres respeitáveis mantêm o comportamento “moral”, se elas não “provocam” não leva a esse tipo de violência das que são consideradas desrespeitadas. É aquela mulher que estava vestida inadequadamente, aquela mulher que não deveria estar naquele lugar, então é como se fosse normal, ela mereceu. Esse é o conceito da cultura.

As mulheres que avançam na sua liberdade, ou seja, as mulheres que avançam no espaço público, que avançam na sua decisão do que elas querem ou não querem. O estupro funciona como um mecanismo de controle pelo medo e disciplinamento em alguns países, isso é muito evidente, mas não quer dizer que isso não aconteça aqui, então, por exemplo os estupros corretivos, que a mulher tem uma orientação sexual que deseja outras mulheres, se comete estupro coletivo, para que ela volte a gostar de homem. É isso a gente tem aqui na nossa sociedade, bem como existe na cultura indiana os estupros com mulheres que avançam e estudam, existem grupos que se organizam para cometer um estupro para serem punidas.

Tainá: Para finalizarmos, gostaria que comentasse mais Bloco Não é Não, como e quando surgiu e o qual objetivo?

Cida: O Bloco surgiu como uma brincadeira, a ida para a rua foi por indignação. Eu e uma amiga fomos passar o carnaval na cidade de Goiás e resolvemos fazer um bloquinho, nós duas feministas e trabalhamos com saúde mental. O nome veio de forma espontânea. Na cidade tínhamos alguns contatos, ela era professora e nos colocou em um grupo de pesquisa chamado G7, e a partir daí montamos oficinas apresentando a ideia do bloco e em contato com a Secretaria de Turismo, nosso bloco foi colocado no roteiro oficial. Conseguimos parceria com um grupo de percussão e fomos aglomerando gente.

A gente já desceu aliado com a pauta LGBT, que em 2017 sofreu com forças da extrema direita que estavam atacando tantas feministas como a comunidade LGBT, então a gente já saiu junto. Foi incrível, a gente era um grupo muito pequenininho na saída do bloco e no final era uma multidão descendo com a gente. Nós somos muito bem recebidos pelas crianças. É incrível o efeito que o bloco tem nas crianças por causa das fantasias. A gente teve adesão das crianças, das mulheres, das pessoas idosas, foi lindo. A gente queria mais espaço, mas era uma brincadeira e depois em 2018, a gente nem saiu. Eu fui para o carnaval de Recife, lá eu tive uma imersão, uma experiência de lá foi muito profunda e eu entendi muito mais do que essa manifestação do carnaval, eu ganhei muito mais cultura, mais força mais, e em 2019, a gente foi convocada porque naquele ano popularizou-se um discurso conservador que dizia “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.

A nossa presença passou a ser reivindicada, por exemplo, a mãe da Mari Ferrer nos pediu para sair na rua, a gente fez na manifestação, bem como outros grupos que nos pediam ajuda. A gente fez uma aliança estratégica entre o movimento feminista e movimento de garantia dos direitos da comunidade LGBT, porque do ponto de vista conceitual que a misoginia, desse modelo patriarcal só é valorizado socialmente o que é definido como masculino, tudo que é feminino ou feminizado é inferior e alvo de muitas violações. Então, as mulheres, mulheres trans as mulheres travestis são atacadas, as gays afeminadas, tudo que traz na sua identidade o feminino sofre essa violência.

Do nosso desfile surgiu mais uma pauta política, no ano passado a gente trabalhou muito pela implantação no nosso estado (Goiás) do protocolo “Não Se Cale” a gente fez uma advocacy (argumentação) e conseguimos uma adesão da Superintendência Estadual da Mulher, eles implantaram no Oito de Março. Instituímos a Lei Não é Não que tem o objetivo de que os estabelecimentos de cultura, lazer e entretenimento que abriga concentração de mulheres, como estádios ou transportes públicos, tenham um planejamento de prevenção de violência de gênero e também de proteção, caso aconteça.

Nossa próxima pauta é a educação para autodefesa. O principal trabalho neste ano é desenvolver uma sensibilidade, uma consciência social em instituições governamentais da importância de, muito precocemente, meninas, mulheres e crianças desenvolverem práticas que fortalecem uma consciência de que você pode se defender com instrumentos para defesa de seu próprio corpo.

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