A mulher e a tripla jornada de trabalho

Érica Caetano, jornalista, mãe e esposa, conta ao Lab Notícias como conciliar o trabalho, cuidado com os filhos e afazeres domésticos.
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Existe uma diferença entre o ser mulher no passado, quando até mesmo o acesso a um curso superior era dificultado, e o ser mulher nos tempos atuais, quando há inserção progressiva no mercado de trabalho em busca de independência e reconhecimento. Entretanto, embora o cenário tenha mudado em muitos aspectos, o que poderia ser sinônimo de evolução, acarreta um novo problema: a tripla jornada

Durante muito tempo, uma “família tradicional” dividia os afazeres em dois grandes polos: o homem responsável pelo trabalho e finanças, a mulher responsável pelos cuidados domésticos e com os filhos. Com o avanço da luta do movimento feminista, as mulheres ganharam espaço no meio acadêmico e, posteriormente, conquistaram amplo acesso a vagas de emprego, mas isso não significou uma divisão igualitária dos outros afazeres que eram a elas predestinados; trabalho doméstico e atenção aos filhos ainda as pertenciam. 

Segundo o IBGE (2020), 67,2% das mulheres com filhos acima de 3 anos possuem ocupação. Entretanto, quando exposta a porcentagem do serviço destinado ao lar e crianças, as mulheres dedicam quase o dobro do tempo a eles se comparado aos homens: 21,4 horas semanais para elas, 11 horas semanais para eles. Nesse contexto, a tripla jornada (do emprego, do trabalho doméstico e do cuidado com os filhos) cria raízes profundas e que afetam diferentes aspectos da vida de uma mulher, como saúde mental e física e a falta de tempo pessoal.

Quem fala mais sobre isso em entrevista ao Lab Notícias é Érica Caetano (36), jornalista que trabalha 8hrs por dia, possui dois filhos (4 e 7 anos), é casada e ainda precisa lidar com afazeres domésticos. 

Érica Caetano e família / Acervo Pessoal

LN: Érica, há alguns anos você divide o seu tempo entre cuidado com o lar, filhos e trabalho. Como é a sua rotina diária?

Eu trabalhei meio período por muitos anos e agora faz um ano que eu estou trabalhando o dia inteiro. Na parte da manhã eu trabalho de casa para ficar com os pequenos e, durante esse período, também preciso organizá-los; café da manhã, trocar de roupa, escovar dente… e mais tarde, também prepará-los para a escola, para almoçar. Ao mesmo tempo, faço o almoço, faço as lancheiras da escola e quando tudo está pronto, partimos para nossos afazeres. Eu vou trabalhar na empresa e as crianças vão para a escola. Para levá-los e buscá-los eu tenho o auxílio do meu marido, mas, quando chego em casa depois do trabalho, é o terceiro turno [risos]: preparar jantar, dar banho, realizar as atividades da escola, momento de relaxamento com eles, contar uma história e depois dormir. Apesar da idade, eles ainda despertam durante a noite e sou eu que cuido disso. Levo para beber água, ao banheiro, cuido se tiverem tido pesadelo. Isso todos os dias da semana, de domingo a domingo.

LN: Qual a sua válvula de escape quando precisa de um tempo pessoal para você? 

Há um ano consegui conciliar um tempo para mim, coisa que desde que me tornei mãe eu não tinha conseguido ainda. Esse tempo diário é ir para academia. Sempre fui uma pessoa sedentária e durante um período de dificuldade muito grande que passei no último ano, acabei encontrando essa solução para não pirar, porque a sensação que tenho desde que me tornei mãe, já que continuei trabalhando fora, cuidando deles, cuidando da casa, é que eu ia enfartar. O sentimento que eu tenho todo dia de “hoje não aguento”, aquela ansiedade para ver se vou dar conta de tudo, se tudo vai dar certo, me fez procurar um recurso, que foi malhar. Eu arrumei um horário bem exótico, quase madrugada, mas é o que eu tenho, que dá para mim, e que encontrei para ser um tempo “eu e eu”. É um momento que eu rezo, que penso nas coisas que preciso fazer durante a semana, que eu relaxo, que penso em outras coisas que não sejam a minha rotina de casa, de criança, de marido e de trabalho.

‘Tenho consciência que em vista de outras mães, sou privilegiada’: rede de apoio e o papel do pai

LN: Para tentar conciliar a sua rotina, o seu marido divide com você as responsabilidades do lar? 

Eu nem uso esse termo ajuda, porque acho que ele precisa fazer o mesmo tanto quanto eu. A sociedade diz que o “homem é o provedor” e eu tenho consciência disso, mas a gente fez o filho junto — tem 50% meu e tem 50% dele. Então tem coisas dentro de casa que se eu estou, pode ser feito por mim, mas caso não, ele poderia adiantar e fazer. Já tivemos muita DR sobre isso, sobre faltar proatividade, e quando nossos filhos eram bebês, eu senti bastante falta dessa ajuda. Ele nunca acordou, nunca me ajudou com a amamentação nem que fosse para me buscar um copo com água, mas depois com as crianças maiores acho que ele entendeu que para eu conseguir trabalhar como ele gostaria e é necessário para ajudar financeiramente, seria necessário dividir comigo as tarefas e as funções. De uns três anos para cá, ele tem aumentado cada vez mais a parceria. Cuida da alimentação das crianças, tem a iniciativa de colocá-los para tomar banho até eu chegar. Meu marido ainda peca em algumas coisas, mas nunca será como mãe, né? E aprendi também a não sofrer com isso, porque ele às vezes pode não ser bom nessa tarefa de me ajudar com os pequenos, mas em contrapartida ele sempre pensa no cardápio para gente comer, ele faz a comida, ele ajuda nas atividades escolares, coisa que sou mais impaciente… a gente vem se alinhando e se ajustando. 

LN: Nesse sentido, você acha que é a ajuda dele que ameniza os impactos da sua tripla jornada?

Com certeza. Esse auxílio que ele me dá é o que não me faz desistir ou enfartar, apesar de que as vezes é ele que me faz ter essas sensações [risos], porque não entende o tempo que a gente gasta para deixar todo mundo pronto. Ele ficará ali mexendo no celular até a hora de sairmos e eu tenho que pensar em toda a logística; se temos um evento, preciso pensar no que levar, que bolsa eu tenho que fazer com muda de roupa extra para cada um, se lá não tiver comida, o que levo para eles comerem… preciso arrumá-los e depois me arrumar. Às vezes essa questão de horário me deixa muito pressionada.

LN: Quando as situações fogem do seu controle e planejamento, você possui uma rede de apoio com que contar? 

Eu tenho uma rede de apoio, mas ela não é diária. Estou melhor que muita gente, mas ainda assim não posso contar com ela sempre. Meus pais não moram aqui, meu pai teve um problema de saúde que impossibilitou que minha mãe estivesse mais presente me ajudando, porque ele já é idoso. A minha sogra e o meu sogro também são idosos. Tem a minha irmã, que é a madrinha das crianças e me socorre, mas que também tem os afazeres e a vida dela. Então eles podem me ajudar quando é uma coisa extremamente organizada, falada com antecedência e em períodos pontuais; férias, alguma coisa na escola que por conta do nosso trabalho, nem eu e o meu marido conseguimos participar… mas nem sempre dá certo também. Não temos funcionária, ajudante e essas coisas em casa, e no fim sobra tudo para mim mesmo. Mas tenho consciência que em vista de outras mães, eu sou privilegiada.

‘O mercado de trabalho não é muito a favor da mulher na situação de tripla jornada’: o processo de readaptação a uma nova rotina

LN: Você já pensou em desistir da sua vida profissional para ficar por conta de afazeres domésticos e o cuidado com os seus filhos? 

Durante toda a licença maternidade eu ficava em crise, principalmente quando ela estava acabando. Eu pensava que eu nunca conseguiria voltar e de fato a gente nunca volta igual: voltamos mais cansadas, mais sobrecarregadas… a vontade de desistir é muito grande. Mas também não sei se eu conseguiria, porque é muito mal vista essa questão de só ficar em casa com as crianças. “Você faz isso”, “você fica em casa”, “você cuida dos meninos”, né? isso tudo. Já pensei várias vezes, mas não posso me dar o luxo de ficar por conta só deles, porque ajudo, ainda que não tanto quanto meu marido, nas despesas da casa. Ele também acha que eu não conseguiria, porque é uma carga mental muito grande. Mas sim, todo dia eu penso. Pensava quando era bebê, agora penso com eles maiores, porque me sinto culpada de estar perdendo muita coisa, de não estar podendo acompanhá-los. Eles crescem e é exatamente o problema. A fase que eles estão hoje, a primeira infância, se eu a perco, não poderei recuperar. 

LN: Diante desse cenário, você acha que o mercado de trabalho está preparado para mães que possuem jornada doméstica atrelada à jornada de trabalho?

O mercado de trabalho não é muito a favor da mulher na situação de tripla jornada. Se é dito “a nossa empresa pensa na mãe”, na verdade não, não pensa, porque você não tem a liberdade para ir na apresentação do seu filho; você tem que conversar, pagar horas. Se você tem uma reunião da escola, você não pode sair do seu trabalho. Ele não dá essa flexibilidade. Até mesmo a licença maternidade não dura o tempo que deveria, orientado pela Organização Mundial da Saúde que diz que devemos amamentar o nosso filho por no mínimo seis meses. Só que se você não é funcionária pública, com quatro meses você volta. Daí dizem “mas você pode amamentar seu filho por 30 minutos”, só que você nunca vai conseguir achar uma pessoa que leve-o ou que a gente vá buscá-lo para amamentar nesse espaço de tempo. “Ah, mas até os 6 meses dele você pode sair mais cedo”. Eu usei desse benefício, mas o emocional, né? Amamentar não é tão intuitivo. A prolactina, hormônio que produz o leite, é influenciada pelo psicológico, então você tem que estar bem, tem que estar descansada, com o sono em dia, você não tem que estar ansiosa. Então sua produção cai quando você está preocupada com o trabalho, estressada em deixar seu bebê tão pequeno, de pensar em toda a logística sobre como você vai conseguir dar esse mama… 

LN: Qual o conselho que você dá para outras mulheres que estão na mesma situação que você?

É difícil o negócio do conselho, porque não há uma fórmula certa. Às vezes funciona na minha casa, mas não vai funcionar para outra pessoa. Mas o meu conselho para essas mulheres é: não desistam da maternidade, se essa for a vontade delas, por conta do trabalho ou por conta da vida corrida, porque isso se ajeita. É muito penoso? Com certeza. Eu vivo isso diariamente. Mas tenho certeza que vai passar e que a gente ainda vai sentir falta desses momentos, desse tempo. Eu pensava que eu nunca conseguiria, mas agora meus filhos estão crescendo, galgando o espaço deles e ficando mais independentes, e aos poucos eu e meu marido vamos retomando quem éramos antes do nascimento das crianças. Então digo, para essas mulheres que também passam por essa tripla jornada, às vezes muito mais exaustiva que a minha, porque eu tenho dentro do meu contexto vários privilégios: tenham resiliência e saibam que não é fácil. Que sejamos como o bambu, exemplo que sempre falo: ele enverga, mas não quebra. Ele volta. E a gente faça isso também, tenha essa força e a use dessa forma resiliente, sabendo que vai melhorar, que é um período que faz parte da nossa vida que devemos levar com bom humor e saibamos encarar da melhor forma possível. É o que tento fazer.   

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