Tempo de leitura: 3 min

Primeiro foram os pombos, depois os cães de rua, depois os artistas de semáforo. A ordem era clara: a cidade de Bacurau precisava ser limpa. E o prefeito, homem de visão, decidiu que sujeira não se varre para debaixo do tapete, se joga para fora da cidade.

Tudo começou com uma simples campanha educativa. Placas espalhadas pelo centro alertavam: “Cidade limpa, cidade feliz” e “Respeite o patrimônio público”. Mas logo ficou evidente que o verdadeiro patrimônio a ser protegido não era o público, e sim os olhos sensíveis da elite local, que sofriam com a visão de gente pobre ocupando calçadas sem pagar IPTU.

A primeira grande ação foi contra os cidadãos desleixados que insistiam em jogar lixo no chão. Inspirado em grandes metrópoles de vídeos motivacionais no YouTube, o prefeito ordenou uma blitz da limpeza: fiscais armados de pranchetas aplicavam multas para qualquer infeliz que deixasse um papel de bala cair da mão. Assim a justiça foi feita: um estudante distraído que derrubou um recibo de ônibus pagou sua parte pelo bem da cidade.

Depois veio a vez dos ambulantes. A fiscalização chegou cedo, acompanhada de policiais e um batalhão de lixeiras recém-instaladas. “Quer vender pipoca? Pegue um alvará” – gritava um fiscal, enquanto um pipoqueiro de 30 anos de praça via seu carrinho ser empurrado para um caminhão de apreensão. A praça ficou mais organizada, segundo os jornais, embora tenha adquirido um certo ar de cemitério urbano, sem cheiro de amendoim torrado ou risadas de crianças ao redor do algodão-doce. Se o preço da modernidade era transformar o espaço público em um estacionamento ao ar livre, que assim fosse feito.

Depois foi a vez dos artistas de rua. Estátuas vivas, malabaristas e músicos receberam um ultimato: ou pagavam uma taxa para uso do espaço público ou desapareciam. Muitos desapareceram. A prefeitura explicou que a medida era necessária para evitar bagunça e poluição sonora. Afinal, nada mais prejudicial ao bem-estar social do que um músico tocando gospel no semáforo. Porque barulho bom, é barulho que sai dos carros de som dos políticos em época de eleição.

Os moradores de rua? Esses foram tratados com a compaixão de sempre: jatos de água nas madrugadas, só para refrescar, bancos com divisórias para impedir que alguém deite, e uma frota de ônibus humanitários que os levava para longe, para onde ninguém sabia. Alguns sugeriam que o destino final era um terreno baldio na periferia, mas quem se importava? O importante é que agora dava para tomar café na calçada sem ser incomodado por pedidos de trocado. Afinal, mendicância é feio, mas os outdoors pedindo doações para a construção de um novo condomínio de luxo são um ótimo ato para exercício da solidariedade.

Por sorte, o zelo do prefeito não se estendia a todos os tipos de propaganda urbana. As empresas que despejavam lixo industrial no rio? Intactas. Os outdoors gigantes de políticos sorridentes bloqueando a vista do pôr do sol? Mantidos. Os cartazes colados irregularmente nos postes, vendendo cursos milagrosos e promessas de emprego? Ninguém ousava mexer. A verdadeira limpeza, afinal, atendia aos requisitos de prioridade: varria-se o que incomodava quem tinha dinheiro, e o resto, bem, faz parte do progresso.

No fim, Bacurau realmente ficou mais limpa. Limpíssima. Tão limpa que começou a parecer deserta. A vida foi desaparecendo junto com a poluição visual. No grande evento de reinauguração da cidade purificada, o prefeito discursou e falou de ordem, progresso e modernização. Mas ao fundo, um vento solitário levantava o lixo das obras superfaturadas e o levava para longe. Para onde ninguém sabia – e nem queria saber.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *