A erotização infantil como ponto de partida para ‘prostituição digital’

A exposição de crianças e adolescentes a conteúdos de teor sexual tem sido um grande problema a ser combatido pela sociedade, a dificuldade se intensifica quando os jovens visualizam uma suposta carreira promissora baseada na sexualização
Tempo de leitura: 10 min

A erotização infantil vem sendo um problema a ser combatido há muito tempo, mas tem ganhado notoriedade enquanto avança ano após ano, deixando marcas que talvez sejam irreparáveis na sociedade. A praticidade que o acesso à internet e às redes sociais nos traz é inegável, mas é necessário pontuar que essa praticidade faz com que crianças e adolescentes possuam acesso fácil e ilimitado à conteúdos de teor sexual, mesmo que não propositalmente. Contudo, é importante ressaltar que a culpa não é da tecnologia, mas sim de quem a manuseia ou permite manusear.

O que é erotização infantil?

Imagem: Meu Primeiro Amor (1991).

A erotização infantil é o processo de “adultização” das crianças, expondo-as a experiências que não estejam de acordo com sua faixa etária e que, muitas das vezes, possuem conotação sexual. Por exemplo: quando um adulto pergunta à uma criança “Como vão os(as) namoradinhos(as)?”, é uma forma, ainda que num tom lúdico e livre de más intenções, de estimular a criança a situações inapropriadas, já que o namoro e as ações realizadas dentro deste tipo de relacionamento, como o beijo na boca, é “coisa de adulto” e as crianças devem ser conscientizadas deste fato. Filmes como Meu Primeiro Amor (1991) e Lolita (1997) retratam crianças envolvidas em relações “afetivas”, com a diferença que, o primeiro é um filme infantil que retrata uma relação pura, baseada na amizade dos protagonistas – que possuem a mesma idade -. Já no segundo, a história é, na verdade, um abuso, em que o abusador – muito mais velho – narra a história como se a garota, de apenas 12 anos, pudesse consentir uma relação como uma mulher adulta.

Onde este problema se encontra?

Letras explícitas e clipes sugestivos são protagonizados por menores de idade, expostos diretamente a um mundo no qual não deveriam fazer parte. Infelizmente, a erotização infantil está por toda parte: em filmes, séries, novelas, etc. Entretanto, dois meios têm se destacado: as redes sociais e o âmbito musical; é recorrente encontrarmos crianças e adolescentes que passam uma imagem “adulta” na internet, seja seguindo a carreira de “influenciadores mirins” ou, de fato, a carreira artística, mas que tipo de arte é esta?

https://www.instagram.com/p/CmMoSDyOlEG/
MC Paiva e Gabb MC, na época com 13 anos de idade.

Segundo a psicóloga Cíntia de Sousa Carvalho, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e especialista em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), as crianças, até certa idade, não conseguem assimilar as informações advindas de conteúdos sexuais, não da mesma forma que um adulto poderia problematizá-las. Ainda assim, a exposição a estes conteúdos pode ser prejudicial: “(…) A criança pode, inclusive, se sentir estimulada. Não no sentido do sexo em si, mas estimulada no sentido dos sons, do que as cenas ou músicas propõem. Então, a gente pode pensar que há, sim, um impacto negativo nessas posições acerbadas, nesse tipo de conteúdo. Nem todo conteúdo que é, para um adulto, problemático, vai ser para a criança, até por isso, porque ela não consegue entender totalmente o que está acontecendo. Mas uma parte dos conteúdos, sim, ela tem acesso em termos de compreensão, e isso pode afetar negativamente, portanto, o desenvolvimento dela.”

No entanto, de acordo com a especialista, não é preciso tomar nenhuma medida extrema. Se há desejo por parte da criança em estar ativa nas redes sociais, se é uma atividade que lhe dá prazer, isso não precisa lhe ser negado, desde que haja um adulto mediando o que cabe ou não ser exposto: “Se ela [criança] deseja ser uma influenciadora mirim, ou se expor nas redes sociais, isso só pode acontecer se a criança tiver um adulto que possa ajudá-la a entender o que é adequado e inadequado nessa linguagem que ela ainda não tem acesso, que ela ainda não compreende totalmente a dimensão, os riscos.”. Contudo, é importante lembrar que, apesar de não ser necessariamente um problema, a rotina da criança deve também basear-se em outras experiências: “…se essa é uma atividade que lhe dá prazer, tudo bem, mas ela precisa de viver outras coisas, outras intensidades, outras atividades para se desenvolver bem.”, complementa Cíntia.

Videoclipe protagonizado por DJ Arana, 17, e MC Pipokinha, 24.

O videoclipe acima, protagonizado por DJ Arana, na época com apenas 17 anos, e a cantora MC Pipokinha, 24, possui uma cena que simula a prática de sexo oral entre os intérpretes, além de imagens em que o adolescente aparece segurando os seios da cantora.

E a lei: o que diz?

Art. 241-D.

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei
nº 11.829, de 2008)
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei
nº 11.829, de 2008)
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena
de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato
libidinoso; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim
de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente
explícita. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

Art. 241-E.

Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão
“cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer
situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais
explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de
uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.
(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

A relação com a ‘prostituição digital’

Belle Belinha em vídeo que oferece bebida alcoólica à criança. Reprodução: Internet.

Muitos jovens da denominada “geração Z” – como é conhecida a população que nasceu após os anos 2000 -, têm crescido diante desta grande exposição midiática, acompanhando figuras públicas da mesma geração e, de certa forma, se espelhando naqueles que consideram seus ídolos. Todavia, essas figuras idolatradas por nossas crianças, devem mesmo ser um exemplo? Como citado anteriormente, o exibicionismo e o estímulo ao consumo de conteúdo sexual entre menores de idade estão por toda parte: nas músicas, no cinema, na TV e, claro, nas redes sociais. Entretanto, a interação entre fãs e ídolos tem gerado situações desconfortáveis e, até mesmo, criminosas. A imagem ao lado mostra a tiktoker Belle Belinha, grande nome do TikTok, que acumulava mais de um milhão de seguidores antes de ser banida da plataforma: em junho deste ano, a influenciadora postou em seu perfil um vídeo em que oferecia bebida alcoólica para uma criança. Recentemente, Belle tem utilizado a plataforma X para comunicar-se com seus seguidores e divulgar links de acesso à conteúdo exclusivo.

Além disso, há outra questão a ser discutida: muitos jovens, logo ao completar a maioridade e já acostumados com a exposição a conteúdo sexual desde a adolescência, adentram na indústria da venda de conteúdo adulto, devido ao alto índice de divulgação. Influencers como Martina Oliveira, exibem nas redes a vida luxuosa proporcionada por este mercado.

https://twitter.com/martinaolvr_/status/1724160533165654244
Martina Oliveira exibe carro novo, adquirido através da venda de conteúdo adulto pelo site Privacy.

A “Prostituição Digital” é um termo utilizado para fazer referência à venda de conteúdos sensuais, como fotos e vídeos, através de plataformas online. Essa venda pode ocorrer por meio das redes sociais ou pode ser mediada por empresas que trabalham diretamente neste mercado, como os aplicativos OnlyFans ou Privacy. Entretanto, apesar de ser empregado em diversas matérias jornalísticas ou, até mesmo, no vocabulário popular, essa expressão não é bem recepcionada por aqueles que atuam nesta ocupação. A equipe do LabNotícias (LN) conversou com Renata, 20, que descreveu o termo como “malvado”: “Pelo fato de que é pago, o pessoal acha que pode ser utilizado, mas pra mim é vulgar. Não deveria ser utilizado.”. Renata Ester adentrou neste mercado ao completar 18 anos, há dois anos atrás, por necessidade de uma renda complementar para manter-se na faculdade, e garante que a remuneração proveniente da venda de seu conteúdo consegue suprir tranquilamente as despesas.

“É possível que as fotos e vídeos sensuais sejam uma maneira de construir um espaço identitário e de reconhecimento do outro.”, é o que diz a psicóloga Cíntia, especialista em sexualidade. A geração Z tem ampliado o debate acerca de saúde mental e questões com a própria imagem, sendo extremamente comum encontrarmos jovens expressando a insatisfação com o próprio corpo. Entretanto, também é cada vez mais rotineiro se deparar com jovens, inclusive menores de idade, postando imagens sensuais em suas redes sociais, em busca de uma provável validação alheia. Conforme Renata, a entrada neste meio “ajuda bastante na autoestima das meninas que entram”, ela alerta a importância de tomar cuidado com o público que está tendo acesso à sua imagem, mas afirma: “Minha autoestima melhorou bastante depois das vendas.”.

Apesar de proporcionar benefícios, especialmente financeiros, é importante conscientizar os jovens para que não se deslumbrem com este mundo: onde há prós, sempre há contras. Nem sempre a remuneração irá atender as expectativas impostas e isso pode gerar grande frustração. As plataformas mais utilizadas para a venda de conteúdo adulto, OnlyFans e Privacy, citadas anteriormente, ficam com 20% do valor faturado pelos produtores de conteúdo: de acordo com Renata, este número “pesa muito” no fim das contas. Também é importante destacar que a escolha de vender imagens do próprio corpo não pode ser baseada em experiências do outro, já que cada ser humano possui suas próprias particularidades e os efeitos psicológicos podem ser diferentes para cada um.

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