Como o machismo impacta na subnotificação de casos de estupro de vulnerável contra meninos

Cerca de 75% dos casos de estupro no país correspondem ao estupro de vulnerável e, a subnotificação é um grave desafio: apenas 8,5% dos casos chegam a ser registrados.
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Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, o número de registros de estupros de vulnerável atingiu o seu ápice até então: 74.930 vítimas. Esse dado corresponde aos casos registrados pelas autoridades policiais, portanto estima-se que esse número corresponda apenas a uma fração dos casos. Além disso, segundo dados do estudo desenvolvido por pesquisadores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), cerca de 8,5% dos casos de violência sexual são reportados à polícia e apenas 4,2% aos sistemas de saúde, esquematizando, assim, a subnotificação de violências sexuais, especialmente no caso de estupros de vulnerável (que correspondem a 75,8% do total de casos).

  1. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 as vítimas do sexo feminino correspondiam a 88,2% dos casos e vítimas do sexo masculino correspondiam a 11,8% dos casos. Em 2021, as vítimas do sexo feminino representavam 86,9% e as vítimas do sexo masculino, 13,1%. Em 2020, vítimas do sexo feminino representavam 85,3% e vítimas do sexo masculino 14,7%. Em 2019, o Anuário colocou os dados de estupro e estupro de vulnerável juntos e, nesse ano, as vítimas do sexo feminino correspondiam a 81,8% dos casos e as vítimas masculinas a 18,%.  ↩︎

Histórico e socialmente, a violência sexual é tida como uma forma de violência que vitimiza mulheres. Nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o estupro de vulnerável cometido contra pessoas do sexo feminino representa 88,7% e contra o sexo masculino, 11,3%. Para Denis Ferreira, psicólogo e fundador do Memórias Masculinas – ONG focada no atendimento de homens vítimas de abuso sexual -, embora as mulheres componham o maior quantitativo de casos, a discrepância entre os dados não reflete a realidade vivenciada. “Sim, as mulheres são bem mais vítimas de violência sexual do que meninos e homens, mas não imagino que essa diferença seja tão gritante”. O psicólogo questiona, ainda, a subnotificação dos casos, alegando que houve uma queda, nos últimos anos, dos números de registros de vítimas de estupro de vulnerável do sexo masculino pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública1, “É uma coisa que a gente tem que prestar atenção. Está diminuindo mesmo a violência sexual contra meninos? Ou só está chegando menos às delegacias?”

Fonte: Memórias Masculinas

Para a pediatra Joyce Martins, atendente do ambulatório ACOLHER – responsável pelo atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual -, no Hospital Estadual da Criança e do Adolescente em Goiás, o maior desafio enfrentado no atendimento de meninos vítimas de estupro de vulnerável, é justamente a subnotificação: “A dificuldades deles chegarem no ambulatório ou fazerem a denúncia na delegacia (…). Os familiares têm medo do estigma que pode gerar após a denúncia de um caso de estupro, principalmente o questionamento da sexualidade.”

Redes Sociais

Em agosto, o professor e palestrante Levi Kaique Ferreira, usou de suas redes sociais para falar sobre a normalização do estupro de vulnerável entre meninos. A publicação atingiu cerca de 50 mil visualizações e a frase que utilizou no início do post (“Pergunte a um homem sobre como perdeu a virgindade e escute uma história de abuso”) e suas variantes, são tipicamente usadas para relatar ou denunciar experiências de abuso.

Segundo Denis Ferreira, trazer esse cenário para as redes sociais, além de uma forma de educação sobre o caráter que o estupro de vulnerável pode assumir na sociedade, também é uma forma de combater a subnotificação: “Ter pessoas falando… Primeiro, se identificando como homens vítimas de violência e não tendo vergonha – porque não tem que ter vergonha. Se alguém tem que ter vergonha é o criminoso que praticou o crime e não a vítima -, ter pessoas falando dessa experiência. Ter grupos de masculinidade também discutindo essa problemática… Sem sombra de dúvidas é um dos mecanismos que a gente tem para que homens consigam falar mais sobre o assunto.”

Para o psicólogo, no entanto, as maiores dificuldades encontradas no combate à subnotificação de violências sexuais contra garotos são o machismo, a homofobia e a pressão social para o desejo sexual, “Os homens são criados para estarem prontos para sexo e a quererem sexo o tempo todo”.

Esse comportamento fica muito nítido online, através da trend “Marias Mucilon”, popularizada na rede social TikTok, por exemplo, em que mulheres adultas demonstram seu interesse por meninos mais novos, em alguns casos, em idade escolar ou mesmo inferior aos 14 anos. Além disso, muitos homens que relatam ter tido sua primeira relação sexual antes dos 14 anos e com mulheres mais velhas dizem não ver problema nesse tipo de comportamento.

Print dos resultados da pesquisa da trend “Maria Mucilon 13 anos” no aplicativo TikTok/ Fonte: Acervo pessoal

Segundo a Cartilha da Violência Sexual Contra a Criança e o Adolescente, da Polícia Civil do Estado de São Paulo, violência sexual infantil se caracteriza como “Toda ação praticada por adultos (tanto homens, quanto mulheres) contra crianças ou adolescentes, que tenha por objetivo a estimulação sexual das vítimas ou a satisfação sexual do próprio abusador.” O documento esclarece, ainda, que para a ação ser considerada uma forma de violência sexual, não é preciso, necessariamente, ter contato físico. Falar sobre relações sexuais ou atos libidinosos de maneira a aliciar a criança ou mandar fotos e vídeos com conteúdo pornográfico, também se configuram como formas de violência.

Como ocorrem os casos e onde denunciar

Em mais de 80% dos casos de estupro de vulnerável, o agressor era conhecido da vítima. Segundo os autores do 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, “Esse contexto faz com que seja muito difícil para as vítimas reconhecerem as violências que sofrem e, quando o fazem, terem muita dificuldade em denunciar ou buscar ajuda.” Além disso, a pediatra Joyce Martins, aponta que “como geralmente, abuso em criança não deixa vestígios, como atos libidinosos , a palavra da criança por vezes é questionada e não validada.”

Nesse sentido, Denis Ferreira aponta ainda a necessidade de reconhecer o caráter dos agressores ao associar crimes de estupro de vulnerável à chamada “Cultura da Pedofilia”. Para ele, “Quando a gente fala cultura da pedofilia, a gente reforça a ideia de que tem um grupo de pedófilos organizado à espreita, caçando crianças por aí. Isso não é verdade. A realidade é o pai, é o tio, é o irmão mais velho, é a tia, é a prima mais velha. E todas essas pessoas não têm transtorno pedofílico. São pessoas que amam, que cuidam. Mas que também abusam.”

Para Joyce Martins, um dos meios mais eficazes para a denúncia de abuso sexual infantil, nesses casos, é a escola. Mas reforça que é importante que toda a população saiba reconhecer sinais de abuso. “Nesses anos trabalhando com vítimas de abuso sexual vimos a escola como um fator de reconhecimento de crianças que sofrem abusos, seja através das palestras, seja pelo professor que atentamente percebeu uma mudança no comportamento da criança. E esse olhar atento fez com que elas contassem o que aconteceu. Precisamos que todos tenham esse olhar atento”. Nesse sentido, a Lei 14.432 de 3 de agosto de 2023, que prevê a instituição da campanha Maio Laranja, cujo objetivo é promover ações efetivas contra o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, é um caminho para essa identificação. A campanha visa a educação sobre essas formas de violência através de palestras, eventos e atividades educativas, e na disponibilização de folders, banners e outros materiais ilustrativos à população.

Segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, referente aos meses iniciais de 2022, cerca de 79% das denúncias dos canais oficiais são sobre abuso de crianças e adolescentes. Em nota publicada no site do Governo Federal, há o reforço da importância de denúncia através do Disque 100 (Disque Direitos Humanos) e também da criação do aplicativo “Sabe – Conhecer, Aprender e Proteger”, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que conta com uma plataforma adaptada a cada faixa etária da infância, para que as crianças possam ter informações sobre os direitos e como identificar diferentes tipos de violência. O aplicativo, disponível para IOS e Android, é diretamente ligado ao canal Disque 100, sendo possível realizar denúncias diretamente pela plataforma.

Além da necessidade de se denunciar esses casos, Joyce Martins reforça, ainda, a importância de dar um suporte mais duradouro à vítima, que transcenda o pronto-atendimento hospitalar: “Outro ponto importante é apoiar a família da vítima. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.674, em setembro de 2023, que prevê a concessão de auxílio-aluguel a mulheres vítimas de violência doméstica, talvez seja o caso de ter um benefício para essa família. Uma rede de apoio forte, com acompanhamento psicológico para a criança e familiares e que elas fiquem em segurança para seguir seu caminho da melhor maneira possível.”

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