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O comentário capturado em um perfil no Instagram é um discurso mais comum do que podemos imaginar. Afinal, quem hoje não ouviu isso em algum momento, não é mesmo?! Talvez até você já tenha sido responsável por essas palavras e não tenha percebido o peso delas.
Mais um comentário escrito por outro participante do perfil é entregue neste registro. O teor contra crianças é ainda mais destacado do que o anterior, já que usa termos como ‘despachando’, dando a entender que nem chega a considerar crianças como seres humanos.
Tudo isso é resultado da falta de constrangimento que proferir tal sentença tem na sociedade. O atual momento permite a livre ideia de que não gostar de crianças e até mesmo odiá-las virou um “ponto de vista”, uma mera opinião ou uma questão “de gosto”.
Para a psicóloga infantil Amanda Braz, 26, o argumento usado para não tolerar crianças é que elas fazem birra ou tentam chamar a atenção. Mas, o adulto que não consegue estabelecer limites se comporta da mesma forma. Então, muitas vezes, eles não suportam aquilo que reflete quem realmente são.
“Ah, mas ninguém é obrigado a gostar de certa pessoa”, certo, não é obrigação de ninguém gostar de alguém específico, mas não gostar de uma comunidade inteira [crianças] configura um olhar mais fundo e problemático sobre isso.
Quando analisado mais de perto, os papéis podem ser trocados e ao invés de crianças, podemos colocar pessoas com deficiência (PcDs), pessoas pretas, quilombolas, indígenas e até mesmo usar o critério de religiosidade para gostar ou não gostar de alguém.
É só pegarmos um cenário típico de intolerância contra uma criança e colocar um adulto que compõem uma minoria para viver essa situação. Agora começou a fazer mais sentido que não gostar de crianças é sim um preconceito aceito?
Diante disso o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) Brasil fez uma iniciativa que busca fomentar a identificação de falas e atitudes intolerantes contra crianças em cenários e contextos diferentes. E, ao ouvir a animação no YouTube, você percebe que tais situações vivenciadas por qualquer outro adulto não seriam aceitas.
Responsabilizar crianças por qualquer coisa de errado é uma forma de intolerância
A insatisfação de terceiros quando se sabe que uma criança estará no lugar é o cenário mais comum vivenciado por crianças e suas mães. Maria Clara conta que era muito ruim saber que em determinado encontro de família, a tia por parte de pai de seu filho Samuel, de 8 anos, estaria no local. Isso porque ela sabia que comentários sobre a criança poderiam acontecer.
“Preferi muitas vezes não comparecer em um encontro de família porque a culpa de qualquer coisa sempre caia no Samuel”.
Acrescentou: “Ele nem é ‘baguncento’, me respeita quando falo com ele. A questão é exatamente porque ele é um dos mais novos e age como uma criança tem que agir”.
Para Amanda Braz, uma criança pode começar a se ver com olhos negativos por consequência de atitudes desse tipo para com elas. Excluir uma criança por ser uma criança, fomenta o problema que muitas vezes estão buscando “solucionar”, isto é: a bagunça que ela possa estar causando.
“Não vai resolver o problema. Pelo contrário. É provável que ela volte a fazer bagunça para ganhar ao menos aquele momento de atenção”, explicou a psicóloga.
Samuel não é a única pessoa que já foi impedida de estar em determinado lugar porque não é bem-vindo lá. O fato de qualquer outra pessoa evitar de comparecer em determinado recinto por saber que sua cor irá causar contrariedade ou que não é bem-vindo em um lugar porque faz parte da comunidade LGBTQIA+ causa indignação, por que, então, se analisado esse mesmo discurso contra crianças, ele não causa o mesmo?
São pequenas coisas que, analisadas de um ângulo diferente do convencional, fazem total diferença para perceber discursos que são proferidos e aceitos socialmente sem nenhuma indagação.
Ser humano em formação
As crianças não são respeitadas como cidadãs e não são vistas como uma pessoa de fato, e sim um ser humano em formação. Frases como: “Tinham pessoas e crianças na festa” não são incomuns e também não causam estranhamento. Porém, como assim pessoas e crianças? Afinal, crianças não são pessoas?
Pedro Hartung, advogado dedicado aos direitos das crianças e diretor do Instituto Alana, programa que promove esses direitos, destaca que: “A criança não vai ser alguém no futuro. Ela já é alguém.”
Amanda Braz defende que, infelizmente, é comum uma criança aparecer com falas problemáticas sobre querer crescer ou ficar mais velho, pois só assim poderão ser ouvidas.
“É claro que cabe aos pais e responsáveis criar os seus filhos, ensinar e passar valores. Mas quando uma criança diz não a algo, esse ‘não’ precisa ser escutado.”
Tem suas dúvidas? Pois bem, quantas vezes não viu uma criança ser silenciada porque sua opinião não era relevante ou a ideia de obrigar uma criança a abraçar ou beijar um desconhecido é super aceita porque o seu responsável mandou. “Ainda hoje há crianças que são forçadas a demonstrar carinho para pessoas que mal conhecem” defendeu a psicóloga.
A falta de liberdade e o controle imposto a elas entram nessas circunstâncias, e tudo isso porque não são vistas como seres humanos de fato.
Quando ocorre de uma criança ser silenciada por um adulto ou induzida a alguma atitude que não deseja, seja ela um ‘simples’ abraço, a Convenção sobre os Direitos da Criança mostra que a Carta das Nações Unidas é agredida, e o direito que a criança tem é negligenciado, especialmente no âmbito da dignidade, tolerância, liberdade e igualdade.
Muito disso ocorre sobre essas pessoas de tão pouca idade, devido à percepção generalizada de que elas, como argumenta Amanda, são desde sempre subjugadas como menos inteligentes que os adultos, como pessoas que não decidem por si mesmas.
‘como irei fazer para conversar com eles já que eu não podia responder?’
Amanda Arantes, 23, comenta como se sentia diante de comentários sobre sua forma de ser quando criança. A falta de diálogo fez com que ela ficasse receosa de poder se comunicar com outras pessoas adultas.
“Sempre falavam que eu ‘respondia muito’ e como criança eu levava no literal e pensava ‘como irei fazer para conversar com eles já que eu não podia responder?’”.
Acrescenta: “O fato é que eu sempre questionava e sempre tinha uma resposta para todas as coisas que me diziam, e ao invés de ser claros sobre o que estavam falando, me deixaram por anos com um nó na cabeça sem compreender.”
Em virtude de tais circunstâncias, Amanda comenta que até a adolescência e juventude, ela ficava congelada diante de certas situações exatamente porque não sabia como deveria se portar ou como iriam reagir.
Tudo isso mostra como a intolerância em um período primordial como é o da infância podem impactar em atitudes futuras.
Não é o caso de Amanda, a jovem que já teve medo de se expressar. Mas para a psicóloga Amanda é um dos motivos que podem contribuir para com atitudes negativas em relação a crianças:
“Se eu fui reprimido quando criança, serei alguém que não tolera uma criança, esteja ela chorando ou brincando feliz…”
como também argumenta que o adulto que hoje em dia não gosta de crianças pode ter sido a criança de outro dia que foi negligenciada ou até mesmo demasiadamente cuidada para ser tão individualista hoje.
Quando foi que não gostar de uma comunidade inteira se tornou tão aceito?
O movimento childfree teve origem nos EUA e Canadá durante as décadas de 70 e 80, no qual buscava representar pessoas que optavam por não ter filhos. Hoje, entretanto, não é mais como uma defesa para a ideia de não se ter filhos, é mais do que isso. Desejam não ser “importunadas por crianças” e as discriminam abertamente exatamente por serem crianças, que são pessoas não adultas.
Diante disso, Amanda Braz alega que, em sua profissão, eles acabam trabalhando mais com adultos do que com as crianças propriamente ditas. Pois, o princípio para uma criança se sentir respeitada, parte da sociedade e consciente de seus direitos é fazer com que se sinta acolhida e parte da comunidade.
“Dê espaço para a criança se comunicar, escute“.
A mentalidade Precisa ser trabalhada
Trabalhar a ideia de que crianças são gente é a base para tirar a ideia de que não é uma questão de opinião o pensamento de intolerância para com elas.
O artigo 5º fala que todos são iguais perante a lei e no art. 3º, inciso IV que é objetivo da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
A psicóloga Amanda, comenta que tendemos a repetir padrões de relacionamento da nossa família ou vivenciados na infância. Então, se em um caso de negligência vivenciada na infantil, no qual nos fez sentir mal diante de uma situação, por que perpetuar esse tipo de sentimento em outra pessoa? Lembre-se, todos nós já fomos crianças.
Em virtude disso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado, para a proteção dos jovens de forma integral e no qual reconhece seus direitos como sujeitos dignos de respeito.
Nota da redação: Os nomes Maria Clara e Samuel foram usados para não expor os verdadeiros nomes dos entrevistados.