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Com uma trajetória interpessoal com o cinema, Pedro Henrique Oliveira Santos, 22, é formado pela FMU em São Paulo e nos mostra que não existe forma de fazer cinema sem luta política, justamente por entender que o cinema, em si, já é uma expressão da luta política e de transformação do cotidiano.

A maneira como lida com o audiovisual revela a responsabilidade e o desejo pela mudança, sua obra e a maneira como a encara revela uma sensibilidade humanista que inflama bravamente apesar das dificuldades que surgem ao produzir cinema no Brasil. O Lab Notícias entrevistou Pedro na busca de entender melhor o seu caminho até o audiovisual e como esse caminho moldou sua visão política nesse percurso.

Lab Notícias: Como é sua relação com audiovisual hoje e como foi sua trajetória até aqui ? 

Pedro Henrique: Quando era criança eu gostava muito quando eu conseguia assistir filmes com meus pais. Eles trabalhavam durante a semana, e no domingo, pós-almoço, era o momento que a gente parava tudo pra assistir um filme. A gente ia numa banquinha que vendia filmes, escolhia os filmes e assistia.  Eu sempre tive muito gosto por histórias e narrativas, e conforme fui crescendo eu fui percebendo que eu gostava muito de ver os bastidores.  Eu lembro que rolava na TV os bastidores de um determinado blockbuster, entrevistas com diretores e atores e eu achava tudo muito maneiro.

Quando chegou a internet eu ficava pesquisando e achava uns canais [no YouTube] que falavam de cinema, de cinema clássico, então eu tinha tipo treze anos de idade, tava assistindo um O encouraçado Potemkin, não entendia p*rra nenhuma, mas adorava, ficava assim ” caraca isso é cinema! ” [risos], era engraçado. Eu estudava em escola pública, não tinha perspectiva nenhuma do que eu ia fazer de fato, eu tinha dúvidas ainda se eu ia fazer cinema ou não.  Porque pra mim não fazia sentido eu fazer cinema porque era pra gente rica, na minha cabeça eu ia estudar biologia que é uma coisa que eu gostava também e hoje em dia eu definitivamente não me vejo fazendo isso. 

Em que momento você teve o primeiro contato com a fotografia e o audiovisual? 

Na adolescência eu comecei a experimentar fotografia, tive um telefone muito ruinzinho, mas eu tirava umas fotos legais, fazia uma boa edição e todo mundo elogiava bastante, eu vi que eu gostava e então começaram a rolar uns eventos da escola. Eu tinha um amigo, o Tarcis, faço questão de falar dele porque ele me conheceu e no mesmo dia largou a câmera dele comigo, ele tinha uma câmera profissional, largou ela na minha mão e falou “ah você sabe tirar foto né, então toma”. Eu nunca tinha pegado numa câmera na vida, não sabia mexer na velocidade, não sabia nada da câmera e ele simplesmente confiou e falou vai lá e faz. Me explicou mais ou menos como funcionava a parada e eu fui fazer.

A partir daí foi quando eu decidi que eu gostava de fotografia, que eu queria estudar fotografia, que era isso e aí eu consegui, eu descobri cursos gratuitos de cinema, as oficinas de audiovisual como KinoForum e Enois Na Fita foi aonde eu comecei a estudar cinema.  Pensei, é isso, não tem mais volta.  Eu costumava ficar fuçando milhões de tutoriais, Photoshop, Premiere, movimentação de câmera, qualquer coisa na área e sinceramente aprendi muito, eu conheci um amigo no curso de cinema que montou uma produtora de curtas-metragens e a gente começou a produzir coisas, então eu consegui ter uma experiência audiovisual que me garantisse um emprego dentro da área e aí eu consegui pagar minha faculdade.

Nesse sentido, até que ponto as oficinas foram cruciais na construção da sua relação com cinema ? 

Sem dúvidas foram as oficinas que me deram um norte! Eu morava na zona sul de São Paulo, na parte pobre da Zona Sul de São Paulo, eu sou do Capão Redondo, Jardim Ângela. Talvez não faça sentido pra você, mas pra gente de São Paulo aqui o meu centro era Santo Amaro, que não é ainda região central,  ainda é extremamente zona sul sabe? E foi a primeira vez que eu peguei um ônibus e fui até o centro de São Paulo de verdade. E todo esse esse rolê foi um choque. Tipo, essa descentralização do meu bairro, ver a desigualdade social de São Paulo escancarada na minha cara. 

Outra coisa é que a primeira produção que eu fiz na vida foi um documentário sobre moradores de rua em um desses cursos que fiz. E uma coisa influenciou a outra. Eu conheci muita gente, gente que eu fiz amizade até hoje e com quem eu trabalho. 

Você acha que a democratização ao acesso à arte no Brasil é eficiente na construção de profissionais da área?

Não, eu não acho que é eficiente, eu acho que está muito atrasado. Eu por exemplo, estudava antes num colégio público, e na época, eu nem sabia o que era vestibular. Hoje em dia eu acredito que esteja diferente. Mas eu sinto que é essa informação, sabe? De, olha, temos um curso de cinema gratuito acontecendo. Essas informações não chegam até muitas escolas, até as pessoas da periferia. 

Hoje em dia existem alguns coletivos que cumprem esse serviço de levar informação e arte. Como a Rede Ubuntu, que é uma uma plataforma de cursinhos populares. Eles entendem o poder da arte, então eles incentivam muito tanto sarais como outras coisas no campo da arte. Então eu sinto que ainda não é eficiente, eu sinto que as coisas ainda são centralizadas demais. Apesar disso ter mudado um pouco aqui em São Paulo, até mesmo com eventos como Viradas Culturais e outras coisas no campo da cultura, a arte tem vindo cada vez mais pras periferias. 

Como foi perceber a luta de classes e se enxergar nela dentro das produções em audiovisual ?

Acho que eu ainda estou nesse processo de me enxergar e perceber a luta de classes em absolutamente tudo que eu vivo. Quando eu era mais novo eu não conseguia ler isso dessa forma. Eu ia às manifestações e sabia a importância mas não conseguia entender exatamente o que tava rolando, sabe? Eu sabia que as coisas estavam erradas, as manifestações estavam acontecendo e eu queria estar lá. 

Quando comecei a consumir a arte, quando eu comecei a entrar em contato com a arte, descentralizar e conhecer outras pessoas, essas pessoas me ensinaram muitas coisas. E então eu comecei a perceber. 

O primeiro filme que eu fiz foi um documentário sobre moradores de rua e o segundo que fiz foi uma ficção dentro de uma ocupação, o primeiro eu dirigi e o segundo estava como operador de câmera.  Então, de novo,  entrar nessa realidade e encontrar pessoas que não têm onde morar é muito forte. 

O primeiro filme no documentário que eu fiz a gente foi pras ruas pra conversar com moradores de rua e a gente encontrou um casal no bairro da Liberdade. Eles estavam conversando e a moça estava grávida e eles morando dentro de uma barraca. E cara, ela me mostrou o que eles iam comer no dia. E ela tinha uma panela de pressão e mostrou a comida que já estava extremamente passada, muito, muito azeda. E  aí ela tirou dois sachês, um de mostarda e um de maionese e falou ” ó, a gente vai misturar na comida pra poder disfarçar o gosto”. E cara, isso me atingiu, sabe? Isso reflete em mim até hoje.  E eu acho que eu estou a caminho dessa percepção, de entender que OK, eu estou nesse meio aqui, publicitário, com essa gente e que ao mesmo tempo às vezes a gente acaba encontrando alguns influencers, algumas pessoas mais abastadas e é muito louco. Pô eu não consigo me ver nelas, [nessas pessoas mais abastadas] me conectar com elas, sabe? E a gente tem que ter essa troca também ao mesmo tempo, porque é o que a gente trabalha, a gente tem que, né? Não dá pra, não posso tirar, sabe a humanidade daquela pessoa totalmente. É complexo. 

As pessoas olham muitas vezes o que aconteceu comigo e me questionam o fato de estar estudando marxismo ou comunismo: a pessoa me fala “pô mas você trabalha com cinema“ ainda é uma parada que os cara estão me explorando, o valor da minha diária foi extremamente baixo naquele trabalho [risos]. As pessoas não conseguem entender ainda que é essa a parada: somos trabalhadores, somos explorados, nós temos um lado da história, é importante entender isso, e entender também que nós que trabalhamos com cinema, trabalhamos com audiovisual, do eletricista ao motorista, do motorista até o diretor, a diretora, o ator, a atriz, o operador de câmera… Todos são classe trabalhadora, todos estão trabalhando e entender isso é entender que essa luta de classe existe também nesse trabalho.


E eu acho que eu tô nesse momento de entender essa parada, e de como passar isso, de como trocar ideia com meus amigos do audiovisual ou amigos pessoais, enfim e de fazer arte, produzir arte em cima disso, está ligado? Em cima da luta de classes e trazer a arte também como uma ferramenta política e como uma ferramenta de expressão política!

Quais são suas inspirações dentro do audiovisual brasileiro ?

Cara, sem dúvidas acho que Nelson Pereira dos Santos é uma inspiração. Coutinho sem menor sombra de dúvidas, eu acho que o Coutinho é uma inspiração genial. Eu gosto muito de documentário e pretendo fazer muitos documentários ainda. O Joelzito Araújo e o Glauber Rocha, sem a menor sombra de dúvidas [também são inspiração]… Glauber Rocha.

Qual é a sua visão sobre o cinema nacional e como ele tem se comportado na era do streaming? 

Eu acho que a gente não pode falar do cinema sem política, sem imaginar uma guerra mesmo, sabe? Porque o que os americanos fazem é uma guerra muito real, eles estão em todos os cinemas, vendem os filmes deles e a gente não tem espaço. Essa é a verdade sobre o cinema nacional. A gente tem muito filme bom sendo lançado, muito filme bom sendo feito. Tem muita gente talentosa trabalhando, tem muita gente talentosa que poderia estar trabalhando, poderia estar recebendo dinheiro, pra gente poder ter muitos, muito mais filmes sendo feitos, mas a gente não pode porque a gente não tem espaço dentro do nosso próprio país.

Existe um grande monopólio e eu estou falando da Disney, o que inclusive está se tornando um problema até dentro do país deles. O que eu tenho percebido é que tem vários diretores falando sobre como eles não conseguem mais lançar seus próprios filmes porque não têm espaço. Você tem lá um cinema que é só Marvel ou só Warner e é só eles e é sempre os mesmos, então não, não existe espaço. 

Esses grandes estúdios vêm pro Brasil e fazem produções sem parceria com a Ancine, que está praticamente morta. Ela foi muito sucateada no governo Temer e está respirando por aparelhos com o governo Bolsonaro.

E cada vez mais esses streamings vêm, fazem filmes aqui e são filmes de streaming que são apenas filmes deles em parcerias com produtoras grandes do Brasil, como a Globo Filmes, por exemplo, e esse dinheiro não volta pro Brasil. Esse dinheiro não é utilizado pelo governo brasileiro para políticas públicas e dessa forma o cinema brasileiro ele não é fomentado. Esse dinheiro deveria estar indo para produtoras menores. Eles vêm pra cá e pegam tudo com o que eles tem e levam pra fora, esse dinheiro vai pra fora. Vai sempre pra fora. 

Com produções saindo em grande quantidade e lotando as salas de cinema ao redor do mundo, a Marvel tem prestado um desserviço nesse sentido ?

Penso que existe uma necessidade de regulamentar a forma como os streamings funcionam –  acho que tem muita gente talentosa pra falar sobre – mas penso que deve haver uma regulamentação que proteja a soberania nacional do nosso país, a soberania cultural para que a gente possa ver filmes nossos, sobre a gente, ver esses filmes nos nossos cinemas.

Não só os mesmos filmes de bonequinho [filmes de super herói] que são maneiros, não estou falando sobre qualidade, não estou falando que filme X ou Y é ruim. Eu estou falando que é um mercado e essa questão de demanda pra mim é muito errada porque os caras fazem cinquenta filmes no ano e eles lançam e querem fazer a maior bilheteria em menor tempo para depois já poder lançar outro e outro e outro… É uma cadeia que não se acaba. 

Só gera mais acumulação e essa arrecadação de lucros vai pra um grupo específico, enquanto muitos trabalhadores desses filmes grandes estão passando por muitos perrengues. Quando a gente fala desses filmes a gente não pode só falar dos diretores e toda essa galera grande assim da equipe, a gente tem desde os roteiristas até a galera da elétrica. Um filme envolve muita gente, é uma cadeia muito grande de produção e de gente envolvida e isso fomenta o mercado local do estado, da cidade e do país em que eles estão gravando. Esse movimento todo poderia estar sendo feito aqui em grande escala, entende?

A Marvel foi muito importante pra minha criação dentro do cinema. Porque quando eu era criança eu consumia muito desenho e jogava muito jogo com personagens da Marvel, ao mesmo tempo em que tenho uma relação muito forte com o meu pai em relação a filmes e então crescer vendo essas coisas no cinema foi muito importante pra mim. Eu gosto do universo cinematográfico da Marvel, não são filmes perfeitos. Eu não acho que seja um desserviço, penso que o que ela [a Marvel] faz é arte também e gosto desse universo compartilhado. Não vejo nenhum problema quanto a esse tipo de narrativa, porque é um jeito de contar histórias e é um jeito que funciona.

O que eu acho que é um desserviço é a política predatória da empresa. Não só Marvel Studios, mas a Disney em si eu acho que essa política predatória de realmente querer excluir e eliminar todo tipo de concorrência como se ele tivesse se alimentando, isso é ruim. Pra fazer uma referência à Marvel: a Disney tá se comportando como o Galactus, tá ligado? [risos]. E ela está puxando todas as galáxias e planetas. Está se alimentando de tudo isso e destruindo tudo. Nesse quesito, sim,  eu acho um desserviço. Uma parada que é uma tendência e em algum momento também cai por terra e outra tendência entra no lugar dela. Mas eu acho que de fato essa política – que não é só dessa empresa mas de outras – eu acho triste.

O que te provoca no cinema ? 

Eu gosto muito de relações, sabe? Eu gosto muito de filmes sobre relações. Sobre pais e filhos, sobre amores, sobre encontros e desencontros e como as pessoas entram na sua vida e te moldam e outras pessoas chegam. Eu estava em uma aula de literatura e um professor falou sobre uma música do Vinícius de Moraes, Samba de Benção, eu ignorei todo o resto da música e foquei nessa parte só, não lembro do resto da música, eu só lembro dessa parte que ele fala “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro”. Eu vejo exatamente isso. Essa parada de a vida ser uma arte de encontrar pessoas mexe muito comigo, me instiga a querer descobrir, a querer ir atrás, saber, conversar, ir atrás de ver como as coisas acontecem, como eu acho que tem um pouco dessa ideia também, podemos dizer um pouco mais de esquerda,  eu acho que o coletivo é muito importante. Eu gosto de entender e pesquisar e ver no cinema essas relações humanas.

Produzindo ou assistindo, qual foi a última vez que você chorou com a arte ?

Recentemente eu revi um filme chamado Mid90’s e eu chorei de novo pela segunda vez, ele é lindo. Essas relações masculinas de meninos que estão aprendendo, estão saindo da infância pra ir pra adolescência e alguns saíram da adolescência pra ir pra uma vida adulta, eu chorei horrores com aquele filme quando vi a primeira vez e recentemente eu chorei com ele de novo.

Por fim, para que serve o cinema ?

Eu acho que quando a gente fala de cinema não existe um só cinema, sabe? Existem vários cinemas e vários porquês e pra quê. Cinema é uma arte de hipótese e pode e é o tempo inteiro usado como arma política. Você tem blockbusters que são feitos de forma política. As pessoas usam pra se expressar e isso também é uma forma de usar o cinema como política, você se expressar, é política. Eu acho que cinema ele é política ao mesmo tempo que cada um tem o seu cinema. Pra mim o cinema  é uma arma política, eu acho que ele serve pra isso. Tanto pro bem quanto pro mal, sabe? Eu acho que ele é uma ferramenta de fazer política muito forte, uma ferramenta de mostrar desigualdades sociais, é uma ferramenta de luta de classes, eu acho que o cinema pra mim é isso, mas eu acho que a gente nunca vai chegar numa conclusão do que é o cinema, porque  acho que existem diversos tipos cinema e a partir  daí para cada um vai ser um tipo de coisa, um tipo de uma transformação.

Em seu Instagram, Pedro produz um excelente trabalho de fotografia e seu próximo projeto é a direção de fotografia do curta-metragem Quem matou verônica, da produtora St. Jude Filmes.

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