- O ônibus verde - 10 de agosto de 2023
- Nostalgia e Pop rock: Os acertos de Taylor Swift com o Speak Now (Taylor’s Version) - 20 de julho de 2023
- Deputada Rosângela Rezende planeja ato em visita de Lula a Rio Verde - 15 de junho de 2023
Não é de hoje que a TV Globo é conhecida no país como uma das emissoras mais inclusivas quando o assunto é representatividade LGBTQIA+. Em 2021, ao longo de três episódios, a série documental Orgulho na Tela, disponível no Globoplay, percorreu a trajetória de personagens da comunidade LGBT nas tramas de telenovelas da casa, a evolução da pauta na sociedade e nas narrativas das produções que têm cada vez mais personagens da sigla.
A novela Vai na Fé, o mais recente fenômeno da Rede Globo, exibiria no último dia 10 de maio o primeiro beijo entre as personagens Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman), também conhecidas como Clarena, nome do ship (encurtamento da palavra relationship, que significa relacionamento) escolhido pelos fãs do casal. Os comentários eufóricos nas redes giravam em torno deste acontecimento, mas antes do fim do capítulo, a hashtag Globo apoia a censura estava entre os trending topics do Twitter depois que os telespectadores testemunharam o corte da cena, segundos antes de o beijo acontecer, após uma semana de expectativas alimentadas pelo resumo da novela fornecido pela própria emissora.
Em resposta à repercussão negativa, a Globo disse em nota que “toda novela está sujeita a edição, em uma rotina que atende às estratégias de programação ou artísticas”. Mas que estratégias têm como efeito a censura de um beijo entre duas mulheres? Na mesma semana, dia 16 de maio, outro beijo lésbico, entre Olga (Camila Pitanga) e Ivona (Elisa Volpatto) foi censurado na série Aruanas, original Globoplay. O corte na cena aconteceu apenas na exibição da TV, pois no streaming a sequência do beijo é exibida na íntegra.
A censura a casais e outros assuntos que envolvem a comunidade LGBT não é surpresa para quem vive no país que mais mata pessoas queer no mundo, mas soa contraditória quando vem de uma empresa que orgulhosamente se diz aliada da causa. É fato que a TV Globo sai na frente no cenário nacional em relação a produções culturais mais diversas, mas a partir desses e de outros acontecimentos, essa imagem fica um pouco arranhada e nos leva a refletir sobre as verdadeiras motivações por trás dessas “estratégias”.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Nielsen, o gasto médio da população LGBT no Brasil é 14% maior que o do resto dos brasileiros, além disso eles gastam 67% a mais em produtos de conveniência, como alimentos, bebidas e produtos de higiene e beleza. Portanto, uma das razões para as empresas começarem a enxergar a comunidade queer, é o seu potencial de compra. Hoje, grande parte do lucro das emissoras de televisão vem de comerciais, assim eles precisaram reformular seu catálogo para atrair a população LGBT e tornar a sua grade atraente também para os anunciantes.
Porém, o público tradicional não pode ser deixado de lado, já que ainda compõe a maior fatia dos telespectadores. A solução é adotar uma estratégia que agrada a gregos e troianos, mesmo que superficialmente. De memória, é fácil recordar grandes personagens gays que fizeram sucesso na programação da Globo como o vilão Félix (Mateus Solano), o jornalista Téo Pereira (Paulo Betti), o mordomo Crô (Marcelo Serrado), que protagonizou dois filmes depois do fim da novela Fina Estampa, e até a mais recente personalidade LGBT da emissora: Gil do Vigor.
Todos esses personagens que caíram nas graças do povo têm algo em comum além da orientação sexual: são todos homens. A Revista Mundo Estranho fez um levantamento, com dados dos sites Memória Globo e Teledramaturgia, resgatando o histórico dos últimos 70 anos dos personagens LGBT em telenovelas. Entre os dados coletados, uma coisa chama bastante atenção porque, coincidentemente, mais da metade do percentual representativo na teledramaturgia da emissora é composto de homens gays.
Na história do movimento LGBT, assim como em diversas outras lutas e setores da sociedade, o protagonismo sempre esteve a cargo de homens, em sua maioria brancos e cisgêneros. Mulheres lésbicas e bissexuais tiveram que lutar não só contra o preconceito de fora, mas também pelo seu lugar dentro do movimento. Essa porcentagem de 15,5% de personagens lésbicas frente a quase 60% de personagens gays não é por acaso e se estabelece como um reflexo do patriarcado dentro da luta por representatividade.
A invisibilidade lésbica, não é assunto novo, nem exclusivo das telenovelas, mas com elas temos uma amostra de como isso funciona no dia a dia. A censura imposta para casais sáficos, formados por mulheres, no audiovisual é mais do que homofobia, é fruto das opressões que corpos femininos sofrem no capitalismo. Tudo nesse sistema econômico tem valor de produto, sendo assim, precisa também ter características que agradem os consumidores.
Ao escolher dar mais destaque e “liberdade” a personagens gays, e consequentemente homens, que em sua maioria atendem a idealização caricata da sociedade, a TV Globo faz uma escolha consciente que tem um único objetivo: agradar o mercado. Dessa forma, pode fazer especiais temáticos no Mês do Orgulho e ao mesmo tempo divertir a família tradicional brasileira com as frases de efeito da “bicha” afeminada da novela. Neste momento, as três novelas inéditas em exibição na grade tem pelo menos um casal gay na trama.
A emissora quer lucrar com a bandeira da representatividade, mas tudo tem limite. Neste caso, o limite é claramente traçado para casais desenvolvidos entre dois homens onde pelo menos um deles precisa performar feminilidade, porque essa é a versão vendável. Isso não ocorre com casais lésbicos porque a liberdade feminina não é algo atraente em sociedades patriarcais. Os relacionamentos, assim como todo o resto, precisam estar sob o controle de homens. Se não existem homens nessa relação, ela automaticamente se torna não verossímil, não quista pela audiência e, portanto, sem valor de mercado.
É claro que casais gays também sofrem discriminação e tem muito menos espaço na tela do que casais héteros, mas é preciso reconhecer que privilégios de gênero tornam suas experiências diferentes das de representações de mulheres lésbicas. A série Aruanas, já citada, na mesma semana censurou um beijo lésbico e exibiu um beijo gay em rede nacional, sem cortes ou qualquer tipo de censura.
A filósofa estadunidense Judith Butler, que tece uma crítica ao feminismo na construção de uma teoria queer, fala um pouco sobre a questão da diferença de tratamento que pessoas LGBT sofrem de acordo com o seu gênero. Segundo ela, mulheres não vão alcançar a igualdade de gênero porque o problema advém desse binarismo, que simplifica e oprime singularidades humanas não “adequadas” ou “corretas” para o cenário atual em que entendemos os relacionamentos amorosos.
O binarismo é parte do problema porque resume os relacionamentos entre: a pessoa que performa feminilidade e a pessoa que performa masculinidade. Assim, a lesbianidade nunca vai se adequar a esses padrões, sem a caricaturização pela qual os casais gays passam nas novelas, onde um desempenha o papel do “homem” e o outro da “mulher”, ou em papéis que fetichizam relações sáficas. Com esse tipo de representação superficial e excludente, a TV Globo faria mais pela comunidade flamulando uma bandeira com as cores do arco-íris entre comerciais de margarina e presunto no dia 28 de junho.
Para incentivar produções de conteúdo cada vez mais espelhadas na diversidade da nossa sociedade, como a emissora alega fazer com a criação do Núcleo de Diversidade Somos, é preciso mais do que fazer grandes especiais datados e colocar em cena personagens vazios que não podem demonstrar afeto como pessoas reais. Colocar pessoas LGBT no topo é um dos principais passos para alcançar verdadeira representatividade.
Não só diretores, roteiristas, autores e atores membros da comunidade, mas também incluir LGBTs na cúpula responsável por tomar grandes decisões que ditam como essas representações serão feitas e de onde partem as censuras estratégicas. Em verdadeiros esforços, principalmente em relação a relacionamentos lésbicos na televisão, é preciso deixar nítido que mulheres são donas do próprio corpo, que esses corpos não precisam de censura e nem disfarce para existir na sociedade.