- O terminal como cenário de histórias de vida: o ir e vir do trabalhador durante a Pandemia - 22 de janeiro de 2024
- Autodiagnóstico de psicopatologias pelas redes sociais: as consequências enfrentadas por psicólogos e pelos pacientes - 17 de janeiro de 2024
- Violência doméstica e feminicídio: por que ainda persistem no Brasil? - 18 de dezembro de 2023
Apesar de contar com representantes proeminentes, o cenário do Hip Hop em Goiânia é raramente lembrado quando o assunto é a cultura regional. A capital é conhecida por ser a “capital do sertanejo” e pela forte presença do agronegócio, o que pode contribuir para o apagamento dessa subcultura, tanto pelas lentes de quem não mora na região quanto da própria população local.
A falta de representatividade no cenário nacional pode ser frustrante para muitos artistas que trilharam o seu caminho a partir de condições precárias e que se encontraram através da arte. As batalhas de rap e slam (competições de poesia falada), os grafites e as danças urbanas são exemplos de componentes da cultura hip hop que carecem de valorização e reconhecimento.
Embora esse cenário às vezes pareça definitivo, em setembro de 2022, o Hip Hop foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial de Goiânia pela Câmara Municipal e pela Prefeitura, que classificou o movimento como uma expressão social, artística e política. Essa ação prevê maior respeito e reconhecimento ao trabalho dos artistas que estão inseridos na cena.
Esse passo é de grande importância não só para o fomento da cultura e integração local, mas também para artistas como Sara Linhares, rapper de quebrada cuja alma fala através das letras de suas músicas e suas composições de slam. A artista lançou o seu primeiro trabalho no rap, o EP Rapeviviências, no início de 2023. Nele, Sara faz denúncias sociais e sistêmicas, critica o apagamento do rap no centro-oeste e muito mais. Em entrevista, ela nos conta um pouco sobre quem é e como sua vida mudou depois que começou a fazer rap e participar de batalhas de slam.
Confira abaixo:
LN: Primeiro, gostaria de saber sua história de vida. Quem é Sara Linhares?
Sara Linhares: Eu nasci em Aparecida de Goiânia, sou a filha do meio. Quando eu era muito nova me mudei pro Mundo Novo, ali perto da divisa com Tocantins. Tenho poucas lembranças dessa época, mas são todas boas. Viemos para Goiânia porque minha mãe tinha problema no coração e não tinha como tratar lá. Nós fomos morar de favor atrás de uma igreja, e nessa época, minha mãe cuidava de crianças, então era muito divertido, porque eu sempre tinha com quem brincar. Algum tempo depois meu pai conseguiu um emprego como servente de pedreiro e nos mudamos para um lote que minha mãe tinha em Aparecida. Nessa época, meu setor ainda estava em construção, tinha pouquíssimas casas e não era asfaltado. Então, era muito perigoso. A polícia já teve que passar por lá e dar orientações em caso de tiroteio porque aconteciam muitos confrontos por territórios. Como eu morava no final da rua, era comum ter fugitivos indo se esconder da polícia ali perto, ou troca de tiros. Era comum presenciar esse tipo de coisa. Depois entrei no IFG (Instituto Federal de Goiás), me formei, não exerci a profissão. Agora faço Letras – Português na UFG. Sempre gostei de poesia e literatura, e queria ser professora.
LN: E qual foi o seu primeiro contato com o rap e com o slam?
Sara Linhares: O slam veio um pouco mais tarde, mas meu primeiro contato com o rap veio através do meu pai e do meu tio. Meu pai era muito religioso, mas antes de entrar na igreja ele ouvia muito rap, e sempre cantava Gabriel Pensador, Racionais pra mim e para as minhas irmãs. Nessa época, eu também era muito religiosa, e não podia ouvir música “secular”, mas sempre que ia pra casa do meu tio, e ele colocava algumas músicas pra gente ouvir. Eu lembro de ouvir Ao Cubo e AP 16, que são bandas de rap gospel, e me apaixonar instantaneamente. Só mais tarde, no ensino médio, eu comecei a escutar outros artistas como Racionais e Sabotage. Mas o rap gospel foi o meu primeiro contato. Já com o slam, meu primeiro contato foi em 2019, com o Jordan e o Peri. Eles foram o primeiro grupo a fazer batalha de slam aqui em Goiânia, e eu quis fazer aquilo desde o momento que eu descobri o que era.
Sara dá oficinas de slam para crianças e adolescentes. Foto: Acervo Pessoal.
LN: De onde veio a inspiração para o nome do seu EP, Rapevivências?
Sara Linhares: Veio do termo “Escrevivências”, da Conceição Evaristo. O conceito é basicamente partir de um grupo marginalizado, historicamente apagado, e retomar esse local de fala, de escrita, para falar sobre suas vivências, mas atravessadas por uma coletividade. Isto é, não falar só sobre as minhas vivências, mas de todos aqueles que me cercam. Da mesma forma que Conceição Evaristo faz isso na literatura, eu tento trabalhar algumas questões no meu EP, como o apagamento do rap feito no Centro-Oeste e a forma como somos estereotipados.
A arte daqui que chega em outros lugares é muito caricata. É sempre o sertanejo, ou alguma coisa do ‘modão’. É aquilo que eles assumem que é goiano. E quando o nosso rap chega até eles, chega sem que ninguém saiba que é goiano.
E não só isso, mas também as questões de ser mulher e periférica. A música em que eu mais contemplo essas questões é “Novo Testamento”. mulher e periférica. A música em que eu mais contemplo essas questões é “Novo Testamento”.
LN: Então você acha que a falta de valorização e reconhecimento da cena goiana não é por falta de representatividade, mas pela forma como Goiânia é vista por quem é de fora?
Sara Linhares: Com certeza. A gente tem muito artista bom, temos muito material bom pra “estourar”. Mas é um cenário que ainda está se solidificando. Dá pra perceber essa solidificação da cultura urbana quando você vai, por exemplo, no Beco da Codorna com o Baile Black, na Rua 8, no Meio Bar…Enfim, é algo que ainda está sendo construído. O que falta é o pessoal daqui começar a escutar a gente. Eu acredito que a gente tem que fortalecer a cena aqui dentro de Goiânia para estourar no Brasil todo, igual foi em BH. Primeiro foi o Djonga, depois o funk estourou, agora muitos artistas mineiros são conhecidos. Mas eles já tinham uma cena muito fortalecida, que acho que ainda estamos construindo. Se um artista daqui, que colabora só com artistas locais “estoura” no Brasil, ele consequentemente dá nome a todos esses artistas.
O Beco da Codorna, além de ser o cenário do Baile Black, também conta com pixos e grafitagens, outros componentes da cultura Hip Hop. Foto: Acervo Pessoal.
LN: Você acredita que sua formação em Letras, ainda em construção, influencia na sua escrita (tanto de slam quanto de rap)? Você acha que esse processo se torna mais difícil ou mais fácil?
Sara Linhares: Com certeza influencia. Rapevivências é um exemplo disso, foi algo que eu aprendi na Academia e achei muito interessante e resolvi usar. Mas também atrapalha no sentido de talvez deixar as coisas muito acadêmicas. Por exemplo, às vezes a gente classifica uma letra como muito boa, com muitos trocadilhos e referências, mas muitas pessoas não conseguem entender aquilo, e ela acaba não sendo tão boa assim. Se muitas pessoas não entenderam, só faz sentido pra algum grupo específico, então talvez não seja tão bom assim. Talvez as pessoas na Academia entendam, mas quem tá na rua não.
LN: E você não acha que trazer isso talvez seja uma forma de instigar essa busca por entender o que está sendo dito na letra?
Sara Linhares: Eu acho que existem formas de fazer isso. Às vezes a pessoa entende pelo contexto ou aquilo desperta a sua curiosidade e ela busca entender melhor o que aquilo significa. O problema está em trazer muitos conceitos que não se conectam com a sua ideia, porque uma pessoa pode não entender um conceito específico, mas ela entende a sua ideia. Se seus conceitos não se ligam de maneira clara com a sua ideia, aí eu acho que atrapalha.
LN: Quais experiências relacionadas à arte mais te marcaram?
Sara Linhares: Acho que foi uma oficina de slam, lá no Cepae. Todas as oficinas de slam que eu já dei me marcaram muito, porque eu tive muito contato com as pessoas. O processo de explicar minha arte, mostrar ela e meio que dizer “vamos fazer isso também?”. Essa troca é muito importante. Uma vez eu dei uma oficina em Goiás Velho, durante o Festival de Artes de Goiás, e algumas meninas me mandaram mensagem no Instagram. E uma em específico me mandou várias poesias, e eu falei que ela deveria competir em uma batalha. Algum tempo depois, recebi uma foto dela em uma batalha. Ela e as amigas se mobilizaram e fizeram uma competição de slam na própria escola. Isso me marcou muito.
LN: O que o slam e o rap trouxeram de mudança na sua vida?
Sara Linhares: Então, eu sempre fui uma pessoa com dificuldade de expressar meus sentimentos e minhas ideias. Eu sempre escrevi bastante, mas eram coisas meio desconexas, e eu não sabia como escrever, e o slam me salvou, de certa forma. Eu realmente acredito que foi um encontro de almas, de verdade. Na primeira vez que eu escrevi, eu senti um alívio. Eu acho que todo mundo deveria ter essa experiência de escrever algo sobre suas vivências e apresentar. Você deixa tudo aquilo que te pesa naquela poesia, e quando você apresenta, você percebe que essas coisas já não te pesam tanto.
A cena de rap goiano conta com muitos outros artistas de qualidade, como VH, O Escrivão. Foto: Acervo Pessoal.
LN: A comunidade do Hip Hop é, de maneira geral, crítica de problemas sociais e sistêmicos. Temas como machismo, elitismo e racismo sempre são abordados. Você, estando dentro desse meio, acredita que isso é homogêneo? As críticas são sempre autênticas e de fato vivenciadas? Ou esses problemas criticados também estão dentro do Hip Hop? Quais críticas você faz à comunidade nesse sentido?
Sara Linhares: Quando a gente fala de Hip Hop, a gente tá falando de uma cultura. No rap, ou seja, na música, a gente considera que a pessoa está dentro da indústria cultural, então o processo de escrita se torna mecânico, é falar o que vende. Eu não acho que todo mundo que faz crítica social queira só ganhar dinheiro. Existem várias vertentes do rap, como o trap, que não têm tanto compromisso com a mensagem, com a crítica. Mas isso existe no boombap, por exemplo, outra vertente. E a gente tem muitos casos de homens que estão nesse meio e falam sobre machismo e que na verdade são agressores, ou artistas que criticam o racismo e na verdade são tudo o que criticam. Eu acho que, assim como em qualquer outra vertente, nem todo mundo fala só o que vive. Não acho que isso agrega em nada, mas também não acho que machuca. A grande questão é quando um artista levanta um grande debate sobre algo, mas a pessoa em si é problemática. Aí entra toda a questão de separar o artista da obra. Eu realmente não sei até que ponto a gente consegue entender isso. A música cria um debate, e se depois eu descubro que aquela pessoa é falsa, no que isso impactou? No que isso mudou? Agora, se um festival, por exemplo, abre portas para uma pessoa assim, aí eu já acho que é errado.
LN: E, por último, o que você desejaria que as pessoas soubessem sobre artistas independentes no Brasil, que estão buscando reconhecimento não só no cenário musical, mas em qualquer área de produção artística independente?
Sara Linhares: É muito importante que as pessoas entendam que, apesar da gente pretender ganhar dinheiro, nós não estamos dispostos a fazer qualquer coisa pra fazer sucesso. Nós temos um compromisso muito grande com a nossa arte, de divulgar. E as pessoas não dão muita relevância porque ainda não estamos onde deveríamos estar para que elas consumam, no mainstream. E esse processo é muito longo e difícil, e é inclusive onde muitas pessoas perdem sua essência. E outra coisa muito importante é que artistas independentes não são nem um pouco menos artistas só porque são independentes. Somos artistas. Independente é só um detalhe. As pessoas têm essa visão de que, se você é um artista independente, você é ruim.