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Eram 6h34min da manhã, e o terminal do Araguaia parecia abrigar todas as pessoas da região centro-oeste ao mesmo tempo. Senhoras se empurravam nas catracas, homens passavam na frente um dos outros sem pedir licença, crianças corriam e choravam enquanto suas mães tentavam defendê-las da violência do ambiente. Filas enormes se formavam em cada plataforma, e uma em específico, a da linha 580, parecia se destacar, formando quase um caracol humano de tantas pessoas esperando pelo ônibus. 

Apesar da confusão do ambiente, todos ali pareciam acostumados: quando o ônibus chega, todos seguem a fila, mas, conforme o veículo vai ficando cheio, o melhor a se fazer é abrir espaço para aqueles que estão atrás, que vêm correndo e atropelando tudo e todos que estão em seu caminho, para entrarem no coletivo a tempo e não chegarem atrasados no trabalho. 

“É um absurdo, mas aprendi a me acostumar”, diz Márcia, que andou de ônibus a vida toda e chegou a trabalhar em um terminal durante a pandemia. 

A conheci na fila do ponto de ônibus,  enquanto reclamávamos da demora.  Ela me contou que estava indo visitar a mãe no hospital, e precisava estar lá no horário. Parecia preocupada. Perguntei se era algo grave, mas aparentemente havia sido só um machucado. 

“Sabe como é, gente mais velha quando inventa de fazer alguma coisa, não tira da cabeça, e ela cismou que queria limpar em cima do armário. Subiu na cadeira e caiu”. 

“Sei bem como é”. Na verdade não sabia, mas queria continuar ouvindo-a falar. Márcia parecia ser aquele tipo de pessoa que tem ótimas histórias, e que consegue contá-las de maneira que cativa as pessoas. Ao me contar da sua vida, comentou que já trabalhou em terminais vendendo salgados durante a pandemia, e foi quando perguntei se poderia entrevistá-la. Ela pareceu surpresa com o convite, mas aceitou. Disse que poderia ser ali mesmo, dali algumas horas, quando estaria voltando para casa. Seria o mesmo horário que eu estaria voltando para casa, então foi o encontro perfeito. 

Nos encontramos às 14h30min, quando o sol preenchia o ambiente completamente. Comprei duas garrafinhas de água e esperei por ela. Faltavam 52 minutos para o meu ônibus passar, então tinha muito tempo disponível. Enquanto esperava, percebi como o ambiente era mais calmo naquele horário. Os funcionários que trabalhavam naquele terminal pareciam mais relaxados e descontraídos, conversavam entre si e riam. Os ônibus iam e chegavam vazios, e de um deles, 971, Márcia desceu. Nos cumprimentamos, falamos um pouco sobre o clima, sobre como o local estava mais agradável e a perguntei sobre a situação de sua mãe. 

“Ela já está melhor, foi só um susto”. 

Ela parecia mais aliviada naquele momento, sua feição estava mais suave do que de manhã. Sua mãe trabalhava em uma mercearia ali perto, no Jardim Belo Horizonte, desde 2010, vendendo bebidas, cigarros e fichas de sinuca. Ela parecia muito nostálgica e melancólica ao falar da mãe, principalmente ao ressaltar as dificuldades que enfrentou ao longo da vida. 

“Meu pai não foi muito presente. Trabalhava no bar também, mas estava sempre bebendo e  conversando com o pessoal que frequentava lá. Minha mãe foi muito solitária”. Esperei que ela continuasse, mas ela parecia estar perdida nessas memórias. Ofereci água e perguntei um pouco sobre ela, sua história de vida. 

“Nasci lá na Bahia, meus pais me tiveram quando ainda eram muito novos. Eles já eram casados quando meu irmão mais velho nasceu. Se separaram após alguns anos e entre alguns encontros que tiveram..” Ela ri. 

“Foi quando me tiveram. Até tentaram reatar, mas viram que não tinha jeito mesmo. Continuaram juntos como se fossem casados, dormiam na mesma cama, trabalhavam juntos, iam a festas de família, mas todos sabiam que estavam separados. Acho que ninguém nunca pensou em questioná-los sobre essa situação. Parecia natural”. Perguntei como essa relação complicada a afetou. Ela parecia voltar sempre ao assunto dos pais, parecia querer falar deles. 

“Ah, eu e meu irmão nos acostumamos com isso. Nos mudamos para Aparecida de Goiânia quando ainda éramos novos, eu tinha 8 e meu irmão 15, e aqui as coisas começaram a mudar. Meu pai sempre estava saindo com mulheres diferentes, mas voltava para casa à noite. Minha mãe ficava em casa cuidando de nós, mas às vezes, quando não tinha dinheiro para babá, nos levava para o bar. Aprendemos a lidar com os clientes e sermos independentes desde cedo. Mas, quando chegamos na idade de trabalhar de verdade, minha mãe não quis. Queria que fizéssemos faculdade. 

E fizeram? 

“Meu irmão nem tentou, disse que aquilo não era pra ele. Vivia saindo com os amigos e ia mal na escola. Eu tentei, estava juntando dinheiro para cursar Pedagogia, mas acabei engravidando na hora errada. Já trabalhei de muitas coisas nessa vida. Já fui vendedora, atendente em lojas, vendedora ambulante…”. 

Márcia, agora com 37 anos, parecia mais animada em falar. Parecia estar se interessando pela própria vida nesse momento. Perguntei quando ela começou a trabalhar no terminal. 

“Comecei a vender salgados no terminal ali do Veiga Jardim, acho que no final de 2019, início de 2020. Como era proibido vendedores ambulantes, tinha que ser bem disfarçado. Mas acho que até os funcionários e guardinhas se acostumaram comigo ali. Vendia pipoquinhas, salgadinhos e doces. Ficava lá quase que o dia inteiro, observava bastante… Era um pouco exaustivo, poucas pessoas compravam. Engraçado, parece que na época da pandemia as pessoas compravam mais”. 

Terminal Veiga Jardim, 2024. Imagem: Maria Eduarda Silva

Perguntei sobre como foi trabalhar durante a pandemia com um filho, e com um emprego que não lhe garantia uma renda fixa. “Nessa época eu ainda recebia seguro desemprego. Comecei a vender pra ganhar uma renda extra mesmo. Meu filho,  que devia ter uns 12 anos na época, ficava com a minha mãe durante o dia, e eu trabalhava para segurar as coisas em casa. Foi uma decisão difícil, trabalhar na pandemia naquele local, mas não queria ficar parada em casa. Graças a Deus eu e minha família ficamos bem. Ninguém pegou Covid.”

E ela realmente parecia grata. Quis saber um pouco mais sobre o que ela havia vivenciado durante aqueles meses trabalhando ali, lidando com tantas pessoas. 

“Foi muito diferente. Algumas pessoas fingiam nem ouvir quando eu passava oferecendo, e outras me olhavam com uma cara de desprezo. Talvez nem fosse isso, mas era o que parecia pra mim. Pouquíssimas pessoas paravam para conversar, mas conheci muitas pessoas diferentes. Conversava com as senhorinhas e os senhores que passavam por ali, um ou outro jovem voltando do trabalho ou estágio. Conheci pessoas muito sábias, vividas, mas conheci alguns malucos também.”

Márcia agora parecia completamente à vontade. Me contava sobre sua vida como se fossemos grandes amigas de longa data. Perguntei sobre as diferenças de comportamentos das pessoas em relação ao Covid. 

“No começo foi muito estranho. Ninguém sabia se era pra usar máscara ou não, se era pra se manter afastado ou não. Quando a coisa ficou séria, eu fiquei com muito medo também. Não saía de casa sem máscara e álcool em gel. Estava apavorada, mas precisava trabalhar. As pessoas no terminal pareciam estar na mesma. Algumas pessoas não sabem, mas muitas pessoas trabalharam durante a pandemia, enfrentando ônibus lotados. Foi tenso. Lembro que não podiam ir muitas pessoas no mesmo ônibus, e os guardinhas ficavam de olho pra não entrar muita gente de uma vez só. Uma vez, um rapaz estava com o filho e tentou entrar, mas não pôde. Ele insistiu com o guarda e eles começaram a discutir. Só sei que esse homem chegou a apanhar de cassetete, na frente do filho, e alguém teve que separar a briga”. 

Ficamos um pouco em silêncio. Perguntei sobre outros momentos parecidos que ela vivenciou. 

“Graças a Deus nunca aconteceu comigo. Mas sempre havia discussões sobre passageiros pulando catracas, os motoristas de ônibus brigando entre si, com passageiros, com os guardas. Era sempre uma loucura. Mas era engraçado também. Todo dia era um tumulto”. 

Rimos. Éramos pessoas tão diferentes, de realidades e vivências tão distintas, mas mesmo assim compartilhamos as experiências universais que são protagonizadas em terminais.  Pedi para ela me contar um exemplo de tumulto. 

“Nessa mesma época da quarentena, os ônibus demoravam muito. Parece que sempre estão atrasados, mas nessa época parece que estavam mais, e os passageiros sempre faziam um escândalo. Começavam a gritar com os motoristas, os funcionários, até a polícia que às vezes ficava lá tinha que ouvir as reclamações. Acho que teve um dia que o ônibus demorou demais, e todos os passageiros decidiram proibir a passagem de todos os ônibus até que o deles saísse. Como o terminal é um pouco pequeno, eles deram as mãos e fizeram uma barreira humana ali mesmo, no meio do lugar. Nenhum ônibus conseguia sair do lugar, e eles ficaram ali, parados, na frente dos ônibus, impedindo que passassem. Outras pessoas que estavam esperando outros ônibus foram ajudar. O mais engraçado de tudo é que realmente deu certo. Passaram uns 5 minutos e o ônibus saiu”.      

Imaginei a cena por um tempo, e rimos novamente. Márcia parecia distraída, alegre, lembrando dos detalhes com carinho. Parecia ser a primeira vez que relembrava esses momentos, ela estava absorta na imaginação. Por fim, perguntei se essa experiência mudou sua vida de alguma forma. 

“Claro que sim. Me fez perceber muitas coisas, e pensar em muitas coisas também. Eu estava disposta a me arriscar para dar uma condição melhor para a minha família. E vi que muitas outras pessoas estavam na mesma situação, e não tinham outra opção. Elas estavam ali, trabalhando enquanto deveriam estar seguras em casa. Pode parecer meio esquisito, mas parece que ver tudo isso me fez me sentir menos sozinha, porque eu via que outras pessoas estavam em uma situação desesperadora como eu. E mesmo assim, estavam ali sorrindo todos os dias, vivendo suas vidas, encontrando amigos e conhecidos enquanto comiam um salgado. Mesmo com pouco, a gente tem mais do que imagina. Já vi que o ser humano pode ser muito ruim, mas pode ser muito bom também. Às vezes é nisso que temos que acreditar”. 

Por fim, perguntei quais eram os sonhos que ela ainda gostaria de realizar. 

“Sonho em ver meu filho bem, fazendo faculdade. Ele é muito inteligente, ama física e matemática. Queria pelo menos ter a certeza de que ele vai ter um futuro antes de eu partir. Mas acho que no fundo só quero que ele seja feliz, e muito amado”. 

E você?  

“Ainda quero viver muito”. Ela ri um pouco. “Ainda preciso trabalhar muito, mas também quero poder ficar em casa, descansar, quem sabe viajar de vez em quando. Mas não me incomodo de passar mais alguns anos trabalhando”. 

Encerrei a entrevista ali, agradeci pelas palavras e entrei no ônibus. Lembrava-me de cada palavra daquela conversa com Márcia, e de tantos que não tiveram opções e se arriscaram no trabalho durante a pandemia, mas um passageiro discutindo com o motorista me tirou do modo contemplativo.  É… o terminal não para. Como Márcia resume: todo dia um tumulto.

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