Tecnologia e infância: Coordenador do Media Lab BR explica importância do uso supervisionado das mídias digitais

As ferramentas tecnológicas fazem parte do cotidiano e são inseridas na vida da criança desde o início do seu desenvolvimento, mas até que ponto isso pode ser um benefício?
nov 1, 2023 , ,
Tempo de leitura: 12 min
Ana Tereza do Vale
Foto: Ana Tereza do Vale

Atualmente, as crianças são introduzidas aos aparatos tecnológicos desde muito cedo, muitas vezes sem uma supervisão ou uma mediação adequada. Cleomar Rocha, professor associado da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenador do Media Lab BR, fala sobre a importância da dosimetria e do monitoramento parental nas atividades dos filhos nas mídias digitais, ele também explica o motivo do ser humano, como animal, ser atraído por telas. Além disso, o professor esclarece ao longo da entrevista a diferença entre tecnologia e aparatos tecnológicos.

Sabe-se que a criança, quando no início do processo de desenvolvimento e aprendizagem, aprende por imitação e repetição, por isso a participação da família nesse processo é tão importante. Quando as mídias digitais supervisionadas podem ajudar nesse processo?

Cleomar Rocha: Supervisionada sempre. Há de se notar que o aprendizado pela imitação e repetição, não é exclusiva da criança, todos nós aprendemos, tem um estudo específico sobre um aprendizado por imitação, que caracteriza os neurônios espelho, então é uma característica animal, inclusive do ser humano, esse tipo de aprendizagem.

Naturalmente que a tecnologia ativa determinados circuitos neuronais, que possibilitam o desenvolvimento tanto cognitivo, quanto motor, mas é preciso que isso seja supervisionado até porque a criança, incluindo alguns adultos, não tem ideia do limite, não sabe organizar especificamente a sua jornada de absolutamente nada. Então se você deixar uma criança sem supervisão, ela pode morrer de fome, do mesmo modo que alguns gamers já tiveram problemas porque não pararam de jogar sequer para comer.

De fato, a tecnologia pode, desde que supervisionada, auxiliar em todos os tempos. É preciso mensurar qual o nível de atividade neuronal que se encontra e que tipo de influência a tecnologia vai estabelecer, porque nós como animais somos encantados pela luz, as telas nos encantam, sobre a maneira como a TV nos encanta, enfim, assim ficamos por muito tempo diante de telas vendo uma série de coisas e é preciso estabelecer limite.

Existe alguma recomendação de uma idade ideal para que a tecnologia seja introduzida para a criança?

CR: Ideal ainda não se tem, existe uma discussão sobre isso, se a partir dos dois anos, se a partir dos seis anos. O que me parece é que depende muito exatamente do tipo de acesso que se tem, e de quanto tempo essa criança permanece na frente de uma tela. Adianta pouco, por exemplo, os pais proibirem uma criança de estarem na frente de uma pequena tela de um tablet, computador ou smartphone, e deixá-la ficar o tempo inteiro na frente da TV, adianta pouquíssimo uma mudança como essa.

É preciso dimensionar bem, principalmente em relação ao conteúdo e as atividades demandadas pela criança em relação a isso, se a criança ficar por muito tempo jogando, por exemplo, há de ter um comprometimento, porque a ideia de jogo, como algo que não tem aderência à realidade, pode impactar o crescimento da criança.

Atualmente, as crianças estão sendo taxadas como “mais inteligentes” por conseguirem manusear as tecnologias com facilidade, você acha que as crianças estão de fato mais inteligentes ou essa facilidade é resultado da evolução da tecnologia?

CR: Eu acho que quem faz esse tipo de relação é menos inteligente. Não há, de modo algum, índice de inteligência baseado nesse tipo de relação. O que nós temos são inteligências diferentes sendo exercitadas em função da tecnologia. Claro que se as crianças têm uma facilidade maior no manuseio dos dispositivos tecnológicos, isso não significa necessariamente que elas estejam mais inteligentes do que no passado, inclusive, porque ali inicia um processo de quase serem reféns da solicitações tecnológicas.

Então, a resposta é não, elas não estão mais inteligentes, por vezes acontece exatamente o contrário, elas não conseguem fazer outros tipos de raciocínio, se não aqueles mediados pela tecnologia sem uma relação direta com a realidade. E sim, houve um desenvolvimento muito maior da tecnologia, principalmente das interfaces computacionais que facilitam a manipulação dos dispositivos, dos sistemas tecnológicos. Por exemplo, conversar com Alexa solicitando alguma coisa ou dedilhar uma interface intuitiva não torna ninguém mais inteligente, mas certamente torna os dispositivos mais acessíveis com uma interatividade mais encantadora.

O senhor acredita que essa tecnologia também pode influenciar, de uma certa forma, numa evolução da capacidade mental ou simplesmente regredir?

CR: Eu acho que nenhuma coisa nem outra. Na verdade nós temos outras configurações sintáticas acontecendo em nosso cérebro na medida em que nós lidamos com esse tipo de ferramenta, mas são inteligências distintas, são processos distintos. Não há nenhuma pesquisa séria que diga: “Olha nosso cérebro está mais ou menos evoluído em função disso”. O que nós temos de fato é o seguinte: a noção de tecnologia como um conhecimento pautado pelo método científico que é desenvolvido e rastreado por uma comunidade científica, e isso tem evoluído sistematicamente.

Somos coletivamente mais inteligentes do que as pessoas que viveram no planeta a 50 ou 100 anos, isso não há dúvida que é uma evolução em relação à informação e ao conhecimento de mundo. Agora você lidar com sistemas computacionais, não te fazem mais ou menos inteligente, mas desenvolve inteligências distintas de algumas outras pessoas que ficam em livros ou que ficam debruçadas sobre outros afazeres sejam epistemológicos, metodológicos ou pragmáticos.

O excesso de telas pode acarretar em diversos problemas e transtornos que prejudicam o bem-estar da criança, dentre esses, ansiedade, TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade), depressão, transtornos de sono, isolamento, problemas de coluna, visão, obesidade, entre outros. De quais formas a família pode equilibrar o uso da tecnologia para não acarretar em tais transtornos?

CR: Me parece que dimensionando o tempo dedicado a cada uma dessas atividades. É claro que não só a criança terá esse tipo de problema, mas um adulto que seja sedentário que permaneça na frente de tela, terá problemas de ansiedade, de obesidade, de visão, enfim, terá toda essa sorte de problemas. É preciso dimensionar e verificar, do mesmo modo que sentado em uma única posição por mais de duas horas, provavelmente, você tá terá dores musculares permanecendo por muito tempo em micro movimentos, você tenderá a ter determinados desajustes posturais. Então é preciso estabelecer tempo específico para essa dedicação que preveja exercícios físicos, níveis de atenção que não sejam somente voltados para tela, mas é necessário também verificar que tipo de conteúdo que você está lidando ou permitindo que a criança acesse.

Adianta pouco você falar dos dispositivos celulares, computadores, etc. sem atentar para o tipo de informação que está sendo consumida. Certamente o consumo exacerbado de pseudo notícias no WhatsApp vai emburrecer crianças, jovens e adultos, aliás a gente já tem provas sobre isso. É aconselhado uma dosimetria em relação às atividades, para que você amplie seu repertório, adense alguns conteúdos específicos e ter tempo para você caminhar, nadar, comer, sem estar olhando para uma tela de celular, etc. Então dosimetria.

Muitas vezes as tecnologias são introduzidas em uma fase do desenvolvimento infantil decisivo para a formação de personalidade, definição de gostos, início da linguagem, como uma espécie de “babá eletrônica” ou até mesmo uma “chupeta eletrônica” para que a família tenha algumas horas de tranquilidade para dedicar a algum afazer de casa, trabalho ou descanso. Diante dessas situações que as vezes precisam de um pouco mais de tranquilidade e atenção, como a família pode proceder para não prejudicar a criança?

CR: Não ter filho, não tem tempo para se dedicar a uma criança, é melhor não ter filhos do que começar a colocá-los na frente de uma tela para se livrar da necessidade que a criança tem. Já que as pessoas não tiveram essa noção de que é possível não ter filho, é preciso que elas criem uma dosimetria para atender a uma necessidade que é primária.

A atenção a criança é uma demanda real, premente e prioritária, não dá para você simplesmente dizer: “Agora eu vou descansar, meu filho que pegue o celular e fique ali”, é preciso que os pais tenham educação e não simplesmente comecem a pensar: “o que vou fazer agora para eu manter o meu sono da tarde ou o sono da noite, que a criança não atrapalhe minha vida?”, crianças têm demandas específicas. Então não me parece que a pergunta seja: “o que é que eu posso fazer para ter tempo de descanso?”, organize a sua vida e priorize o filho que você teve.

Como a pandemia de Covid-19 agravou o uso da tecnologia ilimitada para as crianças? 

CR: Eu não sei se exatamente a pandemia, mas talvez um efeito que isso trouxe aos próprios pais que tiveram que conviver mais com seus filhos. Aliás, os casais tiveram que conviver mais, a taxa de divórcio aumentou de sobremaneira. Houve, principalmente neste período de isolamento social um aumento de demanda, o que é natural, porque a família começou a conviver um pouco mais do que o fazia e do que o desejável. Me lembro de alguns memes de de pais que soltam balões quando os filhos retornam para as aulas, dizendo: “Ufa! Graças a Deus! Agora não vou ter que passar a tarde inteira com esse pestinha em casa!”. Mas me parece que, a Covid exacerbou exatamente essa necessidade de convívio que chegou ao extremo de Full Time.

Os pais tiveram a consciência de que não é só a mãe nos primeiros seis meses que deve ter a dedicação total a criança, mas os pais como um todo precisam atentar para isso, então houve de fato uma demanda um pouco maior. Por outro lado os pais puderam conhecer um pouco mais os seus filhos, tiveram essa oportunidade, ainda que muitos deles tenham preferido entregar para um dispositivo tecnológico do que efetivamente ser apresentado ao filho que tem.

Esse impacto já estava em ascensão antes da pandemia ou teve um agravo?

CR: Pelo isolamento teve um agravo e teve uma necessidade maior, porque passamos vários meses isolados, em procura de Home Office ou nem isso, mas nós tínhamos limitação de saída, e a válvula de escape foram as ferramentas digitais, as plataformas, os meios de comunicação, seja para o lastro cultural ou para o lastro laboral. Mas fato é que nós deixamos o nosso convívio presencial, para estabelecer um convívio remoto com alguns, e presencial em casa, com cônjuge, com filho, enfim, com aqueles membros do núcleo familiar primário que estavam em um contato direto elevado a máxima potência de uma hora para outra.

Isso fez com que a tecnologia se convertesse em uma válvula de escape, porque, de fato, ela já era tida como uma janela para o mundo e ela passou a ser as asas que o mundo tivera na pandemia para poder perambular pelos espaços, fossem eles físicos, a partir da tele-presença, do acesso remoto, fossem os ambientes digitais, ditos vulgarmente como virtuais, em games, enfim, em diversos imersivos, para desopilar um pouquinho essa cotidianidade, que quase que nos afogou durante a pandemia.

Considerações finais- 

CR: No que diz respeito à tecnologia, é preciso ver que tecnologia é diferente de aparatos tecnológicos. A tecnologia é conhecimento, enquanto os aparatos tecnológicos são os elementos que foram produzidos a partir desse conhecimento. Claro que esses dispositivos são encantadores, eles são sedutores, eles seduzem a todos, não apenas a criança. E como tudo que seduz a criança, é preciso dimensionar e acompanhar, para que não haja um sobrepeso ou uma manipulação excessiva desses elementos, e que efetivamente contrarie uma vida saudável.

Mas isso não é um quesito da própria tecnologia, é um quesito social, de como a sociedade está lidando com essa tecnologia, por isso nós falamos em Cultware, que é a cultura tecnológica, é uma correta ou indicada utilização desses dispositivos tecnológicos. Porque a gente ouve falar que a criançada hoje sabe mexer muito com tecnologia, e efetivamente elas sabem postar coisas no Instagram, curtir coisas do Instagram, ou criar um OnlyFans, mas de tecnologia, de fato, tem pouquíssima coisa. São praticamente analfabetos na tecnologia. É um godo, é uma falácia, uma falsidade ideológica, dizer que a criança ou o adolescente, enfim, conhece tecnologia somente por ter usuário de Facebook, Instagram, WhatsApp e assemelhados, e não é por aí. É preciso ter uma dimensão correta do que seja tecnologia, e não nos tornarmos uma geração escravizada pelos dispositivos tecnológicos e pior, culpando a tecnologia por isso.

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