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Um extenso emaranhado de fios subterrâneos, chamado micélio, conecta indivíduos de um mesmo ecossistema através de hifas, filamentos de células, que, em temperaturas e condições favoráveis, crescem rapidamente no interior do substrato. Essas estruturas permitem que plantas e fungos se comuniquem e troquem nutrientes fundamentais, além de serem de extrema importância para a mitigação de problemas ambientais como derramamentos de óleo e mudanças climáticas.
Conhecendo os micélios
Quando falamos em fungos, pensamos nos seus representantes tradicionais: os cogumelos. Mas eles são apenas uma parte de uma grande rede interconectada que fica abaixo da terra, possibilitada pelos micélios. Essas estruturas se assemelham às raízes das plantas e, fundamentalmente, são responsáveis pelo transporte de nutrientes dos fungos. A troca só é possível pela ação da micorriza, uma associação simbiótica (relação de benefício mútuo) entre as hifas dos fungos e as raízes das plantas, presente na estrutura da maioria desses seres.
A doutora em microbiologia pela UFMG e professora de micologia na Universidade Federal de Goiás, Ludmilla de Matos Baltazar, explica um pouco melhor como ocorre essa relação:
De acordo com a profissional, as hifas dos fungos se expandem no substrato em busca de nutrientes para a própria célula fúngica. Se essas hifas estão conectadas às plantas, elas são capazes de expandir sua área de captação de nutrientes.
A relação entre a rede micorrízica subterrânea e os fungos é muito explorada em séries e filmes. Na série The Last of Us, por exemplo, lançada em janeiro de 2023, vemos um futuro distópico no qual um fungo, o Cordyceps, provoca uma pandemia ao infectar humanos e transformá-los em zumbis. Apesar dos elementos ficcionais, a série retrata como ocorre a comunicação entre o micélio e os zumbis, infectados pelo fungo. Essa rede subterrânea “avisa” os zumbis da presença de invasores e faz com que eles saibam quando atacar, representando a conexão entre todos os componentes daquele ambiente (fungos, plantas, humanos).
Zumbis em The Last of Us se comunicam através do micélio, representado como ser senciente. Imagem: Internet
A internet da natureza
O conceito de uma “rede” que liga plantas e fungos não é novidade. Na verdade, o primeiro artigo a respeito do assunto, que permitiu a popularização do termo, foi publicado em 1997, na revista Nature. A pesquisadora Suzanne W. Simard, atualmente professora de ecologia florestal na Universidade da Columbia Britânica, testou a transferência de carbono, nitrogênio e fósforo através de micélios interconectados. A equipe de pesquisa introduziu moléculas de carbono em uma árvore, e, em pouco tempo, descobriu que a substância havia passado para as árvores do entorno. O estudo demonstrou que a quantidade de carbono trocada entre as plantas seria um forte indicativo de um sistema interligado entre planta, fungo e solo.
Rede micorrízica. Imagem: Internet
Além disso, foi demonstrado que algumas plantas utilizam essa rede para roubar nutrientes, e até para liberar toxinas que prejudicam o desenvolvimento de outras plantas. Algumas espécies também são capazes de trocar informações para planejar defesas e ataques contra espécies invasoras.
Por causa da troca constante de recursos e informações, essa grande teia subterrânea foi chamada de “Wood Wide Web”, em referência a “world wide web” (www), ou, em português, a “Internet da Natureza”.
A professora de ecologia também defende que árvores de grande porte, chamadas de “árvores mãe”, utilizam o micélio para fornecer nutrientes para outras em crescimento. Sem essa relação, muitas árvores novas não sobreviveriam. A pesquisa de Simard apresenta uma relação contrária à teoria de evolução de Darwin, que defende a ideia de competição por recursos entre espécies. O estudo da pesquisadora demonstra que muitas espécies, na verdade, trocam nutrientes para auxiliar na sobrevivência de outras.
O termo não é consenso entre a comunidade científica
O conceito de uma rede subterrânea de filamentos que permite que as árvores “conversem” realmente captura o imaginário do público, e a representação na mídia contribui muito para isso. Até o filme Avatar faz uma representação semelhante, com organismos trocando recursos e se comunicando através de ligações eletroquímicas feitas pelas raízes das árvores. Outro exemplo é o documentário da Netflix – Fungos Fantásticos – no qual especialistas afirmam que as árvores trocam nutrientes e se comunicam através dessa rede subterrânea.
No filme Avatar, as plantas se comunicavam por uma rede energética. Imagem: Reprodução.
Entretanto, novos estudos demonstram que as evidências para essa relação são inconclusivas. Publicada em fevereiro de 2023 por Justine Karst, na revista Nature, a pesquisa aponta que as evidências para que a rede micorrízica seja considerada uma forma de comunicação e transporte de nutrientes são instáveis, e podem ter outras explicações científicas. Os autores da pesquisa afirmam que o conhecimento acerca do assunto ainda é muito escasso, e ainda indicam que a supervalorização de estudos “positivos”, isto é, que confirmam a teoria, poderiam atrasar o avanço científico.
A pesquisa não nega a importância da micorriza para a nutrição e saúde de plantas e árvores, e reitera que a natureza está cercada de relações entre seus elementos naturais. Entretanto, afirma que o uso de termos como “conversa”, “comunicação” e “troca de informação” reduz a complexidade da forma como esses organismos se relacionam.
Uma possível solução para problemas ambientais
Os fungos podem ser uma alternativa para a emergência climática que o planeta enfrenta. É o que indica um artigo publicado em fevereiro de 2023, pela revista Current Biology. Escrito por uma série de pesquisadores internacionais, o estudo denominado “Micélio micorrízico como reserva global de carbono” aponta que as raízes dos fungos armazenam um terço das emissões anuais de dióxido de carbono na Terra, constituindo um importante reservatório global.
A equipe reuniu dados de centenas de estudos relacionados à interação planta-solo, e, de acordo com os cálculos presentes na pesquisa, mais de 13 gigatoneladas de CO2 são transferidas das plantas para os fungos todo ano. Isso indica que o solo é a maior reserva de carbono do mundo, superando os oceanos.
Dessa forma, se os solos são manejados ou degradados, o carbono e outros gases que intensificam o efeito estufa (liberados durante o processo de degradação) são devolvidos para a atmosfera.
Os pesquisadores responsáveis pela pesquisa afirmam que a preservação e o estudo da ação dos micélios é uma solução potencial para manejar as emissões de combustíveis fósseis, e devem ser considerados na formulação de políticas voltadas para a biodiversidade mundial e conservação ambiental.
Outra aplicação fúngica muito benéfica sustentavelmente é a biomineração, alternativa sustentável para a extração de minerais. Nesse processo, um organismo, ou microrganismo, produz minerais.
De acordo com a microbiologista Ludmilla de Matos: “Os fungos produzem minerais em pequenas quantidades, em nanoescala. Essa produção pode ser utilizada para a fabricação de produtos como catalizadores, células-combustível, dispositivos eletrônicos e até como transportadores de fármacos”, afirma.
Além da técnica ser de menor custo, por não exigir mão de obra especializada, ainda é ambientalmente mais aceita, já que não libera gases tóxicos para a atmosfera.
Ainda sob a óptica de sustentabilidade, o micólogo Paul Stamets (ativista pelo uso medicinal de cogumelos e um dos especialistas presentes no documentário Fungos Fantásticos), deu uma palestra para o Ted Talk em 2011, na qual apresentava “6 maneiras de salvar o mundo usando cogumelos”. Ao longo da palestra, o especialista apresentou um experimento realizado por ele e sua equipe que demonstra a atuação dos micélios em derramamentos de óleo.
Paul Stamets defende que os micélios são a rede de internet natural do planeta. Para ele, essas estruturas reconhecem a presença dos seres humanos na natureza e “seguem” nossos passos para recuperar os danos causados. Imagem: Internet.
Para o teste, foram separados quatro montes, saturados com óleo diesel e outros compostos petrolíferos. Uma era a pilha “controle”, outra foi tratada com enzimas, outra com bactérias e, a de Paul e sua equipe, foi tratada com micélios de fungos. O micélio conseguiu absorver o óleo através de sua capacidade de produzir enzimas que quebram ligações entre carbono e hidrogênio (ligações que mantêm os hidrocarbonetos – principais ligações presentes em derivados do petróleo – unidos).
Seis semanas depois, o monte estava coberto por aproximadamente 0,5 kg de cogumelos-ostra. Não só isso, mas a presença dos cogumelos atraiu outros seres (insetos, larvas, pássaros, sementes), o que permitiu que a pilha se tornasse uma pequena comunidade biológica.
Uma forma avançada de comunicação
Apesar de parecem inertes e silenciosos na natureza, esses seres microscópicos são capazes de se comunicar de uma maneira um pouco mais complexa do que a maioria de nós imagina. De acordo com um artigo publicado pela Royal Society Publishing em 2022, os fungos se comunicam através de impulsos elétricos, e a linguagem utilizada por eles se assemelha bastante à linguagem humana.
O responsável pela pesquisa é o cientista da computação – com especialização em computação natural – Andrew Adamatzky, da Universidade do Oeste da Inglaterra. Ele inseriu eletrodos em um substrato colonizado por micélios e analisou a atividade elétrica de alguns fungos: Omphalotus nidiformis, Flammulina velutipes, Schizophyllum commune e Cordyceps militaris.
No estudo, os organismos foram submetidos a alguns estímulos, como a introdução de fontes de alimentos e perigos em potencial. Nessas condições, os impulsos elétricos se intensificaram. Esses picos de eletricidade foram considerados como uma padronização utilizada pelos cogumelos analisados para se comunicar. Isto é, o aumento da atividade elétrica durante determinado período de tempo corresponderia à linguagem fúngica.
Essa análise detectou padrões estruturais semelhantes aos da linguagem humana. O autor do artigo percebeu que até o comprimento das palavras utilizadas pelos fungos é semelhante ao utilizado por nós: “O comprimento médio da palavra fúngica em quatro espécies […] é de 5,97, o mesmo comprimento médio de palavras em alguns idiomas humanos, por exemplo, 4,8 em inglês e 6 em russo”, relata no artigo.
Apesar de Andrew acreditar que a padronização utilizada pelos fungos não seja aleatória e que possa indicar uma forma de linguagem semelhante à nossa, a comunidade científica acredita que seriam necessárias mais evidências e pesquisas para que a teoria seja aceita. Para Dan Bebber, membro do comitê de pesquisa em biologia fúngica da Sociedade Micológica Britânica: “Embora interessante, a interpretação como linguagem parece um tanto entusiasmada demais e exigiria muito mais pesquisas e testes de hipóteses críticas antes de vermos a opção “fungo” no Google Tradutor”.
[…] disso, a interação com as plantas pode ser muito mais profunda do que imaginamos. Através do micélio, um extenso emaranhado de fios subterrâneos, as plantas se comunicam e se conectam umas com as […]