Fenômenos (des)naturais: como a situação climática afeta as populações vulneráveis de Goiás

Condições climáticas extremas estão acontecendo com maiores frequências e quem, involuntariamente, responde na linha de frente são as pessoas em vulnerabilidade social
dez 4, 2023 , , ,
Tempo de leitura: 9 min

O Brasil testemunhou nos últimos meses temperaturas recordes em todo seu território e, no Estado de Goiás a situação não foi diferente. Altos picos de temperatura e ondas de calor seguidas por chuvas fortes e irregulares foram presenciados por toda a população goiana que certamente sentiu na pele, juntamente com oito bilhões de habitantes do Planeta, os efeitos de um dos anos mais quentes já registrados. Mas, se por um lado uns seguem as recomendações médicas para que permaneçam fora do alcance do sol e mantenham-se hidratados sob ares-condicionados e ventiladores, por outro, o desmatamento no Cerrado segue em crescimento e pessoas em vulnerabilidade social vem enfrentando condições climáticas extremas cada vez mais frequentemente.

Segundo dados recentes do observatório europeu Copernicus, em conjunto com o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas a Médio Prazo (European Centre for Medium-Range Weather Forecasts ou ECMWF), a temperatura global manteve-se 2,07 °C acima do nível pré-industrial pela primeira vez na história.

Essa informação contraria o proposto na 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC), que estabeleceu em Paris, no ano de 2015, uma série de propostas para minimizar os efeitos da ameaça de mudanças climáticas com foco na redução de emissão dos gases de efeito estufa, gás carbônico (CO₂) e monóxido de carbono (CO).

O Acordo de Paris, aprovado pelos 195 países que fazem parte da UNFCCC, protocolou como objetivo manter o aumento da temperatura média global em menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais, conforme informações do Ministério do Meio Ambiente.

gráfico da temperatura global com referencia no periodo pré-industrial
Gráfico da temperatura global do ar na superfície para 1940-2023 com referência ao período pré-industrial de 1850-1900. Fonte: C3S/ECMWF

O ano de 2023 tem, assim, potencial para se tornar o mais quente já registrado e segundo cientistas da Organização Meteorológica Mundial, em 2024, a média de temperatura pode ser ainda mais elevada. E isso tem uma explicação.

As emissões de carbono pelo homem, como o desmatamento e queima de combustíveis fósseis são as principais razões para a emissão de GEE (gases do efeito estufa), fatores que impulsionam as mudanças climáticas. Segundo a Climate Watch, a energia representa cerca de três quartos das emissões globais, seguida pela agricultura. Além disso, cerca de 60% da irradiação de carbono advém de apenas 10 países, enquanto que os 100 que menos emitem contribuem com apenas 3%.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, IPCC, declarou que a humanidade encontra-se longe de alcançar as emissões de carbono negativas estabelecidas nas metas governamentais dos países. 

representação grafica dos países que mais emitem carbono no mundo
Países que mais contribuem para as emissões de carbono. Fonte: NASA’s Scientific Visualization Studio

El Niño

Outro fator que contribuiu para o aumento da temperatura no último trimestre de 2023 foi o fenômeno natural El Niño. Gilvan Sampaio de Oliveira, mestre e doutor pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e especialista em Geociência, com foco em Meteorologia, em seu livro “El Niño e Você – o fenômeno climático”, entende essa ocorrência como o aquecimento das águas superficiais e sub-superficiais do Oceano Pacífico Equatorial.

A palavra El Niño, do espanhol, refere-se à presença de águas quentes que aparecem na época do Natal nos litorais peruanos e, por isso, é nomeada em alusão ao menino Jesus. Atualmente, essa mudança climática é reconhecida mundialmente e proporciona uma alteração oceano-atmosférica no Pacífico, cujos efeitos são sentidos globalmente. Nota-se, então, não somente a presença de águas quentes, como também a variação na atmosfera na superfície oceânica com o enfraquecimento dos ventos alísios (ventos que sopram constantemente dos trópicos para o Equador).

O fenômeno é um evento climático cíclico e provoca severas consequências nos padrões de umidade, desencadeando variações nas distribuições de chuvas e aumento ou queda de temperaturas. Apesar de independer da ação humana para acontecer, esta torna seus impactos mais severos tendo em vista o uso do homem sobre a  natureza e os recursos naturais.

efeitos do fenomeno el nino sentidos globalmente
Efeitos globais do fenômeno El Niño. Fonte: Instituto de Pesquisas Espaciais 

Com o El Niño, regiões secas apresentam chuvas intensas e paralelamente, regiões úmidas secam-se. Esse fenômeno contribui para o aquentamento significativo da atmosfera que, aliado ao crescente aquecimento global, eleva as temperaturas do planeta.

Devido à continentalidade do território brasieliro, o fenômeno climático se manifesta de diversas maneiras. Conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), enquanto a região  Centro-Norte sofre com secas e aumento da possibilidade de incêndios florestais, a região Sul registra chuvas e temporais constantes, ocasionando em enchentes, alagamentos, destruição de edifícios e óbitos.

Elizabeth Alves Ferreira, coordenadora do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), aponta que, em Goiás, o mês de novembro apresentou a maior temperatura já registrada na climatologia desde a instalação da estação meteorológica de Goiânia, em 1937. Ela explicou que, além do El Niño, uma série de fatores contribuíram para a ocorrência de temperaturas mais elevadas, como o aquecimento do Oceano Atlântico que favoreceu a circulação de ventos aquecidos vindo na direção central do Brasil e o Dipolo do Oceano Índico1.

  1. O Dipolo do Oceano Índico (em inglês, IOD)  é uma oscilação irregular das temperaturas da superfície do mar em que o Oceano Índico ocidental torna-se alternadamente mais quente (fase positiva) e depois mais frio (fase negativa) do que a parte oriental do oceano.   ↩︎
analise do nivel de precipitação em acumulo nas regiões do brasil
Precipitação acumulada no mês de novembro no território brasileiro. a) Chuva acumulada em 10 dias, até 18/11, e (b) em 30 dias, até 18/11. Fonte: Instituto Nacional de Meteorologia

Impactos em comunidades vulneráveis

Em meio a eventos climáticos extremos quem, inegavelmente, responde na linha de frente contra recordes de temperatura e inconsistências ambientais são as pessoas em vulnerabilidade social. Os dias quentes e ensolarados vem sendo enfrentados com muita dificuldade pelas pessoas em situação de rua que, além de lidar com o calor extremo, estão expostas a desidratação, falta de abrigo e negligência estatal.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que, no Brasil, em 2022, 281 mil pessoas viviam em situação de rua e no Estado de Goiás, 3,7 mil pessoas foram declaradas como PSR (pessoa em situação de rua). Os dados são do relatório “População em situação de rua: diagnóstico com base nos dados e informações disponíveis em registro administrativo e sistemas do governo federal”, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Se em condições normais essa população encontrava-se em vulnerabilidade, considerando todo o desamparo social a qual estão submetidas, agora, em extremos climáticos, a situação é pior. Os riscos à saúde oferecidos estão longe de ser sentidos “somente” no calor que elevadas temperaturas proporcionam, podendo também, aliado ao aumento na queima de combustíveis fósseis e desmatamento, contribuir para o declínio da qualidade do ar, da água e da segurança alimentar. São esses os fatores que fazem com que pessoas em vulnerabilidade respondam diretamente a tais fenômenos com a sua saúde e, em muitos casos, com a própria vida. 

A coordenadora do Instituto Nacional de Meteorologia relatou que as pessoas em vulnerabilidade social têm sido bastante afetadas pelas mudanças climáticas. Além dos problemas de saúde sérios que podem ser ocasionados pelo aumento das temperaturas e pela diminuição da qualidade do ar que respiramos, como câncer de pulmão e infecções crônicas respiratórias, as pessoas em área de risco também são expostas a enchentes e alagamentos cada vez mais frequentes.

Para Kesia Rodrigues dos Santos, professora da Universidade Estadual de Goiás e especialista em Geografia e Meio Ambiente, com foco em impactos ambientais decorrentes de variações climáticas urbanas, é difícil para os gestores lidarem com os impactos das questões climáticas perante os grupos em vulnerabilidade pois para que estes sejam resolvidos precisaríamos entender a origem do problema, no qual, posteriormente, seria feita a retirada desse grupo dessa condição.

“Para os gestores é mais fácil lidar com pessoas em situação de risco ambiental, como por exemplo, o morador da área de inundação. Isso é algo que você pode prever e atuar. Se eu for trabalhar com pessoas em situação de rua, eu vou realizar apenas ações emergenciais. Se tivermos alertas, eu vou retirar temporariamente esse grupo, caso ele queira, para um local de segurança até passar o fenômeno climático. Mas isso não é uma política pública que vai resolver o problema, teria que se atuar antes”.

As consequências não imediatas, entretanto, também são preocupantes. De acordo com relatórios fornecidos pela Organização Meteorológica Mundial, a transmissão de doenças vetoriais vem aumentando consideravelmente e sem a incidência de medidas sanitárias governamentais, aliadas ao aquecimento global no qual diferentes microrganismos são descongelados gradativamente, a previsão é desfavorável para a espécie humana. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *