‘Políticas públicas de inclusão e permanência de grupos vulneráveis na educação são reparação histórica’, diz ativista LGBTQIA+ 

No Brasil, país que mais mata pessoas trans e travestis, direitos fundamentais — como o análogo à educação — ainda são negados a esse grupo
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pessoa segurando a bandeira trans

De acordo com relatório fornecido pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o Brasil é o país que mais mata travestis, mulheres e homens transexuais no mundo. No cenário educacional, as pessoas trans enfrentam uma realidade discriminatória e árdua para acessar o ensino superior. Além de barreiras sociais e econômicas, impulsionadas pela estigmatização sistemática dessa comunidade, as oportunidades educacionais — e, por consequência, profissionais — são limitadas.  

A jornada da comunidade transexual e travesti rumo à educação de nível superior é marcada por desafios multifacetados, que vão desde preconceitos sociais até as barreiras institucionais e a falta de políticas inclusivas. Somente neste ano foi proposto um projeto de lei, apresentado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que visa a introdução de políticas de cotas destinadas a pessoas transexuais e travestis nas universidades e institutos federais do Brasil.  

Para entender melhor o panorama nacional, o Lab Notícias conversou com Sayonara Nogueira, licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e técnica em Políticas Públicas de Gênero e Raça pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com especialização em Educação Inclusiva e Coordenação Pedagógica. Ademais, ela é ativista trans, presidenta do Conselho Popular LGBTQIA+ de Uberlândia e co-fundadora do Instituto Brasileiro Trans de Educação, exercendo, também, o cargo de Secretária de Comunicação da Rede Trans Brasil. Confira a seguir:  

sayonara nogueira em palestra
Sayonara Nogueira no 1º Encontro do Núcleo LGBTQIAPN+, em Araguari, MG. Foto: Acervo pessoal

Lab Notícias: Quais os principais motivos de evasão escolar (ensino básico) desse grupo? 

Sayonara Nogueira: A desigualdade e o preconceito são comuns na vida das pessoas trans do Brasil e, em maior escala, nos ambientes escolares — o que leva a processos de exclusão, nos privando de direitos constitucionais e retirando o direito à educação. Mesmo com as legislações e decretos que nos incluem na educação básica, percebe-se que, no país, há uma exclusão da população trans de sua trajetória escolar devido às narrativas de agressão física, bullying, discriminação, isolamento, assédio moral e negligência (formas de violência que são praticadas não só por outros(as/es) estudantes, como também por docentes, especialistas, gestão escolar e profissionais que atuam na administração). 

Lab Notícias: Quais são as principais dificuldades enfrentadas pela comunidade trans no Brasil para o acesso ao ensino superior?  

Sayonara Nogueira: A principal dificuldade é exclusão na Educação Básica. Sem o encerramento desse ciclo, torna-se impossível a entrada no Ensino Superior. Essa exclusão vem sendo promovida devido a razões ideológicas, culturais, religiosas e a ausência de formação continuada voltada à diversidade. É como se toda essa violência fosse naturalizada como parte habitual das relações, o que impactará na trajetória escolar das pessoas trans, impedindo que essas acessem o ensino superior.                    

Lab Notícias: O que contribui para que a comunidade trans e travesti continue sendo excluída do acesso ao ensino no Brasil?  

Sayonara Nogueira: A ausência de uma política de permanência destes sujeitos no ambiente escolar. Temos até um arcabouço de legislações que abordam a inclusão escolar, mas, quando se trata de pessoas que rompem com as expectativas binárias de gênero, não vejo aplicabilidade dessa política para nossos corpos, que vão ser expulsos e violentados dentro da família, passando pela escola e outras esferas que culminam em toda violência que vemos diariamente nos meios de comunicação. O impacto causado pelo preconceito e a discriminação é tão profundo que provoca dores e traumas, levando muitas pessoas trans a abandonarem a escola. 

Lab Notícias: Caso implementado em todos os estados do país, como o sistema de cotas auxiliará na mudança desses dados? Quais outras políticas públicas podem ser tomadas para que essa exclusão diminua?  

Sayonara Nogueira: A política de cotas para pessoas trans iniciou-se com oferta em cursos de pós-graduação, todavia, temos que pensar lá na educação básica primeiro. Como a maioria da nossa população abandonou os estudos, é preciso que o governo invista na política da EJA (Educação de Jovens e Adultos), para que haja a oportunidade de pessoas trans concluírem seus estudos. Aí, sim, podemos pensar em cotas para pessoas trans nas universidades, o que, com certeza, aumentará a nossa presença nas academias. É preciso que outros dispositivos sejam respeitados, como o direito ao nome social, já que nem todas as pessoas têm acesso à retificação. Além disso, abrir espaços de escuta para que toda a violência que sofremos seja relatada e, assim, criar projetos de sensibilização para combater o preconceito e a discriminação.  

Lab Notícias: Qual caminho as pessoas trans que não conseguem acessar o ensino superior tomam? Como sobrevivem, com o que trabalham, etc.  

Sayonara Nogueira: Temos uma grande presença de mulheres trans e travestis exercendo o trabalho sexual. Porém, algumas organizações vêm abrindo suas portas para a diversidade, e ao mesmo tempo, percebe-se a entrada de muitas pessoas trans no mercado de trabalho formal, principalmente homens trans. Mas, infelizmente, a prostituição ainda continua compulsória para a maioria das travestis.  

Lab Notícias: O Brasil é conhecido internacionalmente por ser o país que mais mata pessoas trans e travestis por violência. Quais medidas estão sendo tomadas (se estão) pelo atual governo para a mudança desse cenário?  

Sayonara Nogueira: É uma realidade triste e cruel, porque quando analisamos essas mortes, geralmente são mulheres trans pretas, profissionais do sexo e periféricas. Daí temos que fazer um recorte interseccional analisando gênero, raça, etnia e classe social. Não acredito que uma política identitária sanaria esse problema, é preciso que o governo federal promova políticas públicas em todos os campos para essa mudança. Entretanto, precisam ser políticas efetivas, que saiam do campo teórico e da discussão para a prática.  

Lab Notícias: Quais benefícios o acesso ao ensino superior pode trazer à comunidade trans? Esse acesso também pode representar uma possibilidade de diminuição da violência, preconceito e pobreza relacionada a esse grupo? 

Sayonara Nogueira: O acesso à educação, de maneira geral, vai gerar qualificação, ressignificação dos espaços, entrada das pessoas trans no mercado de trabalho e culminar em uma vida social saudável, a qual vai impactar na redução do preconceito e discriminação — e, consequentemente, da violência. Por isso, políticas públicas de inclusão e permanência de grupos vulneráveis na educação são importantes. É reparação histórica, é dar oportunidade para quem teve seus direitos negados.  

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