A importância da presença indígena nas universidades: ‘Os espaços acadêmicos têm muito a ganhar com os saberes dos povos indígenas’, diz Mirna Anaquiri

Os povos originários, muitas vezes, não encontram um espaço devidamente preparado para recepcioná-los na universidade, como a ausência de representatividade por parte de professores que sejam indígenas. Além disso, o tempo regular para formação pode ser insuficiente, já que alguns precisam se adaptar às tecnologias
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Uma das lutas dos povos indígenas em busca de representatividade na sociedade é, sem dúvidas, a presença e a inclusão na universidade. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o total de alunos indígenas no ensino superior foi de 9.764 em 2011 para 46.252 no ano de 2021. Entretanto, apesar do aumento expressivo, os alunos indígenas representam apenas 3,3% em comparação às 1,4 milhão de pessoas que se identificam como indígenas no Brasil. 

Algumas das políticas públicas que visam auxiliar a permanência de povos indígenas na universidade estão a Lei de Cotas, que prevê a reserva de vagas para grupos específicos, como PPI (pretos, pardos e indígenas). Já a Universidade Federal de Goiás (UFG) mantém o UFGInclui, que gera uma vaga extra em cada curso onde houver demanda indígena e quilombola. O acadêmico também tem direito a uma bolsa permanência do Ministério da Educação de R$900. 

O UFGInclui completou 15 anos e uma cerimônia foi promovida no último dia 14 para celebrar a importância do programa. Uma carta aberta foi lida por Marta Quintiliano, Mirna Anaquiri, Márcia Rocha e Yuninni Terena.

“Falar do programa UFGInclui é falar de sonhos, de desejos e de lutas pelas vidas e existências das pessoas que construíram tudo isso que conhecemos por Brasil […] Demarcamos este território-universidade com nossa ciência, com nosso conhecimento, para formar futuros líderes”, destacou um trecho da carta. 

Para conversarmos sobre o assunto, o LabNotícias entrou em contato com Mirna Kambeba Omágua Yetê Anaquiri, pertencente ao povo indígena Kambeba Omágua do Amazonas. Ela é Artista Visual e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Também é professora de Artes da Rede Municipal, além de ativista do movimento indígena e luta por uma educação antirracista. 

O programa UFGInclui completou 15 anos com a leitura de uma carta aberta (Foto: Evelyn Parreira)

LabNotícias (LN): Como você lida com o choque cultural ao transitar entre sua comunidade indígena e o ambiente acadêmico?

Mirna Anaquiri:  A relação que você pergunta sobre o choque cultural da comunidade e a academia, os principais pontos que eu levanto são questões que, muitas vezes, a universidade não está preparada para receber os conhecimentos das pessoas indígenas. E a questão da representatividade, a falta de professoras indígenas e negras nesse espaço é um ponto que prejudica da gente se entender pertencente daquele lugar. São desafios pontuais e extremamente relevantes, porque a gente fica interessado em que haja uma troca. E nesses espaços, muitas vezes, a gente sente a falta da qualificação dos profissionais.

Ontem se comemorou 15 anos do UFGInclui, que é a partir dessa data, que completa 15 anos, que começam a entrar estudantes indígenas e negros quilombolas. Então, a gente ainda está falando desses desafios, como que os nossos saberes podem ser reconhecidos dentro desse espaço. Então, eu acredito que o principal choque, a partir da minha experiência, é não ter referenciais como professoras e professores indígenas dentro da universidade. Em muitos cursos ainda não ter referenciais teóricos de pessoas indígenas e pessoas negras. Então, é uma questão que a gente tem discutido nós, povos indígenas, nessa relação intercultural, realmente de troca, para que ela de fato aconteça. A gente está construindo uma educação antirracista, só que ainda precisa ter passos mais efetivos. Acho que essa é uma questão relevante.

Anaquiri com uma camiseta escrita ‘O Brasil é terra indígena’ (Foto: Acervo Pessoal de Mirna Anaquiri)

LabNotícias (LN): Quais são os principais desafios que enfrentou em relação à necessidade de migração para cursar seus estudos?

Mirna Anaquiri: Eu tive muita dificuldade. Eu entrei no ano de 2009 na universidade, então eu tive dificuldade de lidar com a tecnologia. No começo eu fazia trabalhos à mão, porque eu não tinha habilidades. E aí pensar também a escrita foi um grande desafio para mim, porque os povos indígenas são de uma cultura oral, então eu penso que é necessário que tenha esse acolhimento.

Nós estamos muito interessados em trocar os conhecimentos e a universidade tem muito a ganhar, os espaços acadêmicos tem muito a ganhar com os saberes dos povos indígenas. Então, esse desafio com a escrita, o espaço, o tempo do curso. Por exemplo, a minha mãe, ela demorou 10 anos para fazer o curso de administração. É entender que às vezes algumas pessoas vão ter um tempo diferente que é entendido como regular. Porque a gente está falando de pessoas diversas, plurais. Então essas questões do tempo é um grande desafio. O tempo do semestre, o tempo da conclusão do curso, o tempo da escrita. E aí a gente precisa repensar para que a universidade seja um lugar que realmente acolha essa diversidade.

LabNotícias (LN): Poderia compartilhar experiências sobre como lidou com situações de preconceito no ambiente acadêmico e como superou esses desafios?

Mirna Anaquiri: Como eu lidei com as questões de preconceito, como eu ainda lido… Ontem, nós fizemos uma carta aberta do UFGInclui para a universidade, e sobre nós, sobre as nossas lutas e como a gente tem avançado. É importante dizer que enfrentar esses desafios também tem sequelas. Tem dores, tem doenças, foram e ainda são momentos difíceis, mas também temos um número de estudantes indígenas e quilombolas que conseguiram fazer uma graduação, mesmo um número pequeno nesses 15 anos.

Eu, particularmente, fiz uma graduação, um mestrado e um doutorado. E a forma principal que eu enfrentei esses desafios de preconceito e racismo foi me fortalecendo coletivamente. Então, enquanto não tem professores indígenas, enquanto não tem professoras negras em vários cursos, a gente se organiza coletivamente numa força ancestral. Então, esse é o primeiro ponto que eu enfrento esses desafios. Também, eu precisei me dedicar muito a esses estudos para chegar até o momento que eu estou como professora, mas também como uma Doutora indígena. Essa conquista não é só minha, ela é de muitas pessoas, ela é coletiva. Então, nesse lugar, eu também me fortalecia. E essa foi a forma que eu encontrei de enfrentar esses desafios, esses preconceitos. Entender que, antes de mim, muitas pessoas lutaram para que eu estivesse. Muito sangue derramado, muita força ancestral, o movimento negro. É muito importante também, nessa luta de enfrentamento, e garantir as vagas, a reserva de vagas, que são as cotas, para as pessoas indígenas e negras. Então, a principal forma de enfrentar o preconceito e o racismo foi me fortalecendo coletivamente com as minhas pares e confiando que esse espaço é nosso por direito. Então, nós podemos desfrutar dele.

Claro, foram dias muito difíceis e ainda são., mas na nossa carta que a gente publicou ontem, que a gente leu publicamente, a gente falou disso, que o racismo engoliu muitos dos nossos corpos e trouxe muitos problemas, muitas doenças, muitas tristezas., mas que a gente também está fortalecido e organizado para avançar e dizer que nós podemos estar em todos os lugares.

“Roubaram nossa terra, querem roubar nossa história” (Foto: Acervo Pessoal de Mirna Anaquiri)

LabNotícias (LN): Como a desinformação afetou sua trajetória acadêmica, e de que maneira você busca superar essas barreiras?

Mirna Anaquiri: Eu sou uma mulher indígena, que eu pertenço aos povos da Amazônia, Povo Kambeba Omágua. Então, eu tenho um rosto, umas características que é conhecido como povos indígenas, mas os povos indígenas são plurais e o Brasil inteiro é território indígena. Então, na medida que as pessoas não sabem dessa diversidade, que existe mais de 305 povos no Brasil, isso afeta diretamente qualquer pessoa indígena. Por exemplo, tratar as pessoas como índio, como se fosse tudo igual. É uma desinformação muito grande, que afeta a gente pela questão dos conhecimentos serem diferentes de cada povo. Claro que a gente tem também lutas em comum, como a demarcação de terra, lutas como exigir o acesso à educação., mas a desinformação vai afetar na nossa subjetividade. Ela vai afetar, por exemplo, com perguntas preconceituosas. Então, é muito importante que as pessoas se informem de quem são os povos indígenas do Brasil. Conhecer sobre os povos indígenas é conhecer sobre sua própria história.

LabNotícias (LN): Qual é a importância, na sua perspectiva, de discutir e promover a presença de indígenas em ambientes acadêmicos?

Mirna Anaquiri: A grande questão é a seguinte: a universidade, a Academia é um lugar de conhecimento e é uma universidade pública e todas as pessoas têm direito a acessar esse lugar. Partindo desse princípio, as pessoas indígenas também têm. Quando se tem essa possibilidade de conhecer outros tipos de saberes, outras culturas, só enriquece o conhecimento científico. Porque nós, povos indígenas, temos os nossos conhecimentos, as nossas ciências e nós estamos abertos a trocas. E quando você cria um conhecimento que é plural, você dialoga com outras pessoas. Porque a universidade já foi um lugar extremamente fechado, hoje eu analiso que, por exemplo, a Universidade Federal de Goiás é um lugar que está mais diverso. Com 15 anos de UFGInclui, está mais diverso. Se você caminha pela universidade, você vai ver pessoas indígenas, pessoas negras. Ainda existe fortemente a ausência de um corpo docente preto, indígena e quilombola. Essa é uma questão. Quando a gente constrói, quando a gente garante que pessoas indígenas estejam presentes, a gente valoriza o que é ancestral, que é a cultura desse país.

Os povos originários desse país são os povos indígenas. Então, é necessário e urgente que os povos indígenas tenham acesso a todos os espaços. Nós estamos falando especificamente da Academia, mas também eu queria abrir para outros espaços, como a política, como a discussão sobre a demarcação de terra, ela precisa acontecer nesse espaço acadêmico. Porque quando a gente está falando de demarcação de terra, de luta contra o marco temporal, por exemplo, não são apenas os povos indígenas que são afetados com essas questões. Vou trazer um exemplo, que é a crise ambiental. Quem protege os territórios são os povos indígenas e os povos quilombolas. Porém, a crise ambiental não afeta só os povos indígenas e quilombolas, ela afeta a população mundial. Então, quando você promove e garante a presença desses grupos, dessas pessoas indígenas e quilombolas, você está promovendo essa diversidade de conhecimento. Porque esses grupos, nós indígenas, temos uma relação muito forte com o meio ambiente, com a terra. A gente tem dito que o nosso corpo é o território, que nós somos a natureza.

A União Nacional dos Estudantes Indígenas e Quilombolas (UNEIQ) esteve presente no Acampamento Terra Livre em abril (Foto: Instagram da UNEIQ)

LabNotícias (LN): Como você enxerga a valorização das contribuições culturais indígenas no contexto acadêmico, e de que forma isso pode ser fortalecido?

Mirna Anaquiri: Por exemplo, aqui no Estado de Goiás, nós temos dois povos indígenas, o povo Tapuio do Carretão e o povo Inỹ-Karajá. Esse território que já aconteceu muita violência com os povos indígenas, nós temos esses dois povos que têm resistido fortemente. Esses povos contribuem para a cultura do Estado de Goiás, eles contribuem com a história que se constrói esse lugar. São os povos originários. Então, quando você valoriza esses conhecimentos, de novo, repetindo isso, você está reconhecendo e valorizando a sua própria história.

É muito comum às vezes as pessoas acharem que as demandas dos povos indígenas são só delas ou tratar os povos indígenas como objeto de estudo. Essa é uma grande discussão que tem acontecido. Como a gente constrói uma educação antirracista que reconhece e valoriza o sabedoria dos povos indígenas? Por exemplo, a lei nº 11.645 é a lei que garante o ensino da cultura indígena na escola. Para que essa lei seja cumprida com responsabilidade é necessário a formação. Essa lei existe exatamente para reconhecer esses saberes. A presença, o conhecimento dos povos indígenas está ligado com uma história cultural de vida, de resistência, de luta, de beleza, de cosmologias, de histórias indígenas. São conhecimentos que enriquecem toda a produção científica, que é o que a Universidade produz. O diálogo com a comunidade, que é a extensão. Valorizar esses saberes é valorizar nossa própria educação, é valorizar nossa própria cultura, é conhecer quantas línguas existem nesse território chamado de Brasil atualmente, há alguns anos. É entender que esse país foi colonizado, é entender como o racismo chega sobre os nossos corpos, é a branquitude reconhecer o seu privilégio, é repensar como esse racismo afeta e assassina os povos indígenas. Então, se você se informa, se você valoriza, se você estuda e pesquisa, você também tem a oportunidade de contribuir para preservar a história desses povos, dos povos indígenas e do Brasil.

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