Cinema nacional bate recorde de bilheteria pós-pandemia em meio à baixa adesão do público

O cinema nacional demonstra perdurar através de produções que atraem o público de volta às salas, como ‘Minha Irmã e Eu’. Entretanto, dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine) comprovam que retomada é lenta
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Já é um fato: o público não vai mais ao cinema como antes. Segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), os filmes levaram 34% menos pessoas às salas de cinema em 2023 do que em 2019 – o último ano antes da pandemia de covid-19. Entre os motivos da baixa adesão, pode-se destacar o debate sobre acessibilidade financeira e geográfica, a mudança de costumes dos jovens e o sucateamento do setor audiovisual brasileiro – atacado durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.  

Em um contraste, o cinema nacional empolgou em 2023 com o lançamento de filmes como ‘Nosso Sonho’, que conta a história da dupla Claudinho e Bochecha, ‘Mussum – O Filmis’, sobre o humorista Mussum, e ‘Mamonas Assassinas’, que narra a trajetória da banda que fez sucesso no Brasil nos anos 90.

Entretanto, o grande destaque vai para ‘Minha Irmã e Eu’, filme protagonizado pelas atrizes Tatá Werneck e Ingrid Guimarães, que bateu o recorde de bilheteria em um filme brasileiro pós-pandemia, com 1 milhão e 250 mil espectadores até o fechamento desta matéria. A casa do milhão não era vista desde ‘Minha Mãe é Uma Peça 3’, do humorista Paulo Gustavo, lançado em 2019.

Ingrid Guimarães agradece ao público pelo recorde de bilheteria em seu filme e cita anos difíceis para a cultura. Vídeo: Instagram/Ingrid Guimarães

Acessibilidade

Maria Kuroishi, de 30 anos, mora em Batatais, no interior de São Paulo. A cidade conta com menos de 60 mil habitantes, segundo Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Portanto, Maria se lembra bem da primeira vez que viajou para ir ao cinema assistir Harry Potter e a Pedra Filosofal, em 2001.

“Eu fui ver Harry Potter e a Pedra Filosofal em 2001, lembro que fui com a minha madrinha na época para a cidade vizinha para poder assistir. Uma sensação única. E, desde então, amo ir ao cinema e não parei mais”, conta Maria.

Entretanto, Batatais conta apenas com uma rede de cinema que oferece um limitado cartaz de filmes. Caso Maria sinta vontade de assistir uma determinada produção, ela precisa viajar até a cidade vizinha, a mais de 40km de distância. Paralela à realidade no interior, o jovem João Luiz Coelho, de 18 anos, mora em Fortaleza, capital do Ceará, e possui pleno e total acesso ao cinema. 

João Luiz é entusiasta da sétima arte e às vezes chega a deslocar-se a uma sala de cinema mais de uma vez por semana, mas ao menos sempre 2 vezes ao mês. Ele prestigia muitas obras nacionais e acompanhou nas telonas o lançamento de ‘Mussum, o filmis’, ‘O Sequestro do Voo 375’ e ‘Mamonas Assassinas’. 

‘Mamonas Assassinas’ conquistou o título de maior estreia nacional desde 2019. Foto: Divulgação

“Em uma era em que produtos estrangeiros são superestimados e aclamados em detrimento a produtos nacionais, acho indispensável valorizar obras do nosso país e prestigiar o trabalho dos nossos roteiristas, atores, diretores e todos os envolvidos nesses projetos (tendo em vista o baixo investimento e orçamento desses produtos quando comparados a produtos internacionais)”, conta.

A acessibilidade financeira não é uma questão para João, que conseguiu encontrar um cinema com um preço menor que a média – ainda de acordo com a Ancine, o preço médio do ingresso no Brasil é R$19.62.

“Um dos principais motivos para eu voltar a frequentar com tanta assiduidade é o baixo preço do cinema que estou acostumado a frequentar. Antes dessa minha “retomada”, só fui em épocas da “semana do cinema”, com ingressos a 10 reais”, revela. 

Mudança de hábitos

A discussão sobre as redes sociais tomarem grande parte do público, especialmente dos jovens, é frequente. Um estudo realizado no ano passado pela Common Sense Media, em colaboração com a Universidade de Michigan, revelou que o celular da maioria dos participantes recebia mais de 237 notificações por dia. 

Na agilidade das redes, se desligar durante quase duas horas para acompanhar um filme parece um grande desafio. No streaming é diferente: você pode pausar o filme ou sua série para visualizar uma mensagem ou assistir a um vídeo curto. No cinema, não.

As queixas em relação à ‘má educação’ do público é frequente e desabafos sobre o uso do celular em momentos tidos como inapropriados são comuns na rede social X.

Sucateamento do audiovisual brasileiro

O audiovisual brasileiro, principalmente a Ancine, foi alvo nos últimos anos de críticas e retaliações do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em 2020, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) sofreu com um corte de 43% do orçamento, além da promessa de aplicação de filtros para aprovação de projetos. 

No atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Ancine demonstra respirar aliviada. No dia de ontem, 16 de janeiro de 2024, o presidente sancionou a Lei N° 14.814, que obriga a exibição de filmes brasileiros em salas de cinemas até 2033, com critérios a serem definidos. A chamada cota de tela já não existia mais desde 2021. 

Presidente Lula volta com a ‘cota de tela’, que fomenta a valorização do cinema brasileiro. Foto: Ricardo Stuckert

Captação de recursos: Lei Rouanet e Lei Paulo Gustavo

A Lei Federal de Incentivo à Cultura, apelidada de Lei Rouanet, é alvo de diversas especulações e mentiras através de críticas ao dinheiro destinado às produções brasileiras.  

O processo de captação de recursos através da Lei Rouanet acontece com pessoas físicas e empresas que estejam dispostas a patrocinar projetos culturais, sejam filmes, espetáculos ou documentários. 

Em benefício, o valor destinado à cultura é abatido total ou parcialmente do imposto de renda do patrocinador, na chamada renúncia fiscal. Ou seja, os recursos que seriam destinados ao Estado por meio de impostos são direcionados como fomento à cultura. 

Nesta terça-feira, dia 17, o governo Lula deu aval para 10.786 projetos culturais captarem recursos através da Lei Rouanet. Esse número representa um aumento de 265% em comparação a 2022, último ano do governo Jair Bolsonaro. 

Já a Lei Paulo Gustavo surgiu como uma forma de amenizar os entraves ocasionados pela pandemia de covid-19 e também em homenagem ao humorista que faleceu vítima da doença. A lei prevê o repasse de R$ 3,86 bilhões aos entes federados para o fomento do setor.

Paulo Gustavo em ‘Minha Mãe é Uma Peça 3’, um dos filmes brasileiros de maior bilheteria. Foto: Divulgação

Em Goiânia

Em Goiânia há duas opções de maior acessibilidade ao público geral em relação aos preços e também a localização: Cine Ritz e Cine Cultura.

O Cine Ritz já é bem conhecido pela população goiana e figura como um dos únicos cinemas de rua da cidade na atualidade. Fundado em 1991, possuí preços mais acessíveis em comparação aos shoppings. 

No ano passado, o Sesc Goiás (Serviço Social do Comércio) assumiu o controle da Sala 2 do Ritz e promete atrair mais participação do cinema e também de artistas locais. 

Há também o Cine Cultura, na Praça Cívica, que exibe filmes que muita das vezes não são levados a grandes cinemas devido à baixa demanda. Os ingressos variam de R$5 a R$10 reais. 

Cine Cultura promove programação de férias com entrada gratuíta.

Segundo João Luiz, a sétima arte jamais será alvo de falta de interesse do público, mas sim da tentativa de elitização.

“A decadência dessa forma de lazer e de entretenimento jamais será por falta de interesse do público, e sim pela tentativa de elitizá-la, o que sempre aconteceu e vem se acentuando nos últimos anos”, finaliza. 

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