Um bilhão de dólares depois, a indústria começa a enxergar as jogadoras

Se os "jogos de meninas" sempre existiram, por que só agora estão tendo sucesso? Talvez o problema nunca tenha sido o público, e sim o que ofereciam a ele
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Meninas também jogam. (Foto: Reprodução)

O conceito de “jogos de meninas” tem sido sustentado por uma gama de estereótipos e limitações há muitos anos, desde a própria existência do termo — afinal, não existe uma categoria equivalente chamada “jogos de meninos”. Em geral, são jogos que envolvem maquiagem, tratamento de pele, criação de looks, relacionamentos ou mesmo uma junção de todas essas coisas, e que não têm muita história, complexidade ou desafio real.

Entre os mais populares estão os Otome Games, um gênero criado no Japão e que se traduz como, literalmente, “jogos para meninas”. Neles, a personagem jogável (uma protagonista geralmente sem rosto, voz ou objetivos) deve escolher uma rota de romance pré-determinada, avançando com falas prontas, ações limitadas e, mais uma vez, pouquíssima dificuldade. Esses jogos existem desde 1994, mas nunca tiveram um impacto significativo na indústria.

No entanto, dois “jogos de meninas” arrecadaram, juntos, mais de um bilhão de dólares em 2024. Um deles conquistou uma indicação relâmpago ao melhor jogo do ano pela IGN e ambos alcançaram milhões de downloads em poucos dias de lançamento. A pergunta é: por quê?

Um jogo em que a personagem principal é a protagonista

Redundante? Não no nicho feminino.

O estúdio chinês Papergames foi o responsável pela grande novidade com o jogo Love and Deepspace, de 2024, em que a personagem jogável tem uma história própria, dilemas pessoais e passa por dias de luta, de luto e de autodescoberta.

Embora ainda pertença ao gênero Otome, os interesses amorosos não passam de coadjuvantes na jornada de uma jovem que está procurando seu lugar no mundo. Em Love and Deepspace, as jogadoras não precisam relacionar tudo o que fazem aos homens do jogo, porque, pela primeira vez em muito tempo, há independência feminina e uma personagem com a qual podem se identificar.

São mais de 6 milhões de usuários ativos por mês em um jogo que une um sistema de luta ao romance tradicional do gênero, e que se destacou no mercado por trazer uma complexidade básica que sempre esteve disponível no mundo dos jogos, só não para as mulheres.

Foi dessa mesma maneira que Infinity Nikki também fez seu debut brilhante em 2024, transformando o que poderia ser só mais um raso “jogo de vestir” ao incorporar um mundo aberto, com design bem trabalhado, tridimensionalidade, lutas dinâmicas e animais falantes, alcançando a marca de mais de 20 milhões de downloads nos 10 primeiros dias após seu lançamento. É como Genshin Impact, mas sem os jumpscares de seios pulando na tela enquanto se caminha pelo mapa, detalhes que são ofensivos para boa parte das jogadoras — e que, quando criticados, costumam ser descartados como mais uma onda de “mimimi.” 

Ambos os jogos pertencem à Papergames, que investiu no que algumas empresas estão apenas começando a notar: mulheres se importam com a qualidade dos jogos que jogam e com a forma como são representadas neles.

Seja por meio de skins em tons pastéis e decoradas com corações no Valorant ou do lançamento da primeira protagonista feminina em GTA 6, a indústria começa, ainda que timidamente, a reconhecer o peso do público feminino no universo dos games.

A boa notícia é que dá para ser mulher

Não estamos apenas jogando; estamos por trás dos jogos: a contribuição das mulheres está em games como Assassin’s Creed, Watch Dogs e Far Cry 4, com a programadora Jade Raymond; em Portal, Left 4 Dead e Half Life 2, com a designer Kim Swift; e em Tomb Raider e Rise of Tomb Raider, com a escritora Rihanna Pratchett.

Estamos cada vez mais na frente das telas, representando mais da metade da população brasileira que vê nos jogos uma das principais formas de entretenimento, de acordo com a Pesquisa Game Brasil, de 2024.

E estamos nas competições, com a vitória da equipe feminina da Liquid na Grande Final do Game Changers Kickoff 2025 no dia 17 de fevereiro, consolidando a presença feminina nos eSports. 

É claro que ainda há desafios. O ambiente de jogos não é só machista, mas frequentemente misógino. Jogadoras que “ousam” usar o microfone ou competir sem se esconder atrás de pseudônimos masculinos estão sujeitas a ataques constantes. Não faz sentido existirem apenas lines exclusivamente femininas ou masculinas em competições se os jogos são puramente intelectuais.

Ainda assim, Love and Deepspace e Infinity Nikki mostram que a indústria pode mudar. São exceções em um mercado que parece acreditar que mulheres precisam de jogos que não exijam esforço mental ou qualquer mínima habilidade.

Não há problema algum com jogos feitos para relaxar e só passar o tempo. Mas presumir que todas as mulheres se encaixam em um único perfil é ignorar oportunidades. Esta conversa não é sobre criar jogos sem interação com outros jogadores, como se a solução para o problema fosse deixar de encará-lo. É sobre criar espaços em que mulheres possam se divertir sem serem mandadas a lavar a louça.

A arrecadação bilionária da Papergames é reflexo de uma mudança inevitável: as mulheres sempre estiveram nos games, mas agora estão sendo vistas. Jogadoras querem protagonizar, e protagonizar enquanto são respeitadas. Para isso, “jogos de meninas” não precisam ser menores, mais fáceis ou menos ambiciosos. Eles só precisam ser bons.

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