A mídia tradicional brasileira exerce um papel importante na formação da opinião pública e na construção de narrativas sociais. Historicamente, porém, os meios de comunicação representaram os povos indígenas por meio de narrativas distorcidas, muitas vezes reforçando estereótipos e silenciando vozes indígenas, além de apagar a diversidade cultural desses povos.
No entanto, a presença e a ascensão indígena no poder político, na mídia e em diversas áreas do conhecimento têm promovido uma mudança significativa. Hoje, falar sobre os povos originários é diferente. A narrativa que antes era marcada pela exclusão passa, cada vez mais, a ser preenchida por vozes indígenas, que ocupam espaços de protagonismo e recontam suas próprias histórias, desconstruindo estereótipos e reafirmando suas identidades.
”Os indígenas sempre foram muito retratados em contextos de violência, seja violência no campo, seja em processo de mobilização na cidade, mas sempre eram pautas negativas. Nos últimos anos, a gente tem visto experiências ou a participação positiva dos indígenas em algumas pautas aparecer com mais frequência.”
Para conversar sobre o assunto, entrei em contato com Ykaruni Nawa, pertencente ao povo indígena Nawa, originário do Acre. Ele é jornalista da Defensoria Pública da União (DPU), doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ. Também é co-criador da Articulação Brasileira de Indígenas Jornalistas (Abrinjor). Ele é um dos nomes que vêm ocupando espaços na comunicação pública para transformar narrativas e combater estereótipos sobre os povos originários.

Cristiano Ro’onowa Tseremey’wa: Qual sua percepção sobre como os povos indígenas são retratados na mídia tradicional brasileira ou internet?
Ykaruni Nawa: A minha percepção sobre como os povos indígenas são retratados na mídia brasileira/internet é mais otimista em relação aos primeiros anos dos anos 2000, sobretudo porque a gente era muito retratado de uma forma estereotipada, com as vicissitudes da mídia. Isso acontece por conta do fato de a mídia ser um termômetro da sociedade e acaba fazendo com que a forma que a mídia tradicional fala sobre os povos indígenas seja muito a partir da percepção do senso comum da própria sociedade. Então, por muito tempo, a gente foi narrado de uma forma muito estereotipada. E, quando falo de mídia, me refiro a todo tipo de mídia, desde a mídia noticiosa até os produtos audiovisuais, que também são mídias.
Cristiano Ro’onowa Tseremey’wa: Você tem visto muitos estereótipos frequentes que ainda aparecem em matérias/reportagens?
Ykaruni Nawa: Vou dizer que, nos últimos anos, houve uma diminuição. Não posso dizer que não houve, porque depende muito do canal, veículo de comunicação em que esses indígenas aparecem, os parentes aparecem. A mídia está muito atrelada a interesses políticos. Então, você vai ver uma emissora como a Record, que flerta com o protestantismo, digamos assim, ou o mundo evangélico, em que os povos indígenas ainda são narrados de forma extremamente estereotipada. Quando você fala também da ocupação dos espaços em mobilizações pelos indígenas, você vai ver também uma narrativa ainda estereotipada dos indígenas como invasores. Então, acho que depende muito do contexto, do veículo de comunicação principalmente. Mas, nos últimos 5 anos, por exemplo, da percepção do meu consumo de matérias e reportagens, esses estereótipos deixaram de ser frequentes e passaram a ter uma nova abordagem e uma nova narrativa sobre os povos indígenas.
Cristiano Ro’onowa Tseremey’wa: Você acredita que teve mudanças nos últimos anos em relação a como a mídia retrata os indígenas? E teve alguma mudança que achou importante?
Ykaruni Nawa: Os indígenas sempre foram muito retratados em contextos de violência, seja violência no campo, seja em processo de mobilização na cidade, mas sempre eram pautas negativas. Nos últimos anos, a gente tem visto experiências ou a participação positiva dos indígenas em algumas pautas aparecer com mais frequência. Ontem, por exemplo, assisti ao Jornal Hoje, no Dia dos Povos Indígenas, e eles fizeram uma matéria bem legal sobre o trabalho de etnoturismo realizado na cidade de Marcação, que é território dos parentes potiguaras, na Paraíba. Primeiro que a mídia sempre retratou muitos povos num contexto de Amazônia, e perceber que essa mídia noticiosa tem retratado os indígenas em outros contextos, principalmente em grandes cidades, ou no litoral brasileiro ou no Nordeste brasileiro, é uma forma de superar essa narrativa que sempre vinculou esses povos a um lugar comum, que é a floresta, a mata. Então, acho que tiveram mudanças, e as mudanças foram muito mais numa alteração das pautas negativas para aparecer muito mais pautas positivas.

Cristiano Ro’onowa Tseremey’wa: Falando de protagonismo indígena, qual o impacto de ter jornalistas indígenas contando as histórias de seus próprios povos?
Ykaruni Nawa: Existe um impacto extremamente relevante da produção de jornalistas indígenas contando a história dos seus próprios povos. Primeiro porque a nossa relação com os nossos povos e a nossa entrada dentro dos nossos territórios é muito mais facilitada. A gente, de berço, acompanha as histórias dos nossos povos, então existem muitos detalhes dessa diferença indígena que, numa matéria, numa reportagem, a gente poderia trazer de uma forma mais visível, mais impactante. Considero também que o fato de a gente estar presente nas lutas e mobilizações dos nossos povos nos faz perceber, ter a sensibilidade para lidar com detalhes ou manifestações que, no caso, são mais peculiares, que muitas das vezes não são objeto de atenção pelo jornalismo, mas que a gente consegue perceber e trazer de uma forma muito mais qualificada na produção de matérias, reportagens, enfim, do jornalismo. Então, acho que tem esse impacto da entrada e presença nos territórios e uma abordagem muito mais qualificada sobre a diferença desse povo, do povo que a gente estiver retratando, seja o nosso ou outro povo. E o que eu falo sempre é que a presença indígena nos veículos de comunicação, ou mesmo nas assessorias de comunicação, produz o que a gente chama de representação adequada. Essa representação adequada é o contraponto, é o polo extremo, o outro polo extremo do racismo. Então, enquanto muitas práticas, notícias, reportagens ainda podem acabar trazendo essa narrativa racista — seja com termos como “tribo”, por exemplo, “selvagens” ou qualquer coisa que associe a esses estereótipos —, a representação adequada faz um movimento totalmente diferente disso. Então, acaba que a gente tem uma produção muito mais sensível e longe dessas práticas racistas ou estereotipadas.
Cristiano Ro’onowa Tseremey’wa: Você quer deixar alguma mensagem ou conselho para jornalistas não indígenas que falam sobre pautas indígenas?

Ykaruni Nawa: Tenho uma mensagem para deixar para os jornalistas não indígenas. Acho que, principalmente, o respeito. O respeito é a base de toda a produção. Nós somos contadores de histórias, então a gente tem que ter muito respeito com as histórias que a gente está contando. Os não indígenas costumam ter pouca sensibilidade para essa relação com os povos indígenas, acabam tendo muita dificuldade e muitas vezes não transferem para esse texto aquilo que de fato nós somos. A primeira coisa, acho que algumas dicas básicas, né? Antes de qualquer matéria, reportagem, notícia sobre povos indígenas, sobre qualquer povo indígena, estudar, ler sobre aquele povo, fazer de fato uma apuração e entender a complexidade de muitas das nossas manifestações, das nossas práticas. Muitas das coisas que a gente manifesta no cotidiano, eles não entendem ou associam a outras coisas que estão totalmente fora do que de fato nós somos ou do que nós reivindicamos. Então, acho que esse respeito parte principalmente por uma apuração qualificada, boa, bem feita. Outra coisa também que indicaria — são muitas coisas, mas uma delas — é o respeito às nossas organizações sociais. Então, se determinado povo tem uma organização, ao invés de chegar em qualquer pessoa do povo, vá na organização primeiro, fale com o presidente, fale com o coordenador daquela organização ou então com as próprias lideranças, para, a partir daí, direcionar alguma produção dentro do território. É muito importante que os não indígenas entendam que nós somos povos extremamente hierarquizados. E essa hierarquia precisa ser respeitada, porque ela já foi respeitada na nossa legislação brasileira e precisa também ser respeitada no jornalismo. Acho que são dois pontos que considero muito importantes.